Kim Minseok tinha cinco anos quando viu aquele homem pela primeira vez. Homem, não — a priori, apenas uma criança como ele.
— Mamãe, vou brincar lá fora!
Era uma tarde de fevereiro, a primavera ainda fresca e recém chegada, as árvores do bairro onde a família Kim morava se enchendo pouco a pouco das mais bonitas e delicadas flores. Minseok gostava daquelas que tinham a coloração rosa; elas se pareciam com as roupas que as meninas da sua aula de ballet usavam.
Com um pote cheio de biscoitos de água e sal na mão, o Kim caçula puxou o zíper de seu casaco até em cima e marchou porta afora, os pezinhos calçados com um tênis vermelho fazendo barulho porque os passos que Minseok dava eram fortes demais. Não fechou totalmente a porta atrás de si porque sua mãe sempre dissera a ele que deixasse aberta caso algo acontecesse e ele precisasse, como um estranho o chamando ou um dodói aparecendo.
O quintal era bastante espaçoso. Os brinquedos de Minseok estavam espalhados por causa do dia anterior em que recebera um amigo da escola e os dois passaram a tarde num mundinho faz de conta, a imaginação sendo auxiliada pelos dinossauros de plástico e carros de alumínio, Minseok e Jonghyun criando, sozinhos, um universo que pertencia a eles e somente a eles. No dia, mês, ano seguinte, talvez o cenário mudasse, mas é esse o sabor, a razão da imaginação existir: moldar seus desejos e torná-los realidade, mesmo que só você consiga enxergar essa verdade.
Minseok levaria esse conceito um passo à frente, futuramente. Ele só não sabia disso.
No momento, porém, o que parecia atraente para o Minseok de cinco anos era seu kit de laboratório que continha tubos de ensaio, copos de becker, líquidos inofensivos que atuavam como substâncias perigosas e óculos de cientista. Ele gostava de fingir que era um dos personagens da série que seu pai gostava tanto, gostava de pensar que um dia ele estaria fazendo as mesmas coisas que fazia de brincadeira, mas para valer.
Entretido com suas poções e experimentos de mentira, quase não percebeu o estranho que se aproximava.
— Oi!
Era uma criança mais ou menos do seu tamanho. Minseok levantou a cabeça, a visão um pouco embaçada por conta dos óculos, então puxou-os para cima e encarou o outro garoto. Ele tinha orelhas grandes e pontudas, olhos esbugalhados e um paninho amarrado ao redor do pescoço. O casaco amarelo e vermelho que vestia parecia ser grande demais para ele e havia um bichinho peludo em suas mãos — Minseok não sabia se era de pelúcia ou não. Ele sorria abertamente.
— Oi — respondeu, não querendo ser mal educado. — Você quer brincar comigo?
— Hm, hm. — Negou com a cabeça e juntou a boquinha num bico. — Eu quero um biscoito, você pode me dar?
Minseok assentiu e jogou no chão o tubo de ensaio que segurava. Dobrou os joelhinhos para alcançar o pote que estava no chão, tirando a tampa com um pouco de dificuldade e apresentando-o, aberto, para a outra criança, que analisou os biscoitos ali dentro.
— Todos eles estão quebrados? — Minseok não havia percebido, mas, sim, todos estavam quebrados. Quando concordou com a cabeça, o menino bufou. — Poxa, eu não como biscoitos quebrados. Minha avó diz que eles dão azar.
— Ah, tá bom. — Fingiu que entendeu.
Um silêncio pairou entre os dois. Minseok olhava fundo nos olhos esbugalhados da outra criança, que fazia questão de deixá-los o mais abertos possível. Estava prestes a abaixar-se para pegar um dos seus dinossauros de plástico para entregar a ele e perguntar seu nome, mas um adulto se aproximou do quintal, parecendo furioso.
— Chanyeol. — Ele era alto, os olhos estavam cobertos por óculos amarelos e tinha as orelhas tão pontudas quanto as do garoto menorzinho, que se encolhia à medida que o adulto se aproximava. — Eu já te disse para não conversar com estranhos.
Sem nem poder dar tchau para seu amigo, Minseok observou-o ser puxado pela gola do casaco, a mãozinha gorda com a palma virada em forma de cumprimento. Em sua cabeça, Minseok murmurou um adeus! e pensou no nome.
Chanyeol.
E tão rápido quando haviam aparecido, Chanyeol e o adulto… sumiram. Foi como se tivessem se desmaterializado no próprio ar, estando ali num segundo e no outro, não. Minseok arregalou os olhos. Ele não entendeu o que havia acontecido. As pessoas não podem sumir daquela maneira, correto? É impossível.
Ele correu para dentro de casa, quase escorregando quando finalmente parou.
— Mamãe — começou, ofegante, para emendar: —, eu acabei de ver duas pessoas desaparecendo.
A senhora Kim não prestou muita atenção e continuou a mexer o arroz na panela.
— Como assim?
— Era o Chanyeol e um adulto. O Chanyeol é pequeno igual eu, e…
— Igual a mim.
— Igual a mim, e ele quis comer meus biscoitos, mas ele não come biscoito quebrado porque a avó dele diz que dão azar e os meus estavam quebrados. Aí um cara muito alto chegou e levou ele, e eles sumiram. Mamãe, eles sumiram do nada. Foi assim, ó: puf!
— Filho — disse a sra. Kim, virando o corpo para que pudesse olhar para ele, e continuou: —, as pessoas não podem sumir assim. Tenho certeza de que foi algo da sua cabeça. Vai ver o Chanyeol precisava ir pra casa almoçar, igual você precisa.
O tom de voz dela deixou de ser terno e tornou-se mais autoritário, e Minseok abaixou a cabeça, derrotado.
— Ok, mamãe. Estou indo lavar as mãos.
Ele sabia que não era nada da cabeça dele. Ele sabia que, quem quer que aquele Chanyeol e o adulto fossem, eles haviam desaparecido.
Talvez eles fossem super-heróis. Minseok sorriu com a ideia, encarando as bochechas fofinhas no espelho do banheiro, tomando cuidado para não desequilibrar do banco de apoio que seus pais haviam colocado para si. Super-heróis eram legais. Ele gostava de super-heróis. Chanyeol poderia ser o super-herói dos bichinhos fofinhos, como aquele que estava em seu colo, e o adulto seria o vilão dos momentos estragados, porque havia interrompido a conversa das duas crianças.
Terminou de lavar as mãos e as secou diligentemente, fazendo uma pose de super-herói em frente ao espelho.
— Eu sou o Capitão Ciência! — bradou o nome do personagem que havia inventado para si, tentando soar corajoso. — Protejo todos com as minhas subiscitâncias — ele ainda estava pegando o jeito daquela palavra — e luto contra o mal dentro do meu laboratório!
Rindo sozinho, ele desceu do banquinho e saltitou até a cozinha, onde um prato cheio de arroz, legumes e um pedaço de carne o esperava.
Ele desejou, inconscientemente, que Chanyeol também esperasse por ele.
...
— Baekhyun, vou precisar da sua ajuda em algo depois.
— É pra já, chefe!
Minseok quis contra argumentar, quis reclamar que não, não sou seu chefe, quis dar um aperto na nuca esguia de Baekhyun, mas conteve-se. Anos de experiência com aquele garoto havia o ensinado que ignorar era a melhor solução e que ele não iria parar de ser ele, ou o que quer que isso significasse.
Os dois se tornaram amigos no início da faculdade, dois calouros que não tinham direção alguma. Não tinham direção literalmente, porque Baekhyun estava perdido e, olhando para Minseok que era tão reto e opulente quanto um veterano, que andava como se morasse ali, pensou que ele pudesse ser de ajuda. Acontece que Minseok também estava perdido, e daquele ponto em diante os dois tornaram-se inseparáveis.
Minseok servia para controlar a inconsequência de Baekhyun, e Baekhyun servia para relaxar as tensões de Minseok. Os dois estudavam cursos análogos e viviam se ajudando com questões de provas e simulados, por vezes desistindo da monitoria para perguntar um ao outro. Às vezes Minseok ficava dentro da própria cabeça por mais tempo que o recomendado, e Baekhyun o içava das profundezas com piadas e carinho implícito. Gostavam de dizer que a dependência de Baekhyun era como um átomo: existia, mas era impossível de ser vista.
De qualquer forma, eles funcionavam. Estavam felizes. Aquele arranjo deu certo pelo restante da faculdade, cinco longos anos até que conseguissem seus diplomas em Astronomia e Física, e continuaram juntos durante os três anos da pós-graduação. Estavam juntos, ainda, mesmo com os trinta anos batendo na porta, trabalhando lado a lado no mesmo local.
— Hoje eu vou passar o dia no laboratório, não vou conseguir fazer a monitoria. O Junmyeon me pediu para dar uma força para os alunos dele, mas hoje não vai rolar. Será que você teria como me substituir? É só avisar a ele — disse de forma calma, o tom doce de sempre tentava soar convincente.
— Qual a matéria? — Baekhyun estreitou os olhos, parando de ler o que estava lendo em seu celular.
Minseok hesitou.
— Cálculo Diferencial e Integral — revelou a informação de forma abrupta, enrugando o nariz porque já sabia qual seria a resposta.
— Ah, não, não, não e não. — Baekhyun soava frustrado e adicionou até um grunhido para dar mais efeito. — Eu não vou ficar resolvendo probleminhas e equações durante três horas para quebrar um galho para o Junmyeon. Ele nunca fez nada por mim!
— Mas sou eu que estou pedindo, e você me deve uma.
Baekhyun ficou em silêncio.
— Ok, mas só porque eu realmente te devo uma.
Minseok bateu meia dúzia de palmas e agradeceu-o verbalmente, dizendo que o recompensaria algum dia enquanto Baekhyun só fingia reclamar, os olhos vidrados no celular. Era aquela a dinâmica que eles tinham, e era aquilo que eles queriam ter para a eternidade. Não conseguiam se ver de nenhuma outra maneira.
— Por que você não vai poder? O que você precisa fazer no laboratório? — Baekhyun não pôde deixar de indagar, o final da frase curvando-se assim como os cantos dos lábios dele faziam quando ele descobria algo de interessante.
— Preciso fazer a manutenção do DeLorean.
— Deu algum defeito?
— Não, nada demais, o de sempre. Ele está carregando, inclusive, deve ficar pronto daqui a alguns minutos. Vou precisar tirá-lo da carga e rever um dos lasers.
— Tranquilo! — Baekhyun levantou-se de onde estava sentado e colocou o celular no bolso de trás, jogando a bolsa estilo carteiro no ombro. — Vou passar pela secretaria e pedir para a Hyomin avisar ao Junmyeon. Talvez eu passe pelo laboratório para te ajudar.
Despediram-se, Minseok pegou suas tralhas e saiu da copa, o copo térmico de café esquentando levemente sua mão. A Universidade de Yonsei tinha um grande campus, tão grande que tornava-se cansativo transitar entre a área comum e a área de pesquisas e prática. Já estava acostumado, podendo fazer aquele trajeto de olhos fechados e andando de costas, pensando bem, até que gostava de percorrê-lo. Aquela atividade mundana o permitia pensar sobre tudo que não conseguia quando estava na correria do dia a dia.
Podia pensar, por exemplo, no que fazer com o DeLorean.
DeLorean foi o nome dado ao relógio de bolso do estilo steampunk que ele herdou da família. Não herdou de fato, era apenas uma relíquia que estava há anos na casa e que ele surrupiou do porão, uma ação feita na surdina — o rapto de um objeto tão esquecido que ninguém dera falta. O relógio o acompanhou durante a faculdade inteira, e foi numa noite sozinho, quando estava encarando essa junção de metais e fios, que ele teve sua epifania.
O projeto da máquina do tempo era um muito antigo. Nasceu dos devaneios de um Minseok de quatorze anos de idade, que assistiu um episódio de Doctor Who enquanto zapeava os canais da televisão fechada e apaixonou-se pela ideia de abrir átomos e dividir núcleos para que pudesse viajar ao passado.
Precisava confessar que depois até tentou assistir mais dois episódios da série e desistiu. Tentou gostar de outras com a mesma temática de ficção científica, mas não funcionou com nenhuma. Tudo era superficial demais, ridículo demais — ele preferia ficar com as tramas históricas água-com-açúcar.
Tudo surgiu a partir de um questionamento: é possível embutir uma máquina do tempo num relógio de bolso? Na época, ele não sabia se a resposta era positiva ou negativa, mas se esforçou — e muito — para encontrá-la. Aquela pergunta inocente desencadeou o acordar de um interesse adormecido pela astrofísica e anos e anos e anos de estudo e pesquisa, até acarretar no momento atual.
Minseok havia conseguido.
— Ei, Junmyeon, considere uma situação hipotética — começou Minseok, chegando perto do colega de trabalho para colocar uma mão no ombro dele e continuar: — Se você tivesse uma máquina do tempo, que nome daria a ela?
— Eu a chamaria de DeLorean, é óbvio — respondeu Junmyeon, simplista como sempre, e bebericou seu café.
— Por quê?
— Minseok. — Ele riu, parecendo não acreditar. — Você nunca assistiu De Volta Para o Futuro?
O DeLorean era um relógio de aproximadamente oito centímetros de diâmetro, emoldurado em ouro envelhecido e bronze, vários desenhos de engrenagens enriquecendo o design. Os ponteiros do modelo antigo mostravam apenas o horário, mas Minseok o reformulou e agora conseguia colocar o ano através de um parafuso, bastava apenas rodá-lo vezes o suficiente para colocar os números. A corrente que segurava o relógio ficava na parte de cima, em posição contrária aos dois cabos que saíam da parte de baixo os quais se conectavam às fontes de energia que Minseok criou — placas de infusão de energia negativa e algumas toneladas de plutônio — para que pudessem dar à máquina a alimentação necessária para que seu funcionamento ocorresse de forma plena.
Por incrível que parecesse, tornar o DeLorean algo esteticamente agradável foi a parte mais difícil de todo o projeto. Minseok gastou horas intermináveis trabalhando em teorias e tentando colocá-las em prática, equilibrando numa só mão sua vida social e acadêmica enquanto se empenhava no que parecia ser o projeto mais megalomaníaco do mundo. Baekhyun esteve ao seu lado durante todo o processo e os dois choraram de alegria quando conseguiram transportar uma bola de tênis cinco minutos no passado. Depois que toda a baboseira astrofísica saiu do caminho, seu criador percebeu que queria algo compacto e chique, daí surgiu a ideia de transformá-la num relógio; não há nada melhor que a praticidade e iconicidade de um acessório steampunk.
Chegou ao laboratório que alugava da universidade, ligando as luzes e deixando sua pasta em cima da mesa mais próxima da porta. Estalou os dedos, rodou o pescoço pelos ombros e respirou fundo, andando até a porta que dividia mais uma das partes do local e adentrou aquela sala que havia se tornado sua casa, mesmo que inconscientemente.
O DeLorean estava lá, em toda sua glória dourada, conectado a fios que o alimentavam com a energia que emanava do plutônio e das placas de metal. Minseok lembrou de vestir a máscara N95 que estava pendurada na maçaneta, e marchou até seu objeto de desejo, puxando as luvas de borracha de algum lugar qualquer e se posicionando na cadeira.
Pelas próximas três horas, ocupou-se com pinças, alicates, pedaços de imãs e esmaltes dourados.
Aquela atividade havia se tornado algo quase que catártico. Sempre se sentiu melhor quando estava ao redor de equipamentos como aqueles, a cabeça ocupada por nomenclaturas teóricas e aproximações numéricas, uma grande massa cinza de conhecimento nublando tudo que pudesse servir de distração. Minseok precisava daquilo, afinal. Se ele pensasse demais, acabaria lembrando daquilo que estava tentando esquecer.
Sua analista dizia que não era comum ver alguém com memórias tão vívidas da infância, e Minseok não lembrava de muita coisa, apenas de uma em especial: o dia que dois viajantes do tempo o visitaram. Reconhecer aquelas duas figuras (provavelmente pai e filho) como viajantes do tempo foi um processo demorado e cansativo, um que envolveu diversas tentativas e vários “Baekhyun, presta atenção na maneira que eu desapareço”, mas ele teve algum tipo de paz quando finalmente entendeu o que acontecera naquele dia de primavera. As perguntas que queria fazer ainda flutuavam em sua cabeça e ele sabia que viveria a vida inteira sem as respostas — por que escolheram ele? Como conseguiram viajar no tempo? Será que eles sabiam das consequências? —, mas isso nunca o impediu de fazê-las.
Havia sido aconselhado a não perder tempo com isso. Como não? Aquele breve encontro foi a motivação que precisou para decidir todo seu futuro e formação. Será que aqueles dois tinham noção do efeito borboleta que causaram?
"Provavelmente não", Minseok pensou, e grunhiu em cansaço quando percebeu o tempo que passou na mesma posição, a dor nas falanges fazendo-se presente quando o reconhecimento apareceu.
Era um costume dele, ficar tão absorto em melhorias e estudos que esquecia de tudo ao seu redor e em seu interior. Sempre ouvia reclamações de Baekhyun por causa disso; tivera que aguentar Minhee e Hyoeun tentando o distrair da leitura de O Universo numa Casca de Noz — sim, sua vigésima leitura, mas ainda assim, uma leitura — para que pudessem convidá-lo a um restaurante qualquer, só que não era como se percebesse que estava se desprendendo do mundo real. Aquilo só acontecia.
Tirou o DeLorean de sua carga colocando-o no bolso, não sem antes parar por alguns segundos para admirá-lo, e não conseguiu evitar o sorriso que se espalhou pelo rosto. Estava orgulhoso de si mesmo, não havia porquê negar ou esconder. Desfez toda sua paramentação e saiu da sala, sentindo algo que não conseguia explicar.
Baekhyun o esperava do lado de fora. Ele quase voltou para onde estava.
— Finalmente! — exclamou, bloqueando o celular e descendo da mesa onde estava sentado. — Estou aqui há mais de meia hora. Consegui passar dez níveis no Liquid Sort Puzzle!
O sotaque dele foi perceptível quando precisou falar inglês para pronunciar o nome do joguinho. Baekhyun estava tentando dar início à primeira metade de seu mestrado numa universidade internacional, algo que conseguiria ter feito mais cedo se a garganta não enrolasse tanto para falar qualquer língua que não fosse a materna. Ele era fluente, entendia de teorias sobre o revezamento de partículas alfa em superfícies de alto contato com metais, escrevia artigos de trinta e cinco páginas num inglês que quase não precisava de revisão, entendia piadas e conseguia fazê-las antes que qualquer pessoa pensasse em abrir a boca, mas nada disso era valorizado porque ele não havia se acostumado com a fonética. Uma pena, ele dizia. Estão perdendo minha imaculada presença.
— Desculpa, você sabe como eu fico quando tô trabalhando.
— Relaxa, não foi uma reclamação. Cê tá com fome? A gente bem que podia comer naquele restaurante da esquina — sugeriu, olhando com antecipação para a porta.
— Vamos sim! Deixa só eu arrumar minhas coisas. — Minseok rapidamente se pôs a dar um jeito no laboratório, recolhendo os papéis e a bolsa. — Como foi a monitoria?
— O de sempre. Vi tantas funções de primeiro grau que sinto que viajei no tempo para meu nono ano de escola. — Baekhyun riu seco, apoiando-se contra uma das mesas. — Aliás, como vai o DeLorean? Ainda não utilizado?
Minseok suspirou, apertando a bolsa contra o corpo e colocando, inconscientemente, a mão sobre o bolso que guardava o relógio.
— Novinho em folha. Nunca o usei para nada que não fossem os testes, e…
Um barulho de batidas na porta o interrompeu. Ele elevou o tom de voz, permitindo a entrada de uma afobada Hyomin, ofegante e com o blazer um pouco desnivelado. Minseok não a culpava. O caminho que ela havia feito da secretaria até o laboratório era longo.
— Minseok, você tem um visitante. Ele se recusou a dizer o nome, mas precisa falar contigo. Disse que é urgente — soltou, as palavras misturando-se umas com as outras por conta da falta de ar.
Enquanto Hyomin arrumava o cabelo loiro, Minseok virou-se para Baekhyun.
— Eu tinha alguém para receber hoje? — indagou, as sobrancelhas juntas.
— Quantas vezes eu vou ter que repetir que não sou seu secre… Ah, esquece. — Baekhyun começou e desistiu no meio do caminho, sabendo que aquela era uma batalha perdida. — Não que eu saiba.
— Então quem será?
— Ele pareceu bem desesperado, então se você puder se apressar, acredito que ele apreciaria. — Com isso, Hyomin deu as costas e marchou de volta para o prédio principal.
Minseok e Baekhyun trocaram olhares e, entendendo que não havia outra opção, começaram a seguir a recepcionista, não parando de andar nem por um segundo — Minseok estava tão preocupado que nem quis vagar por seus pensamentos.
Quando chegaram ao saguão do campus principal, Hyomin os levou até a recepção, e de lá seguiram para uma sala mais reservada, alegando que o tal visitante estaria lá. Minseok não saberia dizer, mas um frio correu pela sua espinha. Algo estava muito, muito errado. Alguém pedia para vê-lo sem ter se identificado, e agora estava numa sala localizada longe da confusão dos alunos.
Finalmente, estavam à porta. Baekhyun fez menção de abri-la, mas Hyomin rapidamente o dispensou.
— O visitante quer ver Minseok, e somente Minseok.
Baekhyun quis brigar. Minseok, porém, negou com a cabeça e aceitou o destino, apesar de ainda estranhar a secretividade daquele encontro. Pôs a mão sobre a maçaneta e empurrou a porta, adentrando a sala grandiosa.
Era uma sala de reuniões, toda em madeira com uma opulenta mesa redonda de carvalho, cadeiras de couro ao seu redor. As janelas eram enormes e iam do teto ao chão, parcialmente fechadas por persianas na cor bege. Havia uma mesa rente à parede do mesmo material da mesa principal e, na frente dela e de costas para Minseok, residia alguém.
Ele trajava um casaco cinza e calças pretas, toda a roupa parecendo estranhamente grande demais para ele. Seu cabelo era platinado, um tom que contrastava com o preto de Minseok, e ele não tinha postura alguma apesar de com certeza passar de um metro e oitenta de altura.
Minseok pigarreou.
— Olá? Eu sou o Minseok, acredito que você tenha me chamado.
O estranho virou-se, e naquele momento, Minseok poderia desmaiar.
Ele não era a mesma pessoa que havia visto quando criança, mas com certeza se parecia com ela — e muito. As orelhas avantajadas eram as mesmas, os olhos arregalados e esbugalhados eram os mesmos, os óculos de lentes amarelas que com certeza não serviam para o sol eram os mesmos, até o moletom branco e os tênis de corrida eram os mesmos. Foi uma sensação de déjà vu tão forte que o cientista sentiu uma enxaqueca começar a nascer.
O visitante, parecendo inafetado, correu de onde estava para se aproximar de Minseok, e abriu o maior dos sorrisos quando o viu. Aquela situação inteira ainda era muito, muito estranha para Minseok, que sentia o chão desaparecer sob seus pés. Como aquilo era possível? Era algum tipo de pegadinha do universo?
— Kim Minseok! — exclamou o estranho, o sorriso rasgando seu rosto. Ele estendeu uma das mãos. — Puxa, muito obrigado por me receber. Sei que eu deveria ter sido mais específico ao me apresentar na recepção, mas essa é uma ocasião especial.
Ele falava um pouco rápido e a sobrancelha direita dava um pequeno pulo quando a entonação mudava. Era engraçado como Minseok conseguia enxergar detalhes tão triviais e fúteis como aqueles, mas não tinha a capacidade de associar dois mais dois.
— Eu não posso deixar de concordar. Mas, espere um pouco — interrompeu-o quando viu que ele começaria a falar novamente, e acrescentou: —, quem é você?
O cara alto riu, a voz barítona ecoando pela sala.
— Meu nome é Park Chanyeol. — Os olhos dele brilharam. O cérebro de Minseok entrou em curto-circuito. — Meu pai está correndo um risco muito grande, e você é o único que pode ajudá-lo.
Há um conceito inventado pelo antropólogo Joseph Campbell chamado monomito. Recebendo por vezes o nome de Jornada do Herói, esse conceito de narrativa baseia-se na ideia de que todos os personagens principais de todas as histórias vão passar pelas mesmas provações, correndo pelas mesmas etapas e vivenciando as mesmas emoções. Aprendeu sobre isso numa aula extra de Literatura porque tinha colegas que cursavam essa matéria, e conseguiu invadir uma das aulas furtivamente.
O primeiro ato é formado por quatro partes: mundo comum, chamado à aventura, recusa ao chamado e encontro com o mentor. Geralmente, essas partes acabam perdendo-se quando o roteiro torna-se bagunçado demais, mas elas sempre estão lá, existindo mesmo que subterraneamente, e os espectadores precisam assistir de olhos bem abertos para enxergar essas nuances na escrita. Minseok, sendo um cara metido a inteligente e querendo sempre superar as expectativas impostas a ele, colocou em sua cabeça que ele tentaria identificar sempre as etapas do monomito em todos os filmes — que não eram muitos —, séries e livros que consumia.
O que havia acontecido em sua infância havia sido um prólogo, uma sequência de abertura que, num longa-metragem, estaria acompanhada de uma música animada que teria um leve fade out na hora dos diálogos enquanto os nomes dos atores apareceriam na tela. Estrelando Kim Minseok, Park Chanyeol, Uma quantidade exagerada de extras e coadjuvantes. Era uma fórmula muito repetida, apresentada em diversos filmes e cinemas, aquela que sempre aparece em chamadas para prêmios de alta categoria, que introduz ao espectador o universo das próximas duas horas e meia.
Viveu sua vida inteira no estágio do mundo comum. Era isso que acreditava, pois nada de excepcional acontecia — porque, na visão dele, construir uma máquina do tempo compacta não era nada demais — e ele não tinha epifanias, muito menos transformações em seu visual. Ele era uma pessoa comum, e apenas isso.
Mas agora, seu chamado à aventura estava acontecendo. Aquilo que Chanyeol estava pedindo, por mais que ainda não estivesse explícito, era claramente um convite, uma tentativa de puxar Minseok para fora de seu casulo. Ele não sabia se devia aceitar ou não. Antes, porém, precisava sanar alguns problemas.
— Era você — começou, o entendimento pousando sobre si pouco a pouco. — Você apareceu no meu quintal daquela vez, com aquele adulto. Você falou sobre biscoitos quebrados te darem azar, e aquele cara mais velho te puxou e disse que você não devia falar com estranhos.
Chanyeol suspirou. A postura, que já não era invejável, comprimiu-se mais ainda. Minseok não conseguia enxergar além dos óculos amarelos, mas ele podia jurar que ele sabia do que estava falando.
— Sim… Éramos eu e meu pai. Inclusive, eu venho aqui hoje falar exatamente sobre isso.
— Você tem noção do que aquele encontro causou em mim?
Minseok tinha uma característica muito intrínseca a ele, uma bem particular: não falava muito, mas, quando começava, não conseguia parar. Sua analista dizia que era porque havia passado muito tempo engolindo palavras demais de todas as pessoas em sua vida e havia se tornado quase que um dicionário de emoções humano, catalogando tudo que sentia e nunca publicando sob um selo. Quando ele sentia que precisava falar, porém…
— Eu passei anos — sibilou, furioso — estudando para entender o que aconteceu naquele dia. Obviamente, eu sempre gostei dessa parte e sempre tive uma queda pela ciência, mas aquele encontro martelou por décadas na minha cabeça. Vocês dois deveriam ser mais cuidadosos ao viajar no tempo.
O rosto de Chanyeol desenhou-se numa expressão de surpresa.
— Você… você sabe que eu sou um Viajante?
— Óbvio! Por quais outras razões eu teria construído uma máquina do tempo? Você acha que eu sou um idiota? — Ele colocou as mãos nos quadris, entortando a cabeça. — Anda, desembucha. Por que você precisa da minha ajuda?
— Uau, você não era assertivo desse jeito aos cinco anos de idade — interviu Chanyeol e Minseok quis rir. — Preciso esclarecer algumas coisas antes. Não, eu não viajo no tempo com uma máquina. Eu sou um Viajante com V maiúsculo.
O cientista o observou de cima a baixo.
— E?
— E isso é um super-poder! — exclamou Chanyeol, visivelmente irritado. — Para um cara tão renomado nos estudos, você claramente não teve especialização em relações humanas. Catapimbas!
Catapimbas. De qual década esse garoto vinha?
— Enfim! Eu preciso da sua ajuda. — Ele coçou a sobrancelha esquerda, respirando fundo. — Os Sentinelas do Meio Tempo aprisionaram meu pai e só você pode nos ajudar. Bem, não só você exatamente, eu poderia pedir para qualquer outro membro da sua família, mas você parece ser o mais acessível e nós já nos conhecemos, apesar dessa primeira memória ser um pouco antiga e eu não me lembrar muito bem dela, mas para resolver isso basta eu…
— Ok! Eu entendi! — Chanyeol falava demais e Minseok precisava do silêncio para se concentrar. — Vamos por partes. Primeiro de tudo, quem são esses sentinelas? E o que é meio tempo?
Chanyeol puxou uma das cadeiras e sentou-se ao contrário, repousando os braços no encosto estofado e deixando as pernas abertas. Minseok acreditava que aquilo era um dos maiores sinais de deselegância e repetiu a mesma ação que ele, mas sentou-se de uma maneira mais civilizada.
— Os Sentinelas, com S maiúsculo, são os guardas do Meio Tempo, com M e T maiúsculos. O que acontece é… — Ele moveu o corpo, torcendo a coluna para pegar uma mochila preta que estava em cima da mesa. Minseok não havia visto aquilo. — Vou desenhar para te explicar melhor.
Tirando um caderno de espiral e um estojo de dentro da mochila, Chanyeol pôs-se a desenhar mesmo estando naquela posição desconfortável. Os ossos dele deveriam ser montados de alguma maneira diferente, porque não era possível que aquilo estivesse acontecendo daquela maneira.
Era bizarro, aliás, como Minseok já se sentia confortável perto de Chanyeol. Não eram velhos amigos se reencontrando, mal sabiam o nome um do outro; algo, contudo, os fazia convergir para a mesma direção — a familiaridade conjunta. Afinal, do que servia o conhecimento se não para ser compartilhado?
— Pronto! Terminei. — Chanyeol sorriu grande e mostrou uma folha de papel quadriculada toda riscada em grafite. — Os Viajantes são meta-humanos. Nós temos uma alteração em um dos nossos cromossomos que permite que viajemos no tempo, e essa condição é hereditária. Existem algumas pessoas no mundo com ela e nós temos o nosso próprio espaço, que é o que chamamos de Meio Tempo — apontou, tanto com a fala quanto com o dedo, para o desenho em suas mãos. — Você já assistiu Star Wars?
Minseok negou com a cabeça.
— Você nunca assistiu Star Wars? — Ele soava ofendido. — Que Deus tenha piedade dessa alma. Enfim… Quando a Millenium Falcon, a nave do Han Solo, viaja na velocidade da luz, eles entram meio que num túnel, e o Meio Tempo é mais ou menos desse jeito. Os Sentinelas são a polícia de lá, e eles tomam conta de todos os Viajantes e o que nós fazemos.
— Então, por silogismo, seu pai fez algo de errado para ser preso.
— É aí que tá! — Chanyeol deu um tapa contra a mesa. — Meu pai está sendo acusado injustamente de roubo.
— Como é?
— Viajar no tempo é algo muito sensível. Acredito que você saiba disso e que esteja familiarizado com a Teoria do Caos. — Minseok concordou, inclinando o corpo para a frente para sinalizar interesse. — O trabalho dos Sentinelas é garantir que não aconteça nenhum leva-e-traz de objetos ou informações que possam comprometer o fluxo do tempo. As regras para os Viajantes são bem claras e todos estão acostumados.
— Então por que prenderam seu pai?
Chanyeol ficou inquieto. Precisou levantar-se da cadeira e girá-la, voltando a se sentar de uma maneira normal, e isso acalmou os nervos do cientista. As pernas dele ainda estavam mais abertas do que o recomendado, entretanto.
— Eu e ele… nós fazemos justiça seguindo nossas próprias regras. Se você joga RPG — Minseok não jogava mas não quis interrompê-lo —, deve saber sobre o alinhamento moral, e o que nós fazemos pode ser encarado como um comportamento Caótico Bom e Neutro Bom.
Minseok semicerrou os olhos, analisando as palavras pouco a pouco.
— Vocês roubam.
— Não! Não se engane! — explicou Chanyeol, gesticulando. — Nós… devolvemos às pessoas o que é delas por direito. Por exemplo, artefato histórico de um povo ganês que foi roubado pelo governo inglês? Nós o devolvemos! Claro que tomamos todos os cuidados necessários e nunca fomos pegos, mas nunca fazemos isso por interesse próprio.
— Ou seja — disse Minseok, pausando para que sua próxima fala tivesse mais impacto: —, vocês roubam.
— Já disse que não.
— Vocês são o Robin Hood da ficção científica.
— É por aí! — Ele finalmente pareceu satisfeito com algo que saiu da boca de Minseok. — Bem, agora que já está tudo esclarecido, preciso explicar o que aconteceu com meu pai. A sua família, uma das ramificações do grupo Kim, tem posse de um artefato muito valioso que está com vocês desde o século XIX. Meu pai queria pegá-lo só para ver se realmente era tão valioso e cotado, e foi por isso que fomos até sua casa naquele dia, mas eu acabei estragando o plano. — Ele soava envergonhado. — Nós acabamos esquecendo disso, só que as acusações ressurgiram das cinzas e, mesmo sem as provas, eles querem levar meu pai para a Prisão Temporal, e esse é o pior lugar que alguém como nós pode ir. Acredite em mim quando eu digo que não quero te explicar.
Minseok também não queria saber.
— Então o que você sugere?
— Os Sentinelas acusam meu pai de ter roubado o artefato, então precisamos achá-lo e levá-lo para que eles possam ver que tudo não passa de um mal entendido.
— E você precisa da minha ajuda porque…
— Porque é algo que envolve sua família! — exclamou com os olhos arregalados. — E porque eu sei que você tem uma máquina do tempo. Não se assuste. Eu e meu pai pesquisamos tudo sobre todo mundo.
— Suponhamos que eu aceite — ponderou, fitando-o seriamente. — Por onde começamos?
— Precisamos traçar uma linha do tempo desde a primeira vez que o objeto foi visto até a última vez. Eu e meu pai já descobrimos a primeira, e foi em 1800 e alguma coisa, tenho tudo anotado no meu caderno. O que faríamos, então, seria visitar todas essas décadas para nos certificarmos de que o objeto não vai se perder. Quando chegarmos na última vez em que ele foi visto, é aqui que o pegamos.
Minseok respirou fundo. Quando pensava, sair numa viagem pelo tempo com um cara até que legal para salvar uma pessoa soava muito melhor em contraste com ficar no mundo atual vivendo essa vida pacata e sem eventos, fazendo as mesmas coisas de sempre. Era um dilema atípico porque esse não pedia uma decisão difícil; era literalmente diversão ou monotonia. Era um ponto no roteiro que os espectadores olham e gargalham, alegando ser uma escolha fácil demais, quase que jocosa.
Eles não sabiam, porém, e Minseok sabia agora, do medo que invadia os sentidos ao se ver frente a frente com uma decisão dessas. Era largar o familiar pelo desconhecido e essa era uma comparação que fazia sentido, uma decisão que realmente teria um grande impacto.
— Eu posso… Eu posso tirar um tempo para pensar?
— Idealmente, não. O julgamento do meu pai é em algumas semanas e nós estamos, ironicamente, correndo contra o tempo. A ideia original era eu chegar aqui, te explicar o que precisamos fazer, você concordar na mesma hora e partirmos em direção à Coreia que existia antes da interferência dos ianques.
— Nós não estamos vivendo uma comédia romântica, Chanyeol. Isso é a vida real. Decisões desse porte não podem ser tomadas assim.
— É, mas o meu pai está correndo risco de morte e você é o único que pode salvá-lo — disse, simplista, enquanto cutucava as unhas. — Sem pressão.
Encarou aquele cara alto que parecia tão pequeno e assustado. Ele parecia ter uma relação muito significativa com o pai e Minseok podia imaginar que passar por situações como aquela criava um laço um tanto importante. Ficou em silêncio por alguns segundos antes de responder:
— Ok, você venceu — confessou, frustrado, e abaixou a cabeça. — Posso, ao menos, conversar com meu amigo? Ele me aconselha nessas horas.
— Converse com ele o quanto quiser — disse Chanyeol enquanto guardava o caderno e o estojo na mochila —, mas se apresse. Por favor, Minseok. Eu tô te implorando, de verdade.
O olhar que Chanyeol o deu foi tão esperançoso que Minseok não conseguiu ignorar, mesmo quando já estava de costas para ele e a metros de distância.
Baekhyun o esperava do lado de fora da sala de reuniões enquanto digitava furiosamente em seu celular. Ele estava apoiado na parede, uma perna cruzada sobre a outra, parecendo um dos valentões dos filmes dos anos setenta. Quando Baekhyun o viu, tornou-se voraz.
— Vocês estavam discutindo o novo testamento da Bíblia ou alguma coisa assim lá dentro? Caramba, que demora! — exclamou, bloqueando o celular e ajeitando o corpo. — Quem é esse cara?
— Não surta, mas lembra daquilo que eu te contei que aconteceu comigo quando eu tinha cinco anos?
— Uhum.
— Então, aquele garoto cresceu e veio me procurar. Ele é um viajante do tempo nato, tipo, ele realmente tem um superpoder.
Baekhyun piscou os olhos como se fosse um personagem de desenho animado.
— Cara.
— Tô falando sério. Resumo da ópera: o pai dele foi acusado injustamente de ter cometido um crime, agora a polícia dos viajantes do tempo colocou ele na prisão e ele pode ser sentenciado à morte. — Minseok jogou-se contra a parede, bufando. — Quando foi que a minha vida virou um filme?
— Eu ainda tô chocado demais para sequer fazer um comentário humorístico — articulou de forma bem eloquente para quem alegava estar confuso. — Enfim… Ele apareceu aqui, do nada, por quê?
— Aparentemente, ele foi acusado de roubar um objeto que pertence à minha família, e agora eu e o Chanyeol precisamos voltar no tempo e traçar uma linha do tempo da primeira vez que o objeto apareceu até a última, só então o pegamos e levamos para essa tal polícia e voilà! O dia foi salvo.
Ele fez uma cara engraçada, parecendo pensar sobre e chegando a uma conclusão agradável.
— É um bom plano. Você tem ideia de qual objeto pode ser?
— A questão é essa! Ele não me disse e minha família tem mais bugigangas que um brechó de esquina.
— Bem… Acho que você vai ter que descobrir — finalizou. — Você vai aceitar?
— Ah… — Minseok fingiu pensar. — Eu não sei, de verdade.
— Você tá brincando, né? — Ele pareceu incrédulo. — Minseok, essa é a chance que você tem de acabar com todas as perguntas que você tinha sobre seu passado e colocar o DeLorean em uso como bônus! Vai dizer que você não quer tirar um tempo pra você e finalmente viver?
— Eu estou vivendo! — exclamou em ultraje.
— Será mesmo?
Aquilo fez Minseok pensar, pensar de verdade. Baekhyun nunca o julgava de verdade, apenas fazia comentários inofensivos e talvez causasse uma reflexão maior, mas aquela fala cortou fundo na mente de Minseok. Ele detestava se sentir assim, odiava precisar olhar para dentro de si. Veja bem, isso não acontecia por causa de uma baixa autoestima ou porque ele se odiava, era muito pelo contrário. Fazia psicanálise e estava num relacionamento muito mais gentil consigo, por vezes preferindo passar tempo sozinho do que com outra pessoa — narcisismo, talvez? Ele esperava que não.
Mas se autoconhecer, para alguém que se formou em ciências exatas, era um processo brutal porque envolve subjetividade, e Minseok rejeitava tudo que envolvia o subjetivo. Para ele, as coisas deveriam ser preto no branco, uma solução matemática milimetricamente pensada para não ser passível de erro. Ele nunca se perdoaria se fizesse algo sem pensar nas consequências, e talvez essa fosse a razão de não se arriscar tanto. Não havia perigo na zona de conforto. Se não há perigo, não há pânico.
Será que ele realmente não estava vivendo? Ele tinha uma rotina, óbvio. Acordar, trabalhar, sair com alguns amigos, cuidar da casa, trabalhar em casa, ler, estudar. Repete. Acordar, trabalhar, sair com alguns amigos, cuidar da casa, trabalhar em casa, ler, estudar. E repete. Acordar, trabalhar… Ele não conseguia lembrar-se da última vez que fez algo por prazer.
Ah, Deus. Talvez ele realmente não estivesse vivendo.
Baekhyun ainda o encarava e ele deve ter visto a mudança na expressão de Minseok quando ele percebeu como as coisas eram. As sobrancelhas dele estavam levantadas como se ele dissesse, "E aí?", e ele ostentava aquele meio sorriso típico dele. Minseok se deu por vencido.
— Você tem razão.
O amigo gargalhou em vitória e estendeu os braços, agarrando-se aos ombros de Minseok e o chacoalhando.
— Essa é a sua chance, Min. Use-a. Você só pode ser o personagem principal uma vez na sua vida.
Ele falava como se já tivesse passado por aquilo e, quer saber? Minseok confiava nas experiências passadas de Baekhyun.
Decidido, marchou de volta para a sala de reuniões, dando duas batidinhas na porta pesada de madeira antes de girar a maçaneta. Chanyeol ainda estava lá em toda sua glória, todo esparramado contra o estofo da cadeira. Ele tinha um Game Boy nas mãos e parecia concentrado, xingando baixinho quando errava alguma coisa. Minseok riu para dentro, pigarreando, novamente, para fazer ele prestar atenção em si.
— Chanyeol? — chamou e o homem virou o pescoço, guardando o console e levantando-se. — Eu tomei minha decisão.
Chanyeol parecia ansioso.
— Eu vou ajudar você.
— Isso! — sibilou, um meio grito meio sussurro, e jogou o punho direito fechado para cima como forma de comemoração. — Sério, cara, nem sei como te agradecer. Você não sabe o quanto isso significa pra mim.
Minseok sorriu ao ver a pura felicidade dele, e fez questão de acrescentar:
— Eu acho que sei, sim.
Eles trocaram olhares e se entenderam.
— Vamos logo, então! — exclamou Chanyeol, colocando todos os pertences que havia espalhado pela mesa dentro da mochila e ajeitando a postura. Ele parecia uma criança animada para viajar. — Só precisamos arranjar algumas roupas para você.
— O que tem de errado com as minhas roupas? — estranhou, unindo as sobrancelhas.
— Você tem uma máquina do tempo e nunca a usou? — Quando Minseok concordou veemente, ele continuou: — Inacreditável. Se nós mudarmos de ano, precisamos nos misturar com os originais de lá. Imagina usar jeans no século XVI? Ninguém pode suspeitar de nós.
Fazia sentido. Minseok quis bater em si mesmo.
— Nós vamos para quais épocas?
Chanyeol puxou um caderninho de um dos bolsos da jaqueta e — caramba, ele andava preparado. "É óbvio que ele vai andar preparado", pensou para si. "É literalmente a vida dele." O caderno estava um pouco amassado e parecia ser velho, e Minseok imaginou que aquelas páginas deviam ter sobrevivido a poucas e boas.
Ele o folheou violentamente, buscando por algo que parecia saber exatamente onde encontrar. Quando achou, foi como um pirata desenterrando um tesouro: sorriu orgulhoso e riu pelo nariz.
— O objeto foi visto pela primeira vez em 1897 aqui na Coreia do Sul nas mãos de um mercador chamado Kim Jongdae. Depois, foi visto em 1924 numa casa de festas parisiense, na bolsa de uma mulher chamada Charlotte Kim. O próximo registro dele foi em… nossa, esse negócio é mais viajado que eu e eu já rodei muito esse mundo — interviu, perdendo-se nos próprios pensamentos. — Enfim. Temos, agora, duas décadas nos Estados Unidos com Tiffany Kim e seu amável esposo Brian. O casal estava morando em Chicago em 1978, mas se mudou para Nova York em 1985. Depois, vemos o objeto na Coreia do Sul em 1994, na posse de Kim Gayoung.
— Essa é a minha mãe.
— E o ciclo se fecha novamente! — Ele finalizou o monólogo com uma reverência e guardou o caderno em seu devido lugar. — Ou seja, você precisa de roupas para o império coreano, para os anos 20, para os anos 70, 80 e 90. Não deve ser muito difícil. O retrô está em alta na moda atualmente.
Minseok vasculhou toda sua cabeça, procurando em seu armário roupas que fossem servir. Ele tinha algumas blusas antigas e uma jaqueta de couro. Se pedisse emprestado a Baekhyun aquela calça de cós alto e aquela fantasia de plebeu da dinastia Joseon… Talvez desse certo.
— Eu tenho roupas. Só preciso passar bem rápido no meu apartamento para pegá-las. Você já tá pronto?
— Se eu estou pronto? — Ele riu como se estivesse ofendido. — Eu nasci pronto. Eu meio que literalmente nasci pronto.
— Então é isso. Próxima parada: meu apartamento.
Chanyeol estendeu uma das mãos, ajeitando um dos braços da mochila sobre os ombros. Eles sabiam que estavam prestes a embarcar numa viagem perigosa. Era implícito por mais que não falassem abertamente sobre os riscos, mas Minseok não sentiu medo pela primeira vez em sua vida. Ele se sentiu confiante. Feliz. Dono de si mesmo.
Quando apertou a mão que lhe foi oferecida, ele soube que Chanyeol sentia o mesmo.
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