Shiro
- Não se preocupe. – A Arisu pede, trazendo minha atenção de volta para si. – Se algo tivesse acontecido à Gina eu saberia, eu conseguiria sentir.
- Então ela está bem? Não tem nada errado? – Questiono, essa seria realmente uma boa notícia para apaziguar um pouco o meu coração. Mesmo com a nossa briga, eu realmente pensei que ela voltaria para casa e me evitaria, não que iria sumir.
- Isso eu não posso garantir, só posso garantir que ela não tem nenhum machucado físico, de resto... Você sabe como ela é. – Arisu diz em suspiros, espero que ela esteja errada, espero que eu não saiba como a Gina é. Porque, se eu estiver certo, estou imaginando os piores cenários possíveis.
- Eu queria fazê-la feliz. – Comento, não sei de onde tiro forças para sorrir de verdade. – A coisa mais importante para mim é fazê-la feliz, ajudá-la a esquecer do passado e seguir em frente... Eu abriria mão de qualquer coisa para vê-la feliz Arisu, eu não suporto a ideia dela não estar feliz por minha culpa, por egoísmo meu.
- Ninguém tem culpa de amar e, entre todos os sentimentos que existem, o amor é o menos egoísta. – Ela me contradiz, talvez em outras situações, com outras pessoas, o amor não seja algo egoísta. Mas no meu caso é, deveria ser apenas amor fraternal, e eu desvirtuei esse sentimento.
- O amor não é um sentimento tão bonito e puro assim.
- Agora você parece ela falando. – Arisu afirma, não entendo bem o que quis dizer, foi algo muito repentino. – Não apedreje esse seu amor, não o trate como algo horrível, porque ele não é. Se você também começar a taxar o amor como algo monstruoso, aí sim que vocês dois nunca terão uma chance. Shiro, eu não quero te iludir, mas existe sim uma chance da Gina te amar, só que talvez nem ela saiba disso. A percepção que ela tem de amor é... É grotesco, se eu enxergasse o amor como ela enxerga, eu também desejaria nunca chegar perto desse sentimento.
Gina
Isso é errado, muito errado, eu não deveria estar aqui. Só que, se eu for embora, não poderei voltar. É uma decisão sem volta, ou eu vou ou eu fico, o problema é que eu não sei se consigo ir e, por mais errado que seja, eu sei que consigo ficar e mentir. O mundo está girando assim como a minha mente, eu não consigo tomar uma decisão, eu não consigo encontrar um porque concreto.
Não é só porque não quero ficar sozinha. Não é só porque quero observá-lo. Não é só porque eu quero entender. Não é só porque eu quero descobrir a verdade. Não é só porque estou confusa. Não é só porque algo extremamente estranho aconteceu. Eu não sei qual é o motivo deu estar aqui, o motivo deu estar fazendo isso, o motivo deu não conseguir ir embora.
Como eu vou ficar, tenho que me preparar para receber uma carga enorme de informação, carga essa que nunca imaginei em nenhum momento da minha vida. Eu mal consigo compreender o que presenciei até agora, não sei como irei lidar com o resto. As coisas pareciam mais simples hoje de manhã, por incrível que pareça até ontem estava sendo mais simples que hoje e, sem dúvidas, todo o meu passado foi muito mais simples do que esse momento.
Não posso falar com a Arisu, ela está internada. O Takeshi contaria tudo ao Shiro sem pensar duas vezes, a lealdade dele sempre vai pender pro meu irmão, diferente da lealdade da Arisu. E eu com certeza não posso falar com o Shiro, ele é o motivo dos meus problemas. Essa é a pior sensação de todas, você se dar conta de que, do nada, não tem mais um porto seguro, ao invés disso você tem mais um problema e nenhum refúgio.
Isso não é fácil, eu estou isolando mais da metade da minha mente para estar de pé e estar bem, ou fingindo estar bem. É por isso que, desde que acordei, não fui perturbada por nenhuma alucinação. Acho que esse pequeno milagre divino devolveu o mínimo da minha sanidade, o suficiente para eu me levantar, parar de chorar e trancar tudo de volta na minha mente.
- Desculpe por aquele surto, eu... Eu não estou passando pelo melhor período da minha vida. – Ele diz, vindo pro corredor onde estou, seria estranho para ele se eu ficasse lá dentro. Acho que o mais estranho disso tudo, do meu ponto de vista, é vê-lo assim. – Eu sinto muito mesmo Susu, não queria que seu dia se resumisse a me ver chorando.
O Shiro não chora, não desse jeito, não com tanta intensidade. Meu irmão não frequenta a igreja, nunca me contou sobre isso. Ele não tem nenhum problema que precisa de cirurgia, como hérnia de disco, e que causa uma dor intensa.
Tudo que eu vi até agora... Isso me provou que eu não o conheço, não o conheço nem um pouco. Eu não sei nada sobre a pessoa com quem convivo há dezesseis anos, eu não sei nada sobre a primeira pessoa pra quem me entreguei por vontade própria. A pessoa com quem eu dividia a cama, o quarto, com quem eu dividia a minha vida.
Realmente, foi tudo mentira, tudo não passou de uma mentira. É capaz disso não passar de um jogo pra ele, na verdade, eu não sei o que se passa na cabeça dele, muito menos na minha. Então, para entendê-lo, nos entender, eu vou entrar nesse jogo, vou fazer como ele sempre fez comigo. Eu conhecia um Shiro totalmente diferente, agora é a vez dele de conhecer uma Gina completamente diferente.
Irei descobrir, com esse disfarce, tudo que ele já escondeu de mim. O Shiro não vai conseguir enxergar como a Arisu, ele vê somente a mesma imagem que vejo quando encaro um espelho, uma pessoa que não sou eu. Ele já fez isso comigo uma vez, ganhou minha confiança através de mentiras e foi capaz de descobrir tudo, ou quase tudo, sobre mim. Agora é a minha vez de fazer isso, eu quero descobrir a verdade, a verdade absoluta.
- Sabe Shiro, eu sei que acabamos de nos conhecer, mas... Eu sou sua irmã e, como irmã, eu estou disposta a te ajudar, eu quero te ajudar.
Ele me abraça tão repentinamente que me deixa sem reação, senti-lo soluçando contra mim e me apertando é uma sensação nova, estranha. Reproduzo gestos de consolo que conheço, uma atitude quase mecânica, porque eu não coloco nenhuma emoção nessas ações. Minha mente voou pra longe, bem longe, ela está perdida no fato de o quão facilmente ele me trocaria por outra “irmãzinha”.
Tomiko
- Vai com calma! Você não estava morta?! – O Nagisa exclama depois deu, literalmente, ter invadido o quarto dele com meu pai. Mas, como meu pai queria evitar confusão, ele apenas pegou a menininha com olhos bicolores e saiu do quarto com ela, me deixando sozinha com o Nagisa. – Eu não sei o que está acontecendo, mas sai de cima de mim Tomiko!
- Não. Sim. Não. – Respondo da forma mais rápida que consigo, porém só recebo um olhar completamente confuso dele. – Não vou ir com calma. Sim, estou morta. Não, eu não vou sair daqui, está confortável.
- Mas você está sentada em cima de mim!
- É porque eu preciso da sua atenção total, assim eu tenho sua atenção, não tenho? – Indago, não é fácil conseguir monopolizar a atenção de alguém, você precisa de táticas para isso. Minha tática é aparecer de surpresa, pular em cima da pessoa e começar a falar antes que ela tenha chance de reagir ou entender o que está acontecendo.
- Fale logo para que eu possa fazer as minhas perguntas. – Ele manda, tenho que pensar numa forma de falar dela sem falar nela, espero que seja mais fácil do que parece.
- Quero conversar com você sobre... – Me interrompo, não posso falar o número dela, não posso falar as características físicas e também não posso mencionar que é uma escrava. – Quero falar sobre os seus sonhos.
- É o que?
- Sonhos. Seus sonhos. Me conte sobre eles. – Peço, eles se conheceram num sonho, ele só encontra ela através de sonhos. Acredito que não seja comum você sonhar com uma pessoa igual a Sessenta e três, minha esperança é que a primeira coisa que venha a mente dele seja ela.
- Eu acho que eu realmente tive uns sonhos bizarros... Mas por que quer saber disso? – Ele pergunta e eu não posso explicar, eu preciso de um voto de confiança do Nagisa sendo que nem isso eu posso pedir pra ele. – Eu acho... Não, tenho certeza, você apareceu num dos meus sonhos.
Tá, não era bem de mim que eu queria saber, mas talvez estejamos no caminho certo. A primeira vez que me deparei com o Nagisa foi num sonho dele, ou melhor, um sonho dela, eu tinha ido atrás dela. Podemos estar falando desse sonho, os sonhos onde ele me via junto a Sessenta e três.
- E como foi esse sonho?
- Estranho. – Ele fala, espero que seja um estranho tipo com uma garota extremamente pequena, fofa e bondosa. Porém o Nagisa foi vago demais nessa estranheza, eu preciso de mais detalhes. – Basicamente, eu estava brigando com você porque queria te arrastar a força pra algum lugar.
Fico calada, tentando me lembrar disso, porém o Nagisa nunca fez isso comigo. Eu não me esqueceria disso, até porque eu acabaria acertando um tapa na cara dele se o Nagisa tivesse tentado fazer isso comigo, você não se esquece de um tapa.
- Quando você sonhou isso? – Questiono, minha memória não é falha, ela é muito boa. Nunca tinha dado valor a minha memória, mas comecei a perceber o quanto a memória nos ajuda quando virei amiga da Sessenta e três.
- Não sei bem, acho que sonhei com isso antes de acordar aqui. – Responde, então foi um sonho recente, um sonho recente em que eu não estava. Então foi exatamente isso, apenas um sonho, um sonho normal. – Foi bem esquisito na verdade, eu tive vários sonhos e não consegui entender nenhum.
- Outro sonho. Algum com uma pessoa estranha.
- Todos tinham gente estranha, inclusive esse em que você apareceu, também tinha gente estranha. – Ele conta, assim irá ficar realmente difícil, preciso dar um jeito de mudar o seu foco.
- Estou me referindo a sonhos mais antigos, bem mais antigos. – Afirmo, começando a ficar inquieta, não é possível que o Nagisa não se lembre mais dela. Ele tem que se lembrar, é a única pessoa que pode ajudá-la. –Alguma outra vez que você já tenha sonhado comigo.
- Essa foi a primeira vez que sonhei com você. – Ele diz, com tanta convicção que chega a abalar a minha confiança, espero que nós dois estejamos errados.
- Te-Tem certeza? – Pergunto, sem conseguir manter minha voz firme diante da dúvida. Se ele não se lembra de sonhar comigo, significa que ele não se lembra dela. É oficial, agora sim eu consegui chegar no fundo do poço, essa era minha última esperança e minha única ideia. – Nagisa, por favor... Por favor, lembra, você precisa lembrar.
- Lembrar o que? Do que você está falando Tomiko?
Meus olhos se fixam no brinco em sua orelha, o brinco dividido entre ele e a Sessenta e três. Os brincos que, até certo ponto, eu não sei se são realmente úteis. Eles estão mantendo a Sessenta e três inteira, estão preservando a essência da garota que eu conheço, mas foi o que Akari disse, que preço esses brincos estão cobrando ou irão cobrar por isso?
Minha mão formiga, tentada a tirar aquele brinco da orelha do Nagisa, nem que eu precisasse arrancar sua orelha. Se eu não posso protegê-la dos humanos, talvez eu consiga ao menos protegê-la do interesse dos Deuses que eu nem ao menos sei qual é, mas existe sim um interesse. Tirar o brinco a transformaria na pior versão de si mesma, porém seria uma versão que não sofreria, muito pelo contrário, ela seria uma garota que faria quem a machucou sofrer.
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