O que pensa que está fazendo? — Lauren olhou, cautelosamente, para o marido, enquanto desafivelava as sandálias, na porta dos fundos da casa.
— Só vou dar uma volta.
Samuel fechou os olhos com raiva. Nunca entenderia a mania de Lauren sair sozinha para longos passeios na praia. E especialmente naquela tarde de final de agosto, não só pelas nuvens escuras sobre a baía de Cape Cod, mas também porque havia hóspedes. A mãe e as irmãs de Samuel haviam acabado de chegar para uma última visita, antes que ele fechasse a casa de veraneio.
— Só lhe peço que seja uma boa anfitriã por umas três, quatro horas — ele resmungou. — Você é minha mulher. Será que faria o favor de ficar por aqui e fazer seu papel apenas por uma tarde?
Samuel passou os dedos pelos cabelos com alguns fios prematuramente grisalhos.
Quando Lauren se casara com ele, dez meses atrás, os cabelos prateados foram uma das coisas que mais a haviam atraído. Jamais conhecera um homem tão sofisticado, e mal pudera acreditar na própria sorte quando, após um namoro de apenas seis semanas, Samuel a pedira em casamento.
Porém, agora, os cabelos e os lábios sempre contraídos cada vez mais lembravam-na de seu próprio pai. Principalmente quando Samuel começava a pregar sermões sobre postura e comportamento. Na noite anterior, deitada na cama, Lauren se pusera a imaginar o que aconteceria, caso fizesse as malas, entrasse no seu carro Saab e fosse embora. Sozinha. Aquele pensamento a enchera de satisfação.
— Estarei de volta em meia hora. Por favor, Sam, farei o papel que você quiser quando voltar. Mas agora preciso ficar meia hora sozinha.
Com rudeza, ele a sacudiu pelos ombros.
— Não! Agora mesmo você vai servir uma bebida para minha mãe e para minhas irmãs. Elas nunca mudarão de ideia a seu respeito se não parar de fugir sempre que...
— Nunca irão mudar de ideia a meu respeito de qualquer maneira.
Lauren se libertou do marido, esfregando os braços machucados. Agora ele começara também a ter modos bruscos, o que a fazia pensar se suas maneiras ultracivilizadas não seriam apenas uma fachada.
— Se pelo menos você tentasse... — insistiu Samuel.
— Não sou igual a elas.
Lauren ergueu o queixo, mas o tremor na voz traía a frustração, o sentimento enorme de inutilidade.
— Você não se casou com uma debutante de Newport, Sam. Sou filha de um advogado de classe média, da humilde Mansfield, Nova Jersey. Não pertenço à alta sociedade. Tenho uma carreira e metas a alcançar que não têm nada em comum com torneios de polo ou bailes de gala. Sua mãe e suas irmãs terão de conviver comigo do jeito que sou.
Virando-se em direção à praia, Lauren tomou fôlego e acrescentou:
— E você também.
Caminhando pela praia particular, examinando o céu ameaçadoramente cinzento sobre as águas, Lauren pensou que talvez devesse voltar. Virou-se e olhou para a casa. Mesmo a distância, podia visualizar Sam, todo de branco, e as três loiras esguias, com roupas claras de linho, apoiados na balaustrada do andar de cima. O sol do fim de tarde realçava os corpos bronzeados e fazia brilhar os copos em suas mãos. O som de uma risada feminina chegou até Lauren, trazida pela brisa marítima.
Ela suspirou, pensando em ficar na praia só mais dez minutos. Consultou o relógio e continuou a caminhar, feliz por estar sozinha, uma solidão que sempre apreciou, desde criança. Somente nesses momentos podia ser ela mesma, sem precisar fingir.
Entregou-se à carícia da areia morna sob os pés descalços, à cadência relaxante das ondas quebrando na praia.
Dez minutos depois, decidiu que voltaria quando começasse a chover. Ouvia trovões ao longe, mas o sol continuava a brilhar. Tinha tempo, até que a chuva desabasse. Quando alcançou a praia pública, viu que estava deserta. O estacionamento à direita, além das dunas, também. Ouviu-se o barulho de um trovão, e ela se assustou.
Contrariada, começou a voltar para casa.
Lauren abriu os olhos.
Estava deitada de costas, a chuva caía. Sob seu corpo, em vez de areia, sentiu a dureza do asfalto. Entrou em pânico quando tentou mover os braços, depois as pernas, e não conseguiu. Mal podia respirar, e seu coração batia descompassadamente. A chuva parecia penetrar em seu corpo, machucando.
Um trovão ressoou, seguido por raios que riscaram o céu escuro.
Fora atingida por um raio e desmaiara, compreendeu, espantada.
Bem devagarinho, ergueu a cabeça. Olhando ao redor, constatou que havia sido atirada a uma boa distância da praia até o estacionamento. Quando abaixou a cabeça novamente, sentiu uma dor intensa.
Passou-se algum tempo, até conseguir sentar-se. Viu sangue, muito sangue, em seu corpo e sobre o asfalto. Todos os membros doíam. Sabia que havia quebrado algumas costelas, quem sabe fraturara a clavícula. Com dificuldade, ergueu a mão, tocou levemente o rosto, fazendo uma careta de dor. A face direita estava inchada e pegajosa de sangue.
A casa mais próxima era um chalé a alguns metros de distância. Havia uma caminhonete vermelha parada na porta e luzes nas janelas. Lauren tentou levantar-se, mas as solas dos pés estavam queimadas, e a dor era insuportável. Então, rastejou vagarosamente debaixo da chuva até que, finalmente, após o que pareceu uma eternidade, alcançou a porta de entrada do chalé.
Caiu pesadamente, tentou bater, mas não conseguiu erguer a mão. Experimentou gritar, porém não foi possível emitir um som sequer.
Diversas vezes bateu com o ombro na porta, até que, finalmente, abriram-na, e Lauren tombou sobre um tapete.
— Oh, meu Deus! — gritou uma mulher. — Frank! Chame a polícia!
E Lauren desmaiou.
Quando voltou a si, percebeu que podia se mover. Tubos brilhantes erguiam-se acima de seu corpo, e ela ficou olhando, numa espécie de hipnótica apatia. Ouvia um rumor abafado e sentia cheiro de antisséptico. Presumiu que estava sendo levada de maca pelo corredor de um hospital, e sentiu-se aliviada. Iriam tomar conta dela.
Durante as horas que se seguiram, permaneceu em um estado de semiconsciência. Cuidaram das queimaduras nos pés e trataram de sua clavícula. Saíra de casa sem nenhum documento, e as pessoas ao redor ficavam perguntando seu nome, mas Lauren não conseguia falar direito e ninguém entendia os sons que emitia. Deram-lhe um lápis para escrevê-lo, porém seus dedos não conseguiam segurá-lo.
Mesmo em meio ao grande torpor, Lauren percebia, claramente, que algo estranho acontecia, cada vez que alguém a tocava: imagens distorcidas, como em um aparelho de televisão com defeito, surgiam perante seus olhos e logo desapareciam, antes que pudesse dar-se conta do que representavam, e ela se sentia invadida por estranhas sensações.
Havia algo naquele fenômeno que lhe era muito familiar, mas não conseguia lembrar o porquê. Exausta e confusa, chegou à conclusão de que as ondas elétricas de seu cérebro foram abaladas pelo raio que a atingira na praia, e rezou para que aquilo fosse temporário.
Finalmente, transportaram-na para um quarto, onde ficou sozinha. Adormeceu, mas foi acordada no meio da noite por uma enfermeira loira, de meia-idade.
— Você é Lauren Michelle Jauregui Claflin?
— Sim, sou.
Sorriu, mais por conseguir falar do que propriamente por lembrar-se de quem era.
A enfermeira fez um sinal e alguém entrou no quarto. Era Sam. Pela primeira vez em muito tempo, Lauren alegrou-se em vê-lo, porém, quando o marido chegou perto, ela percebeu seu olhar de espanto. Bem, era de se esperar. Ela devia estar com uma péssima aparência. Apesar dos problemas que atravessavam, rever Samuel era reconfortante. Lauren tentou alcançá-lo, e ele pegou sua mão, relutante.
Imediatamente, algo dentro de sua cabeça foi acionado. Ela viu seu próprio rosto em meio a luzes e sombras. Deu-se conta de como estava inchada, dos ferimentos nas faces e na testa, dos cabelos negros chamuscados e em desalinho, e soube, com absoluta certeza, que essa era a visão que John estava tendo dela.
Não! Que não esteja acontecendo de novo! Rezou, porque subitamente entendeu, horrorizada, o motivo das visões estranhas: ela estava lendo os pensamentos das pessoas.
Já havia tido contato com aquele dom muito tempo atrás, e isso quase arruinara sua vida. Agora, o raio que a atingira havia feito com que voltasse.
Ver a si mesma através dos olhos de Samuel já era ruim, porém, além disso, ele lhe transmitiu outras sensações. Uma onda de pura repulsa a envolveu, sem nenhum traço de amor, ternura ou afeição. O que Lauren sentiu, ou melhor, o que Samuel sentiu e transmitiu através de seu toque foi total repugnância. Ele não a via como uma mulher querida que precisava de compaixão, mas como algo desagradável a ser enfrentado. Uma coisa irritante, feia e nojenta.
— Lauren! Você está me machucando! Largue! — Involuntariamente, ela havia apertado muito a mão do marido. Tentou soltar os dedos, mas eles não se moviam. Samuel procurou se libertar, e com a ajuda da enfermeira conseguiu abrir a mão de Lauren.
— Pronto! Não é bom ver o seu marido aqui? Posso preparar uma cama, se quiser, para ele passar a noite com você. Não seria...
— Faça ele sair. Deixe-me em paz, Samuel!
A voz de Lauren soou trêmula. Samuel e a enfermeira se entreolharam.
— Vamos lá, querida.
A enfermeira pousou a mão no braço de Lauren e, novamente, ela viu seu próprio rosto, os olhos aterrorizados, e soube o que a outra mulher estava pensando... queria dar-lhe um sedativo bem forte.
— Não!
Lauren enxotou a enfermeira desajeitadamente, fazendo uma careta de dor.
— Vá embora! Não me toque!
Samuel agarrou seu ombro. A imagem voltou: sentiu e viu a repulsa do marido por ela.
— Lauren, pare com isso. Agora! — gritou ele.
— Não me toque! Deixe-me em paz! — ela berrou, contorcendo-se.
Outras pessoas entraram no quarto. Mãos fortes a seguraram, enquanto se debatia, sua mente era um caleidoscópio de imagens e sensações desconexas. Alguém machucou seu braço, ao tentar segurá-la. Lauren sentiu o frio do álcool sendo esfregado na pele, seguido da picada de uma agulha.
— Deixem-me só — gemeu, enquanto seus músculos relaxavam e as pálpebras ficavam pesadas. — Quero ficar sozinha. Foi isso o que sempre quis.
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