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História A canção de Jercy - A princesa Reyna


Escrita por: MaxPosey

Notas do Autor


Olá semideuses!
Esse foi um dos capítulos maiores de todos até agora hahahaha.
Já ouviram falar de busca e apreensão? - Pois é teremos algo parecido aqui kkkkk.
O destino não tem sido amigável com nossos hérois, mas até quando o amor resiste?
Vamos descobrir...
Boa leitura.

Capítulo 12 - A princesa Reyna


Fanfic / Fanfiction A canção de Jercy - A princesa Reyna

Acordei com os olhos vermelhos piscando para o sol. Estava congelado, meu ombro direito exposto às brisas da janela que se abria para o mar. O espaço ao meu lado estava vazio, mas o travesseiro conservava a forma de Jason e as cobertas exalavam nosso cheiro.

Eu passara tantas manhãs sozinho naquele quarto, enquanto ele visitava a mãe, que não estranhei sua ausência. Meus olhos se fecharam e mergulhei de novo nos meandros do sonho. O tempo passou, o sol ardia no peitoril da janela. Os pássaros estavam despertos, assim como os servos e até os homens. Ouvia suas vozes na praia e na sala de exercícios, o ruído das tarefas domésticas. Sentei-me na cama. As sandálias de Jason estavam reviradas ao lado da cama, esquecidas. Aquilo não era incomum; ele ia descalço a muitos lugares.

Saíra para o desjejum, pensei. E não quisera me acordar. Metade de mim desejava permanecer no quarto até que ele voltasse, mas isso seria covardia. Agora eu tinha um lugar ao seu lado e não permitiria que os olhares dos servos me incomodassem.

Veste a túnica e fui ao encontro dele.

Ele não estava no grande refeitório cheio de servos atarefados que retiravam os pratos e as travessas de sempre. Não estava na sala de conselho de Grace, de paredes recobertas com tapetes púrpura e armas dos antigos reis de Fítia. Não estava no quarto onde costumava tocar lira. O baú onde guardávamos os instrumentos jazia abandonado no meio do recinto.

E também não estava lá fora, entre as árvores nas quais gostávamos de subir em outros tempos. Nem na praia, junto às rochas escarpadas onde esperava sua mãe.

Não o vi no campo de exercícios, onde homens suados entrechocavam suas espadas de madeira.

Não preciso dizer que o pânico me tomou como uma coisa viva, fugidia e surda à razão. Meus passos se aceleraram. Percorri a cozinha, o porão, as despensas repletas de ânforas de azeite e vinho. Não o encontrei.

Ao meio-dia, fui até o quarto de Grace. Pode-se medir a intensidade de meu desespero pelo fato de eu ter ousado fazer isso: jamais falara ao velho a sós. Os guardas postados à porta me detiveram quando tentei entrar. O rei descansava, disseram, estava sozinho e não queria ver ninguém.

— Mas Jason... — balbuciei, esforçando-me para não dar vexame e satisfazer a curiosidade que vi nos olhos deles.

— O príncipe está aí?

— O rei está sozinho — repetiu um dos guardas.

Resolvi então procurar Leo, o idoso conselheiro que cuidara de Jason quando criança. O medo quase me paralisava a caminho de seu quarto, um espaço exíguo bem no centro do palácio. Ele tinha diante de si umas tabuinhas de argila onde estavam registradas as marcas feitas pelos homens na noite anterior, angulosas e entrecruzadas, confiando suas armas à guerra contra Troia.

— O príncipe Jason... — balbuciei com a voz embargada pelo pânico. — Eu não consigo encontrá-lo.

Ele ergueu a cabeça, um tanto surpreso. Não me ouvira entrar; sua audição era ruim; e quando seus olhos cruzaram meu olhar, percebi que eram opacos, recobertos de catarata.

— Então Grace não lhe contou — disse ele em tom suave.

— Não. — Minha língua parecia pedra dentro da boca, tão grande que eu mal conseguia deslocá-la para falar.

— Sinto muito — murmurou ele amavelmente.

— Está com a mãe. Ela o levou ontem à noite, enquanto você dormia. Eles partiram. Ninguém sabe para onde.

Mais tarde, percebi as linhas vermelhas que minhas unhas haviam cavado em minhas palmas. Ninguém sabe para onde. Para o Olimpo, talvez, aonde eu não poderia segui-lo. Para a África, para a Índia. Para alguma aldeia onde jamais me ocorreria procurá-lo.

As mãos gentis de Leo me conduziram de volta ao meu quarto. Minha mente saltava em desespero de um pensamento a outro. Voltaria para junto de Quíron a fim de obter conselho. Iria para o campo, gritando seu nome. Tétis devia tê-lo drogado ou enganado. Por vontade própria ele não partiria.

Caminhando pelo quarto, imaginei a cena: a deusa debruçada sobre nós, fria e branca diante do calor de nossos corpos adormecidos. Seus dedos mergulhando na pele de Jason enquanto o levantava, seu pescoço tem a cor da prata à luz da lua que entra pela janela. O corpo dele jaz sobre o ombro de Tétis, adormecido ou encantado. Ela o leva de mim como um soldado que carrega um cadáver. É forte; apenas com uma mão, impede-o de cair.

Não me perguntei por que ela o arrebatou. Eu sabia. Ela desejava separar-nos.

Era a primeira oportunidade que tinha desde nosso regresso da montanha. Irritei me por termos sido tão tolos. Sem dúvida, ela faria aquilo; como eu pudera supor que gozávamos de plena segurança? Como a proteção de Quíron se estenderia até ali, onde ele jamais estivera?

Tétis o conduziria para as cavernas do oceano e lhe ensinaria a odiar os mortais.

Sustentá-lo-ia com o alimento dos deuses e cauterizaria o sangue humano em suas veias. Iria moldá-lo numa figura a ser pintada em vasos, a ser cantada em versos por suas façanhas diante de Troia. Eu o imaginava revestido de uma armadura negra, coberto por um elmo escuro que só deixaria à mostra seus olhos, com grevas de bronze protegendo seus pés. Eu o vejo com uma lança em cada mão, e ele não me reconhece.

O tempo se dobrou sobre si mesmo, fechou-se sobre mim, sepultou-me. Lá fora, a lua se avolumou até ficar cheia. Dormi pouco e comi menos ainda; a dor me imobilizava no leito como uma âncora. Somente a lembrança animadora de Quíron me devolveu as forças. Você agora não desiste tão facilmente quanto antes.

Procurei Grace. Ajoelhei-me diante dele num tapete de lã brilhante, entretecida de púrpura. Ele ia falar, mas fui mais rápido. Uma de minhas mãos envolveu-lhe os joelhos e a outra subiu para tocar seu queixo. A postura do suplicante. Era um gesto que eu já vira muitas vezes, mas nunca executara. Estava agora sob a proteção dele. Grace devia me tratar com desvelo, segundo a lei dos deuses.

— Diga-me onde ele está — eu pedi.

O rei não se moveu. Eu podia ouvir as batidas de seu coração contra o peito.

Ignorava até então a que ponto uma súplica acarretava intimidade, proximidade.

Suas costelas eram agudas sob meu queixo; a pele de suas pernas afinara e se distendera por causa da idade.

— Eu não sei — ele disse, e suas palavras ecoaram pela câmara e assustaram os guardas. Senti seus olhares cravados em minhas costas. Suplicantes eram raros em Fítia; Grace era um rei bom demais para que medidas tão desesperadas fossem necessárias.

Apertei-lhe o queixo, puxando seu rosto contra o meu. Ele não resistiu.

— Não acredito em você — eu disse.

Passou-se um momento.

— Deixem-nos — ordenou Grace aos guardas. Eles bateram os pés impacientes, mas obedeceram. Ficamos sós.

Grace se inclinou até junto de minha orelha e sussurrou: — Ciros.

Um lugar, uma ilha. Jason.

Quando nos erguemos, meus joelhos doíam como se tivesse estado prosternado por muito tempo. Talvez tivesse. Não sei quantos minutos se passaram enquanto permanecemos naquela comprida sala dos reis de Fítia. Nossos olhos estavam agora no mesmo nível, mas os dele evitavam os meus. Respondera à minha pergunta porque era um rei piedoso, porque eu a fizera como suplicante e porque os deuses assim o exigiam. Não agiria de modo diferente. O ar entre nós estava carregado, pesado, como que imbuído de cólera.

— Eu vou precisar de dinheiro — disse-lhe. Nem sei de onde vieram essas palavras. Nunca falara assim antes a ninguém. Porém nesse momento eu nada mais tinha a perder.

— Procure Leo. Ele o dará a você.

Acenei de leve com a cabeça. Deveria ter feito mais; deveria ter me ajoelhado de novo, agradecido sua condescendência, esfregado a fronte naquele tapete caríssimo. Não o fiz. Grace foi até a janela; o mar ficava oculto pela curva da casa, mas podíamos ouvi-lo, o silvo distante das ondas contra a areia.

— Pode ir — disse-me ele. Queria se mostrar frio e distante, concluí; um rei aborrecido com seu súdito. Porém tudo o que escutei foi seu cansaço.

Acenei de novo e parti.

O ouro que Leo me deu bastaria para duas viagens de ida e volta a Ciros. O capitão do navio ficou embasbacado quando o pus em suas mãos. Seus olhos faiscaram, calculando o valor da quantia e o que poderia comprar com ela.

— Pode me levar?

Minha ansiedade aborreceu-o. Não gostava de perceber desespero naqueles que embarcavam; pressa e liberalidade escondiam crimes. Porém a quantidade de ouro venceu sua objeção. Relutante, acabou por concordar, entre resmungos, e mandou me para minha cabine.

Eu nunca estivera no mar antes e fiquei surpreso com a lentidão da viagem. O barco era um grande cargueiro bojudo que fazia o giro das ilhas levando lã, azeite e móveis do continente para os reinos distantes. A cada noite, tocávamos um porto diferente para nos reabastecer de água e descarregar mercadoria. Durante o dia, eu ficava de pé na proa vendo as ondas sendo cortadas pelo negro casco alcatroado de nossa embarcação, atento a sinais de terra. Em outra ocasião, tudo aquilo me encantaria: os nomes das partes do navio, adriça, mastro, popa; a cor da água; o cheiro puríssimo dos ventos. Entretanto, mal prestava atenção a essas coisas. Só pensava na pequena ilha flutuando em algum lugar à minha frente e no rapaz de belos cabelos que lá esperava encontrar.

A baía de Ciros era tão pequena que não a vi senão depois de contornarmos a orla rochosa da ilha, ao sul, e já estarmos quase dentro. Nosso barco se espremeu por entre os braços estreitos que a fechavam e os marinheiros se debruçaram na amurada, segurando o fôlego e de olhos fixos nos paredões que nos ladeavam. Uma vez dentro da baía, as águas eram calmas e os marinheiros precisaram remar pelo

restante do trajeto. Manobra difícil: não tive nenhuma inveja do capitão.

— Chegamos — disse ele, mal-humorado. Eu já me dirigia para o passadiço.

Um paredão rochoso se erguia a pique à minha frente. Degraus cavados na pedra serpenteavam até o palácio, então comecei a subir. No alto, havia algumas árvores mirradas e cabras; o palácio, modesto e de aparência tristonha, era feito de pedra e madeira. Não fosse a única construção à vista, eu jamais o tomaria por uma residência real. Cheguei à porta e entrei.

O saguão era estreito e escuro; o ar, saturado com cheiro de cozinha. No fundo, viam-se dois tronos vazios. Alguns guardas matavam o tempo nas mesas, jogando dados. Ergueram a cabeça ao me ver.

— O que quer? — perguntou um deles.

— Vim ver o rei Ramirez — respondi. Elevei o queixo para acharem que eu era um homem de alguma importância. Vestia a melhor túnica que trouxera — pertencente a Jason.

— Eu vou — disse um dos guardas aos camaradas. Atirou ruidosamente o dado e saiu. Grace jamais toleraria esse descaso; tratava bem seus homens e deles esperava muito em troca. Tudo naquele salão parecia gasto e cinzento.

O homem voltou.

— Venha — disse ele. Eu o segui com o coração aos pulos. Estudara bem o que iria dizer. Estava pronto.

— Aqui. — O guarda mostrou uma porta aberta e voltou para seus dados.

Cruzei a soleira. Dentro, sentada diante dos últimos resquícios de um fogo, estava uma jovem mulher.

— Sou a princesa Reyna — apresentou-se ela. A voz soou clara e um tanto infantil pela estridência, vibrante após o silêncio do saguão. A jovem tinha o nariz arrebitado e a face aguda como a de uma raposa. Era bonita e sabia disso.

Recompus-me e fiz uma reverência.

— Sou estrangeiro e conto com a benevolência de seu pai.

— Por que não com a minha benevolência? — Sorriu, inclinando de leve a cabeça.

Ela era surpreendentemente pequena: de pé, mal chegaria ao meu peito.

— Meu pai é velho e doente. Faça o seu pedido a mim e procurarei atendê-lo. — Afetou uma postura majestosa, posicionando-se de modo que a luz da janela a iluminasse por trás.

— Estou à procura de meu amigo.

— Como?! — Suas sobrancelhas se arquearam. — E quem é ele?

— Um jovem — respondi cautelosamente.

— Entendo. Temos alguns deles aqui. — O tom era brincalhão, autoconfiante.

Seus cabelos negros lhe caíram pelas costas em cachos espessos. Sacudiu a cabeça para balançá-los e sorriu de novo para mim.

— Talvez deva começar dizendo-me seu nome.

— Quirônida — disse eu. Filho de Quíron.

A jovem franziu o nariz ante a estranheza desse nome.

— Quirônida. E...?

— Procuro um amigo que deve ter chegado aqui há cerca de um mês. É de Fítia.

Alguma coisa perpassou por seus olhos, se é que não imaginei isso.

— E por que o procura? — quis saber a princesa. Seu tom agora não era tão amistoso quanto antes.

— Trago uma mensagem para ele. — Teria sido bem melhor ser conduzido à presença do rei velho e doente. Os olhos dela cintilavam como mercúrio, sempre à espera de algo novo. Ela me constrangia.

— Hum! Uma mensagem. — Sorriu recatadamente, tocando o queixo com a unha pintada. — Uma mensagem para um amigo. E por que eu deveria lhe dizer se conheço ou não esse rapaz?

— Porque é uma princesa poderosa e eu sou seu humilde suplicante. — Ajoelhei me.

Essa atitude lhe agradou.

— Bem, talvez eu conheça o tal rapaz. Ou talvez não! Pensarei a respeito. Você ficará para o jantar e aguardará minha decisão. Se tiver sorte, até dançarei para você com minhas mulheres. — Levantou subitamente a cabeça. — Já ouviu falar das mulheres de Reyna?

— Lamento dizer que não.

Ela fez uma careta de decepção.

— Todos os reis mandam suas filhas para cá para que sejam educadas. Só você não sabe disso.

Curvei a cabeça em sinal de pesar.

— Passei minha vida inteira nas montanhas e ainda não vi quase nada do mundo.

Ela franziu de leve o cenho e em seguida apontou para a porta: — Então até o jantar, Quirônida.

Passei a tarde no pátio empoeirado do palácio. Esse se erguia no ponto mais alto da ilha, recortado contra o azul do céu, e a vista dali era bonita, apesar da sordidez do local. Sentei-me e procurei recordar tudo o que já ouvira a respeito de Ramirez.

Era conhecido como um rei afável, mas fraco e de recursos limitados. A Eubeia, a oeste, e a Jônia, a leste, cobiçavam suas terras havia muito tempo; era de crer que logo uma delas lhe declarasse guerra, a despeito da aridez de suas costas.

E, se soubessem que na verdade quem governava era uma mulher, isso aconteceria mais cedo ainda.

Quando o sol se pôs, voltei ao saguão. Tochas haviam sido acesas, mas elas só pareciam aumentar ainda mais a penumbra. Reyna, com um diadema de ouro cintilando nos cabelos, conduziu um ancião até a sala. Vinha encurvado e tão coberto de mantos que eu não podia adivinhar sequer onde seu corpo começava.

Ela o acomodou num trono e gesticulou com firmeza para uma serva. Eu permanecia a distância, entre os guardas e alguns outros homens cuja função ainda não conseguira determinar. Conselheiros? Primos? Tinham todos a mesma aparência gasta do resto da sala. Só Reyna era diferente, com suas faces rosadas e seus cabelos exuberantes.

Uma serva apontou para as mesas e os bancos desconjuntados; e eu me sentei. O rei e a princesa não nos fizeram companhia; permaneceram em seus tronos ao fundo da sala. A comida chegou — bastante substanciosa na verdade —, mas eu só tinha olhos para a porta de entrada. Estava indeciso quanto a me fazer notar ou não. Teria ela se esquecido de mim?

Mas então ela se levantou e voltou o rosto para as mesas.

— Forasteiro do reino de Grace — disse ela —, de agora em diante, não mais poderá dizer que nunca ouviu falar das mulheres de Reyna. Ela acenou novamente com o braço ornado de pulseiras. Um grupo de mulheres entrou, não menos que vinte, falando baixo umas com as outras, com seus cabelos repuxados para trás, cobertos de brocados. Postaram-se na área central vazia que, finalmente percebi, era um espaço de dança. Alguns homens apareceram com flautas e tambores, um deles com uma lira. Reyna não parecia à espera de nenhuma resposta minha nem preocupada com o fato de eu tê-la ouvido ou não.

Desceu os degraus do trono e foi para junto das mulheres, requisitando uma das mais altas como par.

A música começou. Os passos eram difíceis, mas as dançarinas os executavam com destreza. A despeito de mim mesmo, fiquei impressionado. Os vestidos rodopiavam, com as joias tilintando em seus pulsos e tornozelos enquanto as mulheres descreviam círculos. Sacudiam a cabeça ao rodopiar como cavalos indomáveis.

Reyna era a mais bela, sem dúvida. Com sua coroa dourada e seus cabelos soltos, chamava atenção movendo elegantemente os pulsos no ar. Ao contemplar aquele rosto afogueado de prazer, pareceu-me que seu brilho ia se tornando cada vez mais intenso. Sorria para o seu par como se o cortejasse. Ora desviava o olhar da mulher, ora se aproximava dela como para provocá-la com o toque.

Curioso, inclinei a cabeça para ver melhor a jovem com quem ela dançava, mas a profusão de vestes brancas a escondia.

A música chegou ao fim e as dançarinas pararam. Reyna conduziu-as em linha um passo à frente para que recebessem os aplausos. Sua parceira se manteve ao seu lado de cabeça baixa. Fez a reverência juntamente com as outras e endireitou-se.

Devo ter emitido algum som, pois o ar escapou violentamente de minha garganta. Foi pouco, mas bastou. Os olhos da jovem se fixaram em mim.

Várias coisas aconteceram então ao mesmo tempo. Jason — pois era ele — soltou a mão de Reyna e correu alegremente em minha direção, arremessando me para trás com a força de seu abraço. Reyna gritou “Pirra!” e se desfez em lágrimas. Ramirez, que não estava tão senil quanto a filha me fizera acreditar, pôs-se imediatamente em pé.

— Pirra, o que significa isso?

Eu mal conseguia ouvir. Jason e eu nos abraçamos; nossos corpos se estreitavam, aliviados quase ao ponto da insensatez.

— Minha mãe — balbuciou ele —, minha mãe, ela...

— Pirra! — A voz de Ramirez enchia a sala, abafando os soluços incontroláveis da filha. Falava a Jason, logo percebi. Pirra. Cabelos de fogo.

Jason ignorou-o; Reyna soluçou ainda mais alto. O rei, revelando uma ponderação que me surpreendeu, correu os olhos pelo resto da corte, para os homens e as mulheres.

— Fora! — ele ordenou. Os presentes obedeceram com relutância, lançando olhares pelas costas.

— Agora, nós — disse Ramirez, dando um passo à frente. Pude ver seu rosto pela primeira vez: pele amarelada, barba grisalha mais parecendo um tosão encardido. Os olhos, porém, eram argutos.

— Quem é este homem, Pirra?

— Ninguém! — Reyna agarrou o braço de Jason e puxou-o.

Porém Jason respondeu quase imediatamente, com frieza: — Meu esposo.

Comprimi os lábios para não ficar boquiaberto como um peixe.

— Não! Não é verdade! — gritou Reyna, assustando os pássaros pousados nas vigas do teto. Algumas penas flutuaram até o chão. Ela poderia ter dito mais, porém o choro forte impedia-a de falar com clareza.

Ramirez virou-se para mim como se buscasse apoio de homem para homem.

— Senhor, isso é verdade?

Jason apertava meus dedos.

— Sim! — eu disse.

— Não! — gritou a princesa.

Jason ignorou o salto que ela deu em sua direção e, inclinando graciosamente a cabeça diante de Ramirez, falou:

— Meu esposo veio me buscar e agora posso deixar esta corte. Sou grato por sua hospitalidade. Então ele fez uma mesura. Notei, com uma parte obscura e desconhecida de minha mente, que ele executara o gesto com muita elegância.

Ramirez ergueu o braço para nos deter.

— Primeiro, temos de consultar sua mãe. Foi ela que a entregou a mim para ser educada. Ela sabia sobre seu esposo?

— Não! — gemeu Reyna novamente.

— Filha! — Ramirez franziu a testa de um modo que lembrava sua filha. — Pare com essa cena. Deixe Pirra ir.

O rosto da jovem estava vermelho e inchado por causa das lágrimas; seu peito arfava.

— Não! — Virou-se para Jason. — Ele está mentindo! Ele me traiu! Monstro! Apathes! Impiedoso.

Ramirez estremeceu. Os dedos de Jason continuavam pressionando os meus. Ela usara a forma masculina do adjetivo.

— Mas o que vem a ser isso? — exclamou Ramirez lentamente.

O rosto de Reyna empalidecera, mas ela levantou o queixo em desafio e sua voz não tremeu.

— Ele é um homem — ela disse. E completou: — Estamos casados.

— O quê?! — Ramirez engasgou.

Eu não conseguia falar. A mão de Jason era a única coisa que me mantinha preso à terra.

— Não faça isso — disse Jason virando-se para ela. — Por favor!

Ela pareceu enfurecer-se ainda mais.

— Farei, sim! — E, dirigindo-se ao pai, disse: — Você é um tolo! Eu era a única que sabia! Eu sabia! — Golpeou o peito com força. — E agora contarei a todos.

Jason! — Gritou como se quisesse fazer esse nome atravessar as paredes de pedra e chegar aos próprios deuses. — Jason! Jason! Contarei a todos!

— Você não contará. — As palavras soaram frias e agudas como uma lâmina e calaram imediatamente os gritos da princesa.

Conheço essa voz. Virei-me.

Tétis estava de pé na soleira. Sua face refulgia como o centro branco-azulado de uma chama. Olhos escuros e fundos. Mais alta do que eu jamais a vira. O cabelo luxuriante como sempre e o traje magnífico; mas havia nela, agora, algo de selvagem, como se uma tormenta invisível rugisse à sua volta. Parecia uma Fúria, um demônio sedento de sangue humano. Meus cabelos se eriçaram e até Reyna se calou.

Por um instante, ficamos apenas olhando pasmos para ela. Então Jason ergueu a mão e arrancou o véu que lhe cobria a cabeça. Desfez o laço do vestido à altura do peito, abriu-o e expôs o tórax viril. A luz bailava sobre sua pele, dourando-a.

— Basta, mãe — ele disse.

Uma espécie de espasmo contraiu as feições da deusa. Temi que fosse agredi-lo.

Porém ela apenas o contemplou com aqueles olhos negros e impassíveis.

Jason se voltou então para Ramirez:

— Minha mãe e eu o enganamos; por isso lhe peço desculpas. Sou o príncipe Jason, filho de Grace. Ela não queria que eu partisse para a guerra e escondeu-me aqui, como se fosse uma de suas filhas adotivas.

Ramirez engoliu em seco e não disse nada.

— Agora, podemos ir — falou Jason gentilmente.

Essas palavras tiraram Reyna de seu transe.

— Não! — exclamou, levantando de novo a voz. — Não pode! Sua mãe pronunciou sobre nós as palavras sacramentais e estamos casados. Você é meu marido.

Ouvia-se na sala a respiração entrecortada de Ramirez. Ele só parecia enxergar Tétis.

— Isso é verdade? — ele perguntou.

— É — respondeu a deusa.

Senti o peito oprimido por um peso que parecia ter caído de uma altura enorme.

Jason se virou para mim como se fosse dizer alguma coisa. Porém sua mãe se antecipou.

— Agora você está ligado a nós, rei Ramirez. Continuará abrigando Jason aqui e não revelará quem ele é. Em troca, sua filha poderá um dia reivindicar um marido glorioso. — Seus olhos se dirigiram para um ponto acima da cabeça de Reyna e baixaram novamente. Então ela acrescentou: — Ela não conseguiria melhor arranjo do que este.

Ramirez esfregou o pescoço, como se quisesse alisar as rugas.

— Não tenho escolha — murmurou ele. — Como você sabe.

— E se eu não me calar? — perguntou Reyna, com as faces coradas. — Você e seu filho me destruíram. Deitei-me com ele, como me pediu, e minha honra se perdeu. Reivindico-o agora, diante da corte, como recompensa. Deitei-me com ele.

— Você é uma menina tola — zombou Tétis. Cada palavra feria como o corte de um machado, incisiva e cruel. — Pobre e desprezível, uma inocente útil. Não merece meu filho. Controle-se ou eu a conterei.

Reyna recuou um passo, com os olhos arregalados, os lábios sem cor. Suas mãos tremiam. Levou uma delas ao ventre e apertou o tecido, como para criar ânimo. Lá fora, além dos penhascos, ouvíamos as ondas tormentosas fustigando os rochedos, na ânsia de esmigalhá-los.

— Estou grávida — murmurou a princesa.

Eu tinha os olhos fixos em Jason quando ela disse isso e vi o horror em seu rosto. Ramirez emitiu um gemido de dor.

Senti um vazio no peito, agora frágil como uma casca de ovo. Basta. Talvez tenha dito isso — ou apenas pensado. Soltei a mão de Jason e caminhei em direção à porta. Creio que Tétis me deu passagem; eu a empurraria caso não o fizesse.

Sozinho, caminhei na escuridão.

— ESPERE! — Gritou Jason. Ele precisou de mais tempo para me alcançar do que deveria; eu notei isso desconsoladamente. O vestido deve restringir seus movimentos. Ele me agarrou pelo braço.

— Solte-me — disse eu.

— Por favor, espere. Deixe-me explicar. Eu não queria fazer aquilo. Minha mãe...

— estava quase sem fôlego, quase arquejando. Nunca o vira tão agitado.

— Ela levou a jovem ao meu quarto. Induziu-me a fazer o que eu não queria.

Disse... disse... — não conseguia encontrar as palavras. — Disse que, se eu a obedecesse, ela revelaria a você meu esconderijo.

O que Reyna pensou que fosse acontecer, perguntei-me, quando fizera as mulheres dançarem para mim? Será que ela supôs realmente que eu não o reconheceria? Pois se poderia reconhecê-lo por um toque, por seu cheiro! Poderia reconhecê-lo mesmo estando cego — somente pelo ruído de sua respiração ou pelo som de seus passos. Poderia reconhecê-lo na morte, no fim do mundo.

— Percy. — Ele envolveu meu rosto com a mão. — Está me ouvindo? Por favor, diga alguma coisa.

Eu não conseguia deixar de imaginar a pele dela colada à dele, os seios túrgidos e as ancas sinuosas de Reyna. Evoquei os longos dias em que padeci sua ausência, mãos vazias e ociosas sondando o vazio como aves bicando a terra árida.

— Percy?

— Você fez isso por nada.

O tom desalentado de minha voz o fez recuar um passo. Contudo o que se poderia esperar de mim senão desalento?

— O que você quer dizer?

— Sua mãe não me disse onde você estava. Quem me disse foi Grace.

O rosto de Jason empalideceu, suas feições ficaram tensas.

— Ela não lhe disse?

— Não. Pensou mesmo que ela o faria? — Minhas palavras soaram mais sarcásticas do que eu pretendia.

— Sim — murmurou ele.

Eu poderia ter dito milhares de coisas, censurando-o por sua ingenuidade. Ele sempre fora crédulo demais; na vida, nunca se deparara com quase nada que lhe despertasse o medo ou a suspeita. Antes de nos tornarmos amigos, eu cheguei a odiá-lo por ser assim e uma fagulha desse sentimento crepitou em meu peito, ameaçando transformar-se de novo em chamas. Qualquer outro perceberia que Tétis só almejava seus próprios desígnios. Como pudera Jason ser tão ingênuo?

Palavras mordazes ferviam em minha boca.

Porém, quando tentei proferi-las, percebi que isso seria impossível. Suas faces estavam rubras de vergonha e a pele embaixo de seus olhos adquirira um tom de cansaço. A confiança fazia parte dele tanto quanto suas mãos e seus pés miraculosos. E, a despeito de meu sofrimento, eu não queria que ela desaparecesse, não queria vê-lo desconfiado e inseguro como o resto de nós — por nada neste mundo.

Ele me olhava fixamente, tentando ler minha expressão como um sacerdote que perscruta augúrios para proferir um oráculo. Eu percebia, em seu rosto, a tênue ruga que denunciava extrema concentração.

Algo então se fundiu dentro de mim, como a superfície gelada do Apidano na primavera.

Eu vira o modo como ele olhava para Reyna, ou melhor, o modo como não olhava. Era o mesmo olhar que lançava aos meninos em Fítia, distante e vazio. Jamais, uma vez sequer, me fitara daquela maneira.

— Perdoe-me — insistiu ele. — Eu não queria. Ela não era você. Eu não... Eu não gostei.

Ouvir aquilo apagou os últimos resquícios da dor que me afligia desde o instante em que Reyna gritara seu nome. Minha garganta se contraiu ante a iminência das lágrimas.

— Não há nada a perdoar — disse eu.

Tarde da noite, voltamos ao palácio. O grande saguão estava às escuras e na lareira só restavam brasas. Jason havia arrumado seu vestido o melhor que pudera, mas o tecido continuava meio solto; ele o mantinha seguro ao peito, para o caso de encontrarmos algum guarda desperto.

A voz veio das sombras, assustando-nos.

— Vocês voltaram... — A luz da lua não chegava até o trono, mas vislumbramos ali a silhueta de um homem coberto de peles. A voz era mais profunda e arrastada do que antes.

— Voltamos — disse Jason. Percebi sua breve hesitação antes de responder.

Não esperava reencontrar o rei tão cedo.

— Sua mãe foi embora, não sei para onde. — O rei fez uma pausa, como se aguardasse uma resposta.

Jason não disse nada.

— Minha filha, sua esposa, está no quarto chorando. Ainda tem esperança de que você volte para ela.

Senti em Jason uma pontada de culpa. Suas palavras saíram hesitantes; aquele era um sentimento ao qual não estava habituado.

— É pena que ela alimente semelhante esperança.

— De fato — concordou Ramirez.

Permanecemos em silêncio por um instante. E então o rei, respirando fundo, disse com voz cansada: — Suponho que seu amigo precise de um quarto.

— Se não se importar — disse Jason, cautelosamente.

Ramirez riu baixinho.

— Não, príncipe Jason, eu não me importo. — Outro momento de silêncio.

Ouvi o rei erguer uma taça, beber e pousá-la novamente na mesa.

— Você deve dar seu nome à criança. Compreende isso? — Era o que esperara no escuro para dizer, coberto de peles e junto ao resquício de fogo.

— Compreendo — disse Jason calmamente.

— Jura que o fará?

Houve uma pausa curtíssima. Senti pena do pobre rei. E fiquei aliviado quando Jason respondeu:

— Juro.

O ancião emitiu um som que parecia um suspiro. Mas suas palavras, quando se fizeram ouvir, eram formais; voltara a ser um rei.

— Tenham os dois uma boa noite.

Fizemos uma reverência e saímos.

Nas entranhas do palácio, Jason encontrou um guarda para nos mostrar as dependências dos hóspedes. A voz que usou foi aguda e estridente, sua voz de mulher. Percebi os olhos do guarda examinando-o cuidadosamente, detendo-se na bainha esfarrapada do vestido, no cabelo desalinhado. Virou-se e me dirigiu um largo sorriso.

— Por aqui, senhora — disse ele.

Nas histórias, os deuses têm o poder de alterar o curso da lua quando bem entendem e de dar a uma noite a duração de muitas noites. Tal foi aquela, uma sequência infinita de horas. Bebemos à farta, sedentos de tudo quanto perdêramos nas semanas em que estivemos separados. Só quando o céu começou a clarear é que me lembrei do que ele dissera a Ramirez na grande sala. Esquecera tudo no torvelinho provocado pela gravidez de Reyna, por seu casamento, por nosso reencontro.

— Sua mãe estava tentando escondê-lo para que não fosse lutar?

Ele assentiu.

— Ela não quer que eu parta para Troia.

— Por quê? — Até então, eu pensara que Tétis queria fazer dele um guerreiro.

— Não sei. Diz que sou muito jovem. Que ainda não é hora.

— E foi... foi ideia dela? — Apontei para o vestido em frangalhos.

— É claro. Eu mesmo não pensaria em tal coisa. — Fez uma careta e sacudiu os cabelos, ainda penteados como os de uma mulher. Tinha vergonha, sim, mas não extrema como sucederia a qualquer outro rapaz. Jason não temia o ridículo; nunca o conhecera. — De qualquer modo, estarei livre depois que o exército partir.

Eu ainda procurava uma resposta.

— Então não foi por minha causa que ela o raptou?

— Reyna foi por sua causa, creio eu. — Fitou as mãos por um momento. — O resto foi por causa da guerra.


Notas Finais


Tétis, guerra, casamento arranjado, filho. que mais pode acontecer a esses dois... muitas coisas ainda estão por vir kkkk;
Bom final de semana e até o próximo.


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