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História A Garota Impossível - Memento Mori


Escrita por: desvenuras

Capítulo 7 - Memento Mori


Existem certas situações na nossa vida em que dar um comunicado não é uma tarefa simples. Depende muito do tipo de mensagem que você vai entregar e para quem você vai entregar esta mensagem. Por exemplo: Você já se viu em uma situação de completa aflição, onde precisava dar um comunicado muito importante para você e o destinatário era ninguém menos que o diabo em pessoa? Bom, lá estava eu, em minhas memórias. Relembrando aquela data.

Fazia três meses que tinha completado dez anos de idade, uma criança pequena você diria, mas para Nora Caliman, já tinha idade o suficiente para tomar um rumo na vida. E eu tinha tomado, eu seria detetive, estudaria no Instituto Caliman e me tornaria a melhor de todas. Era isso que eu estava indo comunicar ao diabo e ver se conseguia sua aprovação, o que de fato eu não consegui totalmente uma vez sequer na vida, é claro.

Ela estava sentada em sua habitual poltrona em frente à lareira, jogava xadrez com minha irmã mais velha, Agatha. Ao olhar para ela pude perceber porque todos diziam que era a mulher mais deslumbrante que já tinham visto na vida. Mesmo agora concentrada, anotando mentalmente todos os movimentos de minha irmã no jogo, ela exalava aquele ar de soberania, uma das mãos no queixo, como se estivesse horas pensando. Ela era uma mulher de beleza imensurável, como uma imperatriz. Celine, a única pessoa no mundo que conseguia arrancar um pouco de afeto de Nora, estava sentada no sofá do outro lado da lareira. Estava lendo Les Misérables, de Victor Hugo. Ela levantou a face em minha direção com grande curiosidade, deixando sua leitura de lado ao perceber o que eu estava prestes a fazer. Interromper o jogo da minha mãe.

- Mãe? Eu tenho um comunicado. – chamei a atenção de Nora.

- Diga, querida. – ela respondeu, ainda encarando o tabuleiro enquanto Agatha decidia se movia o seu cavalo ou não.

- Eu vou para o Instituto Caliman, vou me formar no Departamento de Agentes Atemporais. – eu respondi e ela ergueu a cabeça para me encarar.

Agatha soltou uma risadinha debochada, mas não ousou falar nada, ainda mais quando Nora fez o sinal universal de silêncio para ela.

- Detetive? – ela perguntou e eu balancei a cabeça firmemente em concordância. – E você acha que tem as habilidades necessárias?

A risada baixa de Agatha ecoou outra vez pela sala. Segurei o impulso de soca-la.

- Você quer comentar alguma coisa, querida irmã? – me virei para ela, já que adorava me irritar poderia fazer logo de uma vez.

- Não acho que Regina tenha as habilidades necessárias, mãe. Mas é apenas a minha opinião. – ela respondeu com falsa polidez ao me encarar.

Agatha era cinco anos mais velha do que eu, isso significava que ela tinha quinze anos naquela época. Já tinha começado a namorar com Joseph. Faltavam três anos para ela se formar no Departamento de Advocacia do Instituto e entrar para a Advocacia Caliman. O orgulho de Nora, óbvio. Faltavam também quatro anos para ela descobrir que estava grávida do meu sobrinho mais velho, Joe. E que ela e Joseph deveriam se casar o mais breve possível. Sim, na minha época as pessoas ainda ligavam para esse tipo de coisas.

- A sua opinião não interfere nas escolhas da sua irmã, Agatha. Se concentre no seu jogo. – Nora disse, ainda a me encarar. – Regina, um detetive precisa ser, bem, como eu poderia dizer..

- A senhora vai me chamar de desequilibrada de novo, não vai? – perguntei.

Ela suspirou. Era evidente que eu tinha ficado aborrecida com a sua constatação. O que só confirmava o que ela dizia. No ponto de vista dela.

- Estabilidade emocional é uma das habilidades necessárias para esse ramo, você sabe querida. – ela respondeu, movendo uma das peças do jogo.

Queria demonstrar que tinha o controle da situação. Ela era controlada, eu não.

- Eu tenho a certeza que ela daria conta do recado, Nora. – Celine respondeu, do outro lado da sala, sem tirar os olhos do seu livro.

- Celine você criou uma Caliman dramática e impulsiva. – ela retrucou sinalizando com uma das mãos e minha outra mãe apenas sorriu.

- Ei! Eu estou aqui, certo? – reclamei exasperada.

- Regina, você é um pouco sensível. Por que não escolheu algo mais.. apto a você? – ela continuava.

Outra vez me chamando de desequilibrada.

- Ela poderia trabalhar no circo. – Agatha debochou.

- Eu poderia esfregar a sua cara nesse tabuleiro. – eu respondi no mesmo tom.

- Eu não disse? Regina é muito passional, você criou uma dramática. – Nora constatou se dirigindo a Celine, que riu balançando a cabeça. – Querida que tal seguir carreira como atriz?

- A senhora está debochando da minha cara? – perguntei incrédula.

- Foi uma pergunta sincera. – ela levou as mãos ao peito, como se estivesse ultrajada.

- Eu vou ser detetive. E não importa as suas constatações sobre a minha personalidade. – eu respondi enfurecida.

Um pingo de gente enfurecido, indo se trancar no quarto e chorar até dormir. Aliás, o que ela queria? Eu tinha apenas dez anos de idade.

- A sua filha é uma dramática. – pude ouvir o comentário, após Celine ter ralhado com ela.

Alguns minutos depois Celine veio me consolar. Ela adorava fazer isso, vinha me dizer que eu era a sua preferida. Eu sabia que não era verdade, mas gostava.

- Eu posso entrar? – ela perguntou batendo na porta, após o meu silêncio, ela constatou que poderia. – Não liga para a sua mãe, você sabe, ela ama alfinetar quem não tem um coração de pedra como o dela.

- Por que você se casou com ela? – perguntei a pegando de surpresa. – Vocês são tão diferentes. Como você fez ela se acostumar com a sua personalidade?

Ela respirou bem fundo, fechou a porta do quarto e sentou em minha cama, apoiando minha cabeça em seu colo. Nora dizia que ela me mimava demais.

- Eu fiz ela se apaixonar pela minha voz. – ela soltou um sorriso divertido. – Depois vieram as consequências.

- Eu não canto como você. Então vai ser um pouco difícil. – eu respondi, lembrando de suas músicas.

A voz dela era algo digno de que pelo menos toda a humanidade se apaixonasse por ela. Nada mais.

- Seria mais fácil se não fossem tão parecidas. – ela sussurrou, como um segredo.

- Eu não me pareço com ela. – reclamei em ultraje.

- Você acha que essa ferocidade toda veio de mim? Eu tenho cara de raivosa? – ela perguntou fazendo biquinho e eu sorri.

- Não mamãe, não tem.

- O sangue que corre nas suas veias é o sangue Caliman. – ela sussurrou outra vez, outro segredo.

- Eu não vou usar o sobrenome dela nem morta. – eu decidi.

Ela ficou me encarando por vários minutos, em um longo silêncio. Ela sabia o tanto de teimosia que havia em mim. Sabia que as críticas me quebravam. Eu sou perfeita, não mereço ser criticada. Ela tocou no meu nariz e sussurrou:

- Vós, que sofreis, porque amais, amai ainda mais. Morrer de amor é viver dele.

- Victor Hugo. – eu reconheci.

- Não há nada de errado em entregar seu coração naquilo que você quer. Algo feito com amor e devoção, é algo bem feito. Não importa o que nos resta no final. – ela declarou por fim.

Por toda a minha vida, aquela frase ficou cravada em meu peito. E sempre que procuro um refúgio, um consolo, a citação de Victor Hugo paira em minha mente e a declaração de Celine Mills se crava em meu coração. Ela me amou e me aceitou como eu era, nunca criticou o que Nora chamava de personalidade impulsiva. Ela tinha esse dom, afinal ela amava e tinha se casado com o diabo, amar pessoas difíceis de lidar era uma de suas habilidades. Eu não suporto admitir, mas ela estava certa, o sangue que corria em minhas veias era o sangue Caliman. A teimosia, as artimanhas, o ego, a sensatez, a razão, tudo isso vinha de Nora Caliman. Mas Nora Caliman tinha um trunfo, ela sempre soube esconder melhor o que sentia. Ela não era equilibrada, ela era intensa, impulsiva e passional como a filha que ela tanto criticava. Mas ela sabia esconder bem, e a frieza era apenas um muro envolvendo tudo o que ela ousara sentir. Um muro que teve a sua queda com a queda da pessoa que ela mais amou na vida, o véu que envolvia aquele coração desditoso caiu com a morte de Celine Mills.

No túmulo dela, de Celine, tinha os dizeres:

“Ser bom é fácil. O difícil é ser justo.”

23 set. 1345 n.e – 7 nov. 1384 n.e

Memento Mori

Memento Mori. Expressão em Latim que significa algo como “Lembre-se de que você é mortal”. Em Roma essa era a expressão proferida nos desfiles dos heróis de guerra, generais vitoriosos em batalha. As palavras eram sussurradas por uma espécie de cocheiro da Antiguidade enquanto eles desfilavam com toda a sua glória em suas carruagens, orgulhosos por terem tirado vidas e mais vidas com suas armas invencíveis. O Auriga, aqui lê-se cocheiro, ia lhes sussurrando memento homo (lembre-se de que é um homem), memento mori (lembre-se de que é mortal) enquanto lhes presenteava com coroas de louros. Fico imaginando. E se um desses Auriga tivesse sussurrado tais palavras aconselhadoras aos ouvidos de Hitler ou de seus generais nazistas? Teria ajudado em alguma coisa? A humanidade não aprendeu com nada disso. Mesmo depois de várias guerras. Genocídios em massa. O mesmo é na minha época, a época que eles chamam de Nova Era. “Vai ser diferente desta vez, nós prometemos a paz”. Dizem os governantes. Felizes são os que acreditam.

Mas voltando a falar sobre os comunicados.

Havia se passado seis dias depois da festa de Sam. Era sábado outra vez. Tínhamos completado uma semana da missão. E aqui vai eles...

Primeiro comunicado: Emma passou a maior parte dos seus dias na escola, dando aulas. A escola realmente não era longe. Ficava a dois quarteirões da pensão. Assim que chegava, ajudava Anne May com suas lições. E depois ajudava Mary Rosewood com a cozinha ou o bar-restaurante. Apenas isso, essa era a rotina. Eu odiava rotina. Mas tinha que ficar, fazer parte daquilo.

Segundo comunicado: Enquanto Emma passava seu tempo na escola, eu passava meu tempo na rua. E em nenhum dos seis dias voltei a ver Richard Gardner. Achei aquilo suspeito demais. Imaginei que algo terrível estaria por vir. Ver Richard Gardner era irritante, porém não ver Richard Gardner era pior. Era mau agouro.

Terceiro comunicado: Lauriana Caliman e August Caruso. Era isso o que todos os detetives na agência não paravam de comentar. Especialmente a detetive Marissa Aguilera. Ela estava esperando aquilo. Era seu presente especial. August e Laurinha estavam juntos, mas tínhamos um pequeno empecilho. August estava se divorciando para ficar com Lauriana. Isso não era muito bem visto pela sociedade. Outra era, os mesmos problemas. Era como viver no passado. A humanidade nunca aprendia.

Quarto comunicado: a criança recuperada, apenas isso. Caitlyn era o seu nome. Emma estava radiante por receber a sua pequena aluninha de volta na classe. Emma era muito apegada aos pais da criança, especialmente a mãe, como pude notar. Tínhamos conversado bastante essa semana. Ela tinha ficado mais próxima, depois da festa de Sam. Mas ainda assim parecia uma completa estranha para mim. Enigmática.

Quinto comunicado: a festa de minha sobrinha, Tessa, será amanhã. Pedi a Lauriana que escolhesse um bom livro para dar para a criança em meu nome. Ela estava completando dez anos, era uma idade importante na família. Pedi para escolher um livro para os outros dois filhos de Agatha também, o mais velho Joe e a pequena Aimée. Eu era uma boa tia. Assim espero.

O sexto e último comunicado: esse eu realmente não queria dar para vocês. É um daqueles comunicados que a gente evita, que a gente nunca vai querer dar a alguém. Mas é necessário.

Este comunicado foi dado a Emma. Na tarde de sábado. O comunicado causou revolta ali. Na rua, no bairro. Na cidade. Foi o que eles chamavam de acidente. E quando eu digo eles, eu quis dizer monstros. Oficiais Nazistas.

Muitas das pessoas acreditam que o Nazismo surgiu apenas com o começo da Segunda Guerra Mundial. Mas todos nós sabemos que para uma guerra, é preciso antecedentes. Nada surge do nada. Nenhuma perseguição, nenhuma morte, nenhum crime de ódio acontece por acontecer. E o que eles chamaram de acidente? Foi a morte de uma criança. A morte de uma das crianças de Emma. De certo modo, a morte de um pedaço da alma de Emma. Caitlyn, era o nome da criança.

Vamos explicar em outras palavras para vocês entenderem o que estava acontecendo ali. O pai de Caitlyn? Negro. A mãe de Caitlyn? Filha de Judeus. O homem que tirou a vida de Caitlyn? Um oficial nazista.

Ele estava apenas visitando Londres. Foi o que disseram. Eles não tinham toda a fama que eles tem hoje, é óbvio. As pessoas naquela época não poderiam imaginar do que eles eram capazes. Vou lhes contar o que aconteceu, como a história foi passada para nós por uma criança, uma das crianças da conhecida senhora Rubens.

O pai de Caitlyn, como sabemos, trabalha nos mercados livres. A menina, de sete anos, estava ajudando o pai a vender verduras. O assassino, Charles Ludwig, um major-general da SS. O homem chegou inocentemente, como um comprador. O pai de Caitlyn avistou a suástica em seu braço. Aquela altura já sabia quem aqueles homens queriam prejudicar, mas ele não estava na terra dele. Era só ser cauteloso, o homem logo iria embora. O pai da menina obviamente pensou. Caitlyn usava um pequeno colar. Um erro naquele momento. A estrela de Davi. Era um presente de sua mãe. Foi um grande erro estar usando o colar naquele momento. Era a sua identidade. O homem fez algum comentário sobre o colar da criança. O pai não respondeu. O homem insultou a cor da pele do mercador. Ele outra vez não respondeu. O homem se dirigiu a criança outra vez, de maneira grosseira. O pai se enfureceu. Os dois discutiram. O oficial sacou a sua arma. Os dois ainda discutiam. A criança se assustou. Começou a chorar pedindo para que parassem de brigar. O oficial atirou.

Caitlyn Smith, apenas sete anos. Memento Mori não significava nada para Caitlyn, porque Caitlyn não tinha idade o suficiente para entender o que significava Memento Mori.

E então, voltando a perguntar: E se um desses Auriga tivesse sussurrado tais palavras aconselhadoras aos ouvidos de Hitler ou de seus generais nazistas? Teria ajudado em alguma coisa? 

Eu tenho outro comunicado: Nora Caliman estava certa sobre a minha personalidade. Impulsiva. Sangue quente. Mas não desequilibrada. Não, isso não. Eu sabia muito bem o que fazia.

O homem, Charles Ludwig, foi levado a uma espécie de penitenciária. Estava em custódia até decidirem o que fazer com ele. Ficou em custódia por oito dias. Foi um acidente. Eles continuaram a dizer.

Consigo me lembrar do rosto de Emma, sua expressão ao receber a notícia. Foi um rapazinho loiro, de aparência assustada, o encarregado de dar o terrível comunicado. Ele tinha a idade de Finn. Era um dos filhos da conhecida senhora Rubens.

Quando recebi o comunicado da morte de minha mãe, Celine, eu estava em meio a uma aula. Meu tio Giancarlo, o próprio diretor do Instituto Caliman, foi quem me deu a notícia. Alguns anos mais tarde, ele disse que eu não expressei reação alguma diante da notícia. Apenas encarei o seu rosto. E fiquei ali encarando por longos minutos. Estagnada.

Agora compreendo porque o meu tio Giancarlo tinha se incomodado tanto com a minha falta de expressão. Emma nesse exato momento se encontrava estagnada. E vê-la assim foi uma das piores sensações da minha vida.

O rosto dela, sem cor. Não emitia nada. Seus olhos não emitiam brilho algum. Ela não falou nada. Apenas sentou na escada e voltou o seu rosto para mim. Ela me encarava, mas não me encarava de fato. Sua mente estava em outro lugar. A senhora Rosewood, chocada com a tragédia, com a mão no peito, sentou ao lado dela. Ela continuava sem nenhuma reação.

- Oh, querida. – Mary Rosewood murmurou, estarrecida.

Nenhuma reação da parte de Emma. Ela apenas olhava fixo para algum lugar. O meu rosto. Mas ela não me via ali. Eu queria que ela me enxergasse ali, queria poder tirar ela daquele torpor. Nenhuma reação ainda.

Emma ficou sem reação por longas semanas. Em completa atimia. Como eu tinha dito, um pedaço de sua alma se fora junto com Caitlyn.

A frase que paira sobre nós agora é a primeira frase do túmulo de Celine: “Ser bom é fácil. O difícil é ser justo.”

Estou me confessando agora. Eu não me orgulho de ter feito o que eu fiz. Se Lauriana soubesse, nunca teria me mandado aquela faca. Ela teria se decepcionado tanto, se soubesse. Mas se estivessem na minha posição, o que teriam feito? Se soubessem que estavam em frente a uma raça podre como aquela. E que presenciara o primeiro de muitos “acidentes”. A segunda guerra estava vindo, eles ainda matariam muitas crianças. E ganhariam honra por isso, ganhariam medalhas. Desfilariam com suas coroas de louros, em suas carruagens banhadas de sangue de inocentes. Nenhum Auriga para sussurrar memento homo ou memento mori em seus ouvidos. Eles se achavam deuses. O poder estava vindo e a guerra faria deles seres imortais.

Oito dias depois do que eles chamaram de acidente, na manhã seguinte. Ele foi encontrado morto. Pobre Charles Ludwig. Tinha um corte em formato de suástica em sua face. Algo feito com uma faca, provavelmente.

Apesar de não sentir orgulho, não me arrependia. Aquilo tinha sido por Emma. E por Caitlyn.



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