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História A Megera e o Indomável - Quem sabe a vida é não sonhar?


Escrita por: MiaLehoi

Notas do Autor


O trecho que dá nome à esse capítulo é da música "Malandragem" de Cássia Eller.

avisos de gatilho: machismo, homofobia, agressão física

Capítulo 5 - Quem sabe a vida é não sonhar?


8 de janeiro de 1996, segunda-feira, Rio de Janeiro

Carminha confiava em seu senso estético, em seu bom gosto e em sua intuição. E mais uma vez não havia falhado em nenhum dos três: seu ensaio para a Playboy realmente era um dos mais lindos que a revista já tinha feito. Chique, clássico, sensual, sem a cafonice que às vezes enchia as páginas da revista. Ela fez Toni comprar vários exemplares anteriores para si nos meses antes, (revistas novinhas porque jamais colocaria um dedo em na coleção pessoal dele, que nojo!) para que pudesse riscar tudo o que não queria em sua sessão de fotos, fez questão de escolher alguns nomes que poderiam ser o fotógrafo da edição e deu palpites até no pouco que vestiria, nas poses e no cenário. Então era de fato uma bela revista. Mas mesmo assim, sua intuição lhe dizia que a recepção não seria agradável e realmente não foi. 

O Fantástico fez uma reportagem sobre ela na noite anterior e na manhã daquela segunda os primeiros exemplares foram entregues. Antes das dez da manhã várias bancas de jornal pelo país já tinham esgotado seus números e pedido mais. Parecia estar tudo bem até mais ou menos o meio-dia, quando os programas da tarde, os mais tendenciosos, feitos para a dona de casa conservadora, começassem com boatos e burburinhos de que aquele era o primeiro passo da transição da carreira de Carminha Frufru de estrela infantil para estrela pornô. Não se sabe quando foi que tudo começou a escalar com tanta rapidez, mas de repente haviam vários veículos endossando a teoria, o telefone da casa da modelo tocando incessantemente por horas e horas, deixando-a em um estado horrível de pânico. Mesmo com o pagamento da revista caindo em sua conta e resolvendo alguns dos problemas que acabavam com seu sono nas semanas anteriores, agora ela tinha novos motivos para não ter paz.

Foi só lá pelas dez da noite que Toni conseguiu entrar em contato com ela. No apartamento luxuoso da jovem no Leblon, o telefone só tinha parado de tocar porque em algum momento a loira o arrancou da tomada. Depois de horas tentando ligar e interfonar, o agente desistiu e entrou no prédio pelo portão de caminhões de carga. O corpo de funcionários sabia que, por habitar tanta gente famosa, às vezes aquilo era necessário, portanto tinham uma lista de pessoas de confiança que podiam fazer procedimentos como aquele. A entrada comum e a frente do prédio estavam lotados de fotógrafos, então ele pegou o elevador de serviço, junto com Denise, e os dois seguiram até a moradia de Carmem, encontrando-a deitada no tapete da sala com uma garrafa de vinho vazia e com parte de seu conteúdo derramado no tapete persa, junto com uma taça quebrada que lhe havia feito um corte no pé esquerdo que ainda sangrava. Marco Antônio só conseguiu respirar ao checar o pulso da amiga e ao perceber que ela estava apenas dormindo depois de uma tremenda bebedeira. Como podia ter sido ingênuo de não imaginar que poderiam fazer aquilo com ela? "Escreve o que eu tô dizendo, a gente vai controlar a história agora." Que grande imbecilidade ele havia dito. Se não fizesse seu trabalho direito dali pra frente, ele acabaria perdendo sua melhor amiga para a fama e para aquela gente estúpida.

Ele a carregou até a suíte principal e pediu que Denise a ajudasse a acordar direito e a tomar um banho para que pudessem sair dali. Precisava pensar e agir rápido.

Um pouco mais tarde deixaram o prédio pela saída de cargas, num carro discreto e com janelas escuras alugado pelo agente. Depois de muito pensar ele concluiu que voltar para o Limoeiro era a melhor solução no momento, mas dessa vez ficariam em sua casa, ao menos nos primeiros dias. Queria resguardar a loira enquanto ela se reconstruía para que dessem seus próximos passos. Contudo, na cabeça dele já haviam ideias fervilhando, pois sempre era possível tirar coisas boas de grandes polêmicas, especialmente num caso em que a pessoa no centro da história nem tinha feito nada errado. A revista continuava vendendo igual água e se atingisse o número de vendas estipulado pelo editor chefe da Playboy, Carmem ganharia um adicional em seu cachê e o valor total pagaria uma boa parte de suas dívidas. Não tudo, mas o suficiente para que ela não estivesse mais em uma situação tão delicada.

E, bem, quando Carmem ganhava dinheiro, Toni ganhava dinheiro. Ele ainda se sentia culpado por tê-la incentivado a fazer o ensaio, mas continuava achando que tinha sido uma jogada inteligente. Ela iria superar aqueles rumores ridículos e sair por cima; talvez virasse a nova coitadinha do Brasil, ou, melhor ainda, talvez virasse a grande estrela multifacetada que ela era. Com um rosto bonito, um corpo de enlouquecer e uma personalidade digna de muitas músicas e corações partidos. 

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— Meu coração tá tão partido que essa mulher não é minha namorada que eu vou ter que escrever uma música sobre isso. — Xaveco dramatizou, deixando a revista Playboy sobre a mesa. Ele normalmente não gostava muito dos ensaios da revista, era sensível demais para esse tipo de coisa e achava que faltava romantismo e mistério, mas daquela vez deu o braço a torcer. Eram belas fotos, não apenas pelo corpo de musa que ela tinha, mas pelos cenários e poses. Mesmo inteiramente nua ela tinha deixado espaço para a imaginação. — Tô falando sério, o que é que rima com tristeza?

— Safadeza. — respondeu Cascão — Do que você tá falando, cara! Tu nem escreve letras!

— Posso começar agora… Gata dourada, toda revelada, teu olhar de safadeza liberou minha tristeza… — cantarolou, fazendo os outros no recinto gargalharem. Apenas Titi e Do Contra não estavam ali, os outros quatro estavam reunidos sobre a revista como se fosse um tesouro.

— Continua assim e você nunca mais vai conquistar uma mulher na vida, gato dourado. — Cebola deu uma risada, agitando os cabelos loiros do outro rapaz e deixando-os ainda mais bagunçados do que eram normalmente. — Mas que ela é um fenômeno… Isso é. — assobiou, maneirando nos comentários porque por mais que os outros não soubessem, tinha uma noiva e agora era fiel! 

— É até pecado chamar isso de rima. — Jeremias interveio. Era um pouco estranho dar um rosto à mulher que havia passado quase uma hora procurando durante a festa da outra noite, a conhecia da infância no Limoeiro, mas as lembranças eram distantes e, bem, quando crianças todos eram obviamente bastante diferentes. Ele ainda estava pensando no que comentar (não conseguia falar de coisas assim com tanta naturalidade) quando Titi entrou na cozinha feito um furacão. — Chegou quem faltava! Já viu a revista do ano, Timóteo? — o rapaz riu, imitando o movimento de apertar seios imaginários que o outro fez naquela noite na discoteca. No entanto, o agente não parecia disposto a piadas, seu semblante sério como quase nunca ficava.

— Galera, é o seguinte — começou, fechando os olhos por um segundo e suspirando pesadamente antes de continuar falando — o irmão do DC vai passar um tempo aqui em casa com a gente. Rolou uma briga na família deles, não sei exatamente o que foi, mas vamos só receber o cara e agir naturalmente.

— Naturalmente tipo você que tá parecendo que levou um puxão na cueca? — perguntou Cebola, fazendo uma careta que foi suficiente para o outro relaxar o semblante e rir um pouco. 

— Puta que pariu, é que foi o maior estresse. Não tinha passagem pra cá mais, agora só amanhã de manhã, daí o DC foi buscar, só que no meu carro. — resmungou.

— Aposto que ele inventou uma desculpa pra não ir no dele só pra te ver com essa cara de quem comeu e não gostou. — provocou Xaveco — Sem neura, Titi. O DC é descuidado com tudo o que é coisa, menos com carros e com os kits dele. — deu de ombros. — O pior que vai rolar é você encontrar umas 20 butucas de cigarro no cinzeiro.

Timóteo suspirou. O jeito agora era esperar a chegada dos irmãos.

 

9 de janeiro de 1996, Cidade do Limoeiro, Casa da família de Toni

Carmem acordou no meio da madrugada, numa cama aconchegante, porém num quarto escuro. Quando isso acontecia (era raro, mas já tinha tido suas experiências com desconhecidos) ela procurava uma forma de iluminar um pouco o local, pegar suas coisas e ir embora. Tateando em volta, encontrou um abajur na mesa de cabeceira e o acendeu, revelando paredes com pôsteres do Nirvana, Pearl Jam, uma página arrancada de revista com uma foto da Carla Perez. Tudo no lugar gritava adolescência, a guitarra largada no canto do quarto junto com um skate, uma escrivaninha cheia de livros e cadernos velhos e até o edredom com temática espacial. Então ela chegou à conclusão mais óbvia: estava na velha casa da família de Marco Antônio no Limoeiro.

Ela se levantou, percebendo que vestia um short de pijama e uma blusa de moletom cinza da American Apparel que com certeza não era o que usava da última vez que se lembrava. Ao chegar na sala da casa, ela logo viu seu agente jogando Sonic na maior paz e pigarreou alto, fazendo com que ele levasse um susto.

— Por que estamos aqui e o que você fez com as minhas roupas? — questionou com as mãos na cintura numa pose indignada.

— Decidi te sequestrar e joguei todas no fogo. — ele respondeu com seriedade — Olha, seu apartamento tava impossível, você não atendia o telefone… A Denise foi comigo ver se tava tudo ok, te trocou e fez uma bagagem. Depois te levo pro seu chalé, a não ser que você prefira ficar na minha casa, né…

— Não vou fazer nada estúpido, Tonhão. — Carminha respondeu com rispidez, indo sentar-se no sofá desocupado e abraçando os próprios joelhos. — Mas agradeço a preocupação.

— É pra isso que você me paga. — o loiro rebateu, fingindo não se importar.

— Cala a boca. Nem dinheiro pra te pagar eu tô tendo direito. — ela riu. Era verdade. Sua carreira estar afundando significava que a vida financeira dele também não estava das melhores.

— Detalhes. — ele deu de ombros — E como você está?

— Sinceramente? Com vergonha. Decepcionada. Sentindo que joguei o restinho de carreira que tinha no lixo… — ela começou, não se permitindo chorar por isso novamente — Aquele programa estúpido disse tantas coisas… Três produtoras de pornografia ligaram para minha casa, Toni! Três! Tentei aparecer na varanda do apartamento e juro que um dos paparazzi começou a dizer pra eu tirar a roupa ali mesmo. — suspirou pesadamente, dessa vez não conseguindo segurar algumas lágrimas. — Quero sumir do mapa. Nunca mais quero aparecer em nada.

— Se você quiser vencer essas pessoas, boneca, agora é a hora de aparecer mesmo. — ele disse, encarando o teto.

— Você tá brincando, né?

— Carmem, eles vão falar. Quer você apareça, quer não… Você pode ganhar dinheiro em cima disso, ou ser comida viva pelo banco. — seu olhar se voltou para a modelo — Eu tive umas ideias e se elas derem certo essa revista vai fazer de você a estrela mais versátil da TV. Já te fizeram de sex symbol, agora vamos mostrar as outras coisas que você é.

Carmem suspirou, exausta. O que mais tinha para oferecer além de seu corpo?

— Tá, mas eu quero descansar.

— Isso é certo, boneca. Uns dias quietinha no Limoeiro, até porque tenho que fazer minha mágica pra te colocar nos lugares certos e isso não rola de uma noite pra outra… — deu uma pausa, o semblante pensativo — Ah… Sobre aquela proposta maluca da Mônica…

— Vou aceitar. Preciso urgentemente de um ciclo de amizades menos caótico. — disse — E um namorado fixo não seria ruim para a imagem também.

— Essa é minha garota. — Toni sorriu.

— Espero que algum desses planos dê certo. — a loira comentou, encarando o jogo pausado na televisão com o mesmo semblante triste que não abandonava seu rosto desde o dia anterior. 

 

9 de janeiro de 1996, Cidade do Limoeiro, Casa da TMJ

Nenhum dos garotos da banda nunca tinha visto Do Contra chorar. Nunca. Nem de tristeza, nem de alegria, mesmo ele sendo um homem obviamente sensível. Mas quando o rapaz chegou em casa no meio daquela madrugada, ele apenas estacionou o Porsche de Titi na primeira vaga que encontrou, entrou acompanhado de Nimbus e desabou no tapete da sala. O agente instalou o recém-chegado no quarto do irmão e o baterista continuou ali, na mesma posição, a mão sobre a testa e lágrimas teimosas escapando de seus olhos. Havia sangue seco em seu rosto, que havia escorrido do nariz e escorregado até a boca, mas no momento ele estava enraivecido demais para limpar. De todas as coisas que poderiam machucá-lo no mundo, naquela noite ele havia recebido o pior golpe de todos. Honestamente, em parte estava com vergonha de sua reação, o que apenas piorava tudo. Não conseguiria conversar com os amigos sobre a situação enquanto se sentisse assim, mas o que mais poderia fazer? Era conhecido por ser calmo e contido, porém sua lealdade era maior que tudo e foi por essa razão que ele fez o que fez.

Mas para entender de onde vieram essas lágrimas, precisamos voltar algumas horas. Ou talvez alguns anos. Os irmãos Hiromashi sempre tiveram uma relação fraterna bem comum, se provocavam e se irritavam o tempo todo, mas davam a vida um pelo outro se necessário. A casa onde cresceram era tranquila. Ambos os pais, filhos de imigrantes japoneses, mudaram-se para a Cidade do Limoeiro pouco antes do nascimento de Maurício, para fugir do caos da capital paulista, mas continuar perto o suficiente para visitar a cidade com frequência. A mãe dona de casa, o pai um homem simples, que começou sua carreira ainda garoto como office boy e continuou trabalhando em escritórios até chegar ao emprego atual em um escritório de cobranças em São Paulo, fazendo a família voltar à cidade. Maurício já tinha se mudado para lá por conta de seus compromissos com a banda, então parecia bastante lógico. Eles sempre foram pessoas muito quietas, sem grandes problemas familiares, tentavam preservar suas raízes (principalmente quando recebiam os avós em casa) e levavam o dia a dia numa boa. Os dois meninos nunca deram trabalho. Nimbus, o mais velho, sempre foi o menino de ouro: bom estudante, inteligente, apaixonado por fazer mágicas, mas seguiu a carreira de jornalismo porque queria ser metereologista na TV. Já o caçula, sempre ia contra tudo, mas os pais se acostumaram com seu jeito e o achavam maravilhoso. Apesar da rebeldia, do amor pela música que o afastava das profissões que os pais aprovariam e das saídas com os amigos, Do Contra nunca deixou as notas caírem e caso a música não desse certo também garantiria um bom futuro.

Quando seu plano A não apenas sucedeu, como aconteceu metaforicamente, foi um susto para a família. De repente tinham um astro do rock em casa! Foi difícil para os pais verem o filho tão novo abandonar a casa acolhedora em troca de seu lar próprio e de viagens e mais viagens, mas eles assistiram com orgulho o nome dele se tornar cada vez mais importante para a música brasileira.

As coisas corriam desse jeitinho, muito bem, sem grandes preocupações… Pelo menos até aquele verão de 1996. 

Vamos lá, querido leitor, certas coisas que vou contar serão (literalmente e metaforicamente) doloridas, mas foi assim que aconteceu e me comprometo a te contar a verdade. Nem tudo nos anos 90 era brilho, alegria e rock n' roll.

Tudo começou no ano novo. Cascão deu uma festa em seu apartamento no bairro de Vila Madalena, algo bem pequeno, só para os grandes amigos. Não queria fotógrafos ou escândalos. A festa teve tudo o que o ano novo pede: confetti colorido, contagem regressiva, champanhe aberto à meia-noite, fogos sendo vistos através das enormes janelas de vidro da sala, muita música e dança. Teve também, claro, promessas para o ano que nascia. Jeremias prometeu aquietar o facho e encontrar alguém para se casar, Magali prometeu parar de recusar as sessões de fotos para as quais ainda era chamada (ganhar dinheiro sempre é bom, afinal), Do Contra, como todo ano, prometeu parar de fumar e Nimbus chamou o irmão de canto e lhe disse que sua promessa era contar a verdade para aqueles que mais amava, então num ato de coragem se assumiu como homossexual para o mais novo, que o abraçou, orgulhoso pela decisão do mais velho e feliz por ser digno da confiança.

Eles estavam felizes, mas pouco mais de uma semana depois Mauro resolveu repetir o ato de coragem com os pais, só que… Não deu tão certo. A mãe chorou, horrorizada, o pai lhe disse absurdos. Sem saber o que fazer, ele ligou para o irmão e lhe disse que não queria mais ficar naquela casa.

De primeira, Maurício foi com a intenção de mediar a situação. Até pegou o carro de Titi que era mais veloz, desceu a serra que separava o litoral paulista da capital onde os Hiromashi agora viviam, mas ao chegar em casa encontrou uma situação de caos. Nunca tinha visto o pai sendo tão intolerante, dizendo coisas que o baterista jurou que jamais repetiria. Nimbus saiu do quarto, a confusão escalou em um nível que o mais novo, mais alto, forte e por vezes agressivo, cresceu para cima do pai. A mãe tentou separar, aos gritos, e Mauro entrou no meio para segurar os dois, acabando por levar um empurrão. Na raiva, o mágico devolveu os insultos ao pai, que lhe acertou no ombro, fazendo com que novamente Maurício entrasse no meio. Ele não queria partir para a agressão física, mas na hora da raiva foi isso que aconteceu, deixou um olho roxo no pai, que lhe devolveu com um soco muito bem dado no nariz. Ao ver os ferimentos, os três homens caíram em si e a confusão cessou. No entanto, o Sr. Hiromashi foi claro ao dizer que não toleraria gente libertina dentro de sua casa e que enquanto estivesse debaixo de seu teto Mauro agiria conforme suas regras.

Se você imaginou que ele decidiu cair fora daquela casa, então pensou certo. Maurício não disse mais uma palavra enquanto o outro arrumava suas coisas e nem depois enquanto dirigiam até as ilhas privativas do Limoeiro.

Esse é o tipo de história que nunca tem um lado só. Enquanto Maurício tentava lidar com o fato de que não podia proteger o irmão de tudo e que o maior perigo enfrentado por ambos tinha sido justamente seus pais, que sempre eram tão amáveis e corretos, Nimbus apelava para o silêncio.

No quarto bagunçado do baterista Titi instalou um colchão antes que os dois chegassem, que Xaveco prontamente cobriu com um lençol azul e complementou com um travesseiro e um cobertor. Nenhum deles sabia o motivo da confusão no lar dos Hiromashi, então tentaram ajudar de seu jeito.

— Você tá bem? — Timóteo perguntou, parado à porta e olhando o outro sentado na cama do irmão de cabeça baixa.

— Você não devia cuidar do DC ou algo assim? — ele perguntou.

— E eu vou. Mas conheço teu irmão e nunca vi ele desse jeito, acho que ele precisa do momento dele. — deu de ombros — Além do mais, pelo que eu soube essa também é sua casa agora. É uma das minhas funções garantir que todo mundo esteja bem instalado.

— Então você é tipo a governanta deles. — o rapaz brincou, finalmente levantando o rosto, embora seu semblante continuasse triste.

— Não! — o outro se defendeu — Eu sou… Puta que pariu, eu sou a governanta e babá. — disse bem baixinho, mais para si mesmo, mas ainda assim Nimbus escutou e caiu na risada.

— Caraca, o astro do futebol do Colégio Juiz de Lem, maior fisiculturista adolescente da história, rei das pistas, sonho de consumo das meninas… Virou governanta e babá! — Mauro listou com os dedos todos os apelidos que Titi tinha na escola (autointitulados ou não) e pontuou a frase com uma risadinha que deixou o mais alto encabulado. — Foi mal, eu precisava rir um pouco. Respeito seu trabalho com eles, é estranho dizer isso te conhecendo desde a escola, mas você é o responsável que mantém isso funcionando. Quer dizer, você e o Jerê.

— Obrigado pela parte que me toca. — ele arqueou as sobrancelhas, sorrindo sem mostrar os dentes. — Mas falando sério, você tá bem? Precisando de mais alguma coisa?

Cebola e Jeremias fizeram comida, então se quiser jantar pode ficar a vontade de ir lá na cozinha. A comida deles não é a melhor, mas não é a pior também. Sinta-se em casa. — completou, saindo em seguida e fechando a porta onde se apoiava.

Nimbus encarou a parede, pensando no que seria de si. O passo lógico era voltar para São Paulo e retomar seus estudos quando acabasse o verão, mas com que dinheiro? Não podia pedir que o irmão custeasse sua vida… E os pais… Ele ainda não havia absorvido a crueldade das palavras ditas pelos dois. Entendia o estranhamento e o medo. A homossexualidade era tão associada ao vírus da AIDS que assumir-se gay era como uma sentença de libertinagem e promiscuidade. Mas honestamente? Nimbus era um cara muito tranquilo, que não gostava de ter muitos parceiros diferentes e se protegia. Em matéria de relacionamentos, ele agia exatamente como o irmão, só que com homens. Então qual era o problema? Os Hiromashi sempre tinham sido liberais. Aceitaram quando o mais velho tentou a carreira de mágico, aceitaram quando ele desistiu e foi para o jornalismo, aceitaram quando o mais novo assinou com a Som Livre, não diziam nada sobre os boatos e fofocas que corriam sobre ele. Porém todo mundo tem seu limite e o deles, aparentemente, era a homossexualidade que o filho levou anos para descobrir e aceitar e que agora o fazia feliz.

Ele pensou no réveillon, na reação de Maurício, e torceu para que as próximas vezes que saísse do armário fossem assim.

A manhã seguinte foi provavelmente a primeira vez que todos os membros da Tramóias Jurídicas tomaram café da manhã quietos em anos. O silêncio era tanto que chegava a ser estranho e em um determinado momento Cascão, sempre o boca-aberta do grupo, não aguentou.

— O Titi mandou a gente ser discreto, mas… Cara, que porra foi essa? — o guitarrista disse, de boca cheia, apontando para o baterista e recebendo um olhar de repreensão do agente. De longe dava para ver os ferimentos na mão esquerda de Do Contra que, claro, era canhoto, e todos estavam curiosos, mas ninguém era tão cara de pau quanto Cássio.

— Ele socou a caranga do Timóteo. — Nimbus respondeu tranquilamente, fazendo com que a expressão de horror do mais velho piorasse. — Brincadeira. Foi a parede de casa… — ele deu uma pausa, olhando para o irmão como quem perguntava se podia contar e recebendo um dar de ombros em resposta — E a cara do nosso pai.

— Quê? — Jeremias praticamente gritou, surpreso, Cebola cuspiu refrigerante Taí pelo nariz, fazendo uma careta de dor e Xaveco arregalou tanto os olhos que era como se fossem sair das órbitas.

— Nimbus… — Maurício fez uma careta. Na noite anterior haviam conversado brevemente sobre o mais velho não ser obrigado a contar a história para os colegas de banda do mais novo, mas o mágico não achava justo. De que adiantava passar por tudo aquilo e continuar mentindo? Se fosse para ser expulso de outra casa, era melhor que acontecesse logo.

— Relaxa, pivete. Eu sou o mais velho aqui. — suspirou pesadamente, jogando um guardanapo para que Cebola pudesse se limpar — Olha… Foi uma confusão, mas o idiota aí tava me defendendo. — deu de ombros — É o seguinte… — pausou, buscando as palavras certas. Não tinha reparado até então como estava com medo de entrar naquele assunto de novo. — É que… Eu…

— Mauro, chega. — o mais novo advertiu, o olhar cheio de preocupação.

— Para de me interromper, merda! — ele levantou a voz. Os outros nunca haviam visto os irmãos Hiromashi tão exaltados e Cascão se arrependeu de ser tão intrometido.

— Vocês não querem conversar sobre isso outra hora, a gente pode… — Xaveco começou, dando seu melhor para apaziguar.

— Eu sou gay! — Mauro gritou, calando a mesa inteira — Meu pai me ofendeu, o DC foi me defender, deu briga e… É isso. — explicou, sentindo um peso lhe abandonar as costas, ainda que continuasse cheio de medos. E se os outros nunca mais o olhassem do mesmo jeito? — Eu não vou ficar muito tempo, só até arranjar onde morar. — completou, levantando-se da mesa antes que qualquer um dos outros tivesse a chance de demonstrar qualquer reação.

 

10 de janeiro de 1996, Cidade do Limoeiro, Casa de Toni

Carminha abriu os olhos, indignada com a luz do sol invadindo sua visão repentinamente quando ela estava dormindo muito bem e em paz no quarto de hóspede da casa de seu agente. Mas lá estava o próprio, em carne, osso, bermuda e camiseta da Ralph Lauren, olhando-a com uma expressão indiferente.

— Marco Antônio, eu vou acabar com você se me acordar desse jeito de novo!

— Você dorme demais, boneca. Seu momento de ficar fora do radar acabou, rise and shine, gorgeous. — disse sem emoção.

— Como assim? — ela protestou. Ainda achava muito cedo para estar por aí.

— Primeiro, você já choramingou demais. Sua capa já entrou pra a lista das cinco mais vendidas da década, tá na hora de mostrar que você é um sucesso. — explicou — Além do mais, você vai ser a próxima namoradinha da nação, ou melhor, do Encantado da TMJ. E se vocês querem que o planinho funcione, é bom fazer parecer que você e a Mônica são amigas, se não ninguém vai comprar essa história de que ela apresentou os dois. — continuou, arrancando uma expressão de desgosto da modelo.

— Não sei… Olha, eu ainda posso desistir. Nem sei nada sobre esse cara e…

— Você vai porque a ex dele vai te falar tudo o que tiver pra saber. Que isso, Carmem? Vai dar pra trás? A missão é difícil demais?

— Você está duvidando que eu, Carminha Frufru, consiga fazer um idiota cair na minha lábia? — ela finalmente se levantou, jogando o cabelo para o lado como fazia quando irritada. — Metade do Brasil quer pôr as mãos nesse corpinho aqui, querido. E os que não querem ainda é porque não compraram a revista. — a loira empinou o nariz, mesmo que continuasse se sentindo do mesmo jeito por dentro.

— Agora você falou como a Carminha que eu conheço. — o rapaz sorriu — Prepara o terreno com a sua nova melhor amiga. Os boyzinhos vão fazer um show aqui no Limoeiro esse final de semana e você vai estar no camarote, é sua chance de conhecer o panaca. Reúne o máximo de informações que puder sobre ele, esse é seu trabalho hoje. — apontou, lhe dando uma piscadela.

— E o seu, qual é? — arqueou as sobrancelhas. Era a forma dela de exigir que ele estivesse fazendo um trabalho efetivo com sua imagem.

— Eu tenho um monte de reuniões hoje, boneca. E todas vão te interessar. — respondeu, rindo alto antes de sair, batendo a porta da frente da casa segundos depois.

A realidade estava dando às caras e não adiantava se esconder sob cobertores e fitas de VHS de filmes da Jane Austen. Carmem suspirou, já pegando o telefone para ligar para o motorista do chalé dos Frufru. Tinha que voltar pra lá, organizar sua vida e começar sua parte no maldito acordo. 

Aqueles dois dias haviam mudado tudo para todos os envolvidos em nossa história.

 


Notas Finais


Uau! Esse capítulo foi pesado. Bom, eu pensei bastante sobre como abordar os assuntos desse capítulo, mas decidi ser fiel ao que vi e conheci da década de 90. Falando sobre a Carmem, naquela época a Playboy era uma das revistas mais vendidas do país, mas ainda assim muitas mulheres que posaram foram duramente julgadas e eu não pude deixar de colocar isso aqui. Mas, claro, tudo isso fará parte do desenvolvimento dela na história!

Agora sobre o Nimbus, a coisa fica mais delicada. Sabemos que a LBGTfobia continua muito presente na nossa sociedade e que infelizmente muitas famílias ainda expulsam seus filhos de casa por conta da sexualidade ou identidade de gênero, mas durante a década de 80, 90 e atpe um pedacinho de 00, o mundo foi tomado por um preconceito que associava automaticamente quaquer pessoa que se assumisse com a AIDS e o HIV (na época nem se falava na diferença entre os dois). Vale lembrar que o HIV era visto como uma sentença de morte e que hoje em dia pessoas vivem com a doença de forma muito mais saudável, podendo até não transmitir mais o vírus se a carga viral for controlada pelo tratamento. Além dessa questão da doença, a homossexualidade era vista como absoluta promiscuidade, ou libertinagem, como o pai dos meninos disse. Novamente: pensei muito se deveria trazer isso para o universo, mas achei injusto mostrar somente os lados brilhantes da década. Ainda teremos muito espaço para explorar o Nimbus e sua relação com a própria sexualidade.

E numa nota mais brilhante: logo vem aí o grande encontro desses grupos de pessoas tçao diferentes! Prometo emoções, muito rock n' roll e curtição. Algumas perguntas deixadas por esse capítulo serão respondidas também, não se preocupem.

Ainda pretendo trazer mais sobre a mídia sensacionalista da época e temas importantes, então vamos intercalar momentos de gracinha, romance e diversão com momentos de seriedade!

Por último, queria deixar um pequeno aviso: a fanfic vai entrar em um breve hiato porque a autora precisa resolver probleminhas de saúde, então semana que vem (e talvez na outra) não teremos capítulo novo. Tentarei ficar o mais ativa possível no twitter, mandando notícias e quem sabe postando conteúdos extras! De cara já deixo uma lista de 10 filmes para você não morrer de saudades de A Megera e o Indomável! Confira aqui: https://twitter.com/mialehoi/status/1515496780359680002

Por hoje é isso, estarei dando notícias pelo twitter, então se quiserem xeretar por lá, vou amar!
Beijos de malandragem,
Mia Lehoi

Edit: antes de sair definitivamente de hiatus deixo mais um extrazinho: um gostinho de como é a banda TMJ, confira https://twitter.com/mialehoi/status/1516485922619072514?t=sPt43OzL4E5UQmWlCd5iCw&s=19


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