1. Spirit Fanfics >
  2. A Palheta >
  3. Homem de 1970

História A Palheta - Homem de 1970


Escrita por: GloryNeko

Notas do Autor


Era para eu postar isso daqui assim que finalizasse todos os capítulos, mas estou com uma ansiedade que não cabe em mim, então me vi obrigada a postar quando ainda preciso finalizar o segundo capítulo, hahaha.

Realmente não sei a repercussão que a história vai gerar, mas é importante que preste atenção nos avisos. Eles não estão lá por nada, e vale salientar a menção de drogas, overdose, sexo e tragédia. Tudo abordado, mas não romantizado.

Será, de novo, uma história com três capítulos e tentarei postá-los o mais rápido possível. Espero que gostem dela.
Todos aos contos de "Se eu conto, ninguém acredita", de Rafael Pedrosa, que foi mencionado lá na sinopse.

Sugestão de música nas notas finais.

Capítulo 1 - Homem de 1970


 

Se eu nunca ver você de novo
Eu sempre vou levar você
dentro
fora

na ponta dos meus dedos
e nas bordas do meu cérebro

e em centros
centros
do que eu sou do
que restou.

Charles Bukowski

 

...

A Palheta

Homem de 1970

 

— Você é um vaso quebrado, Naruto — Gaara disparou, rabiscando um coração feio pela metade da extensão de um papel de guardanapo — Consegue entender? É como se você tivesse colado seus pedaços, um por um, mas o resultado final não é tão bonito quanto o original.

Então, Naruto tomou-lhe o guardanapo e desenhou a outra metade do coração, uma risca malfeita partindo-o ao meio. Gaara franziu as sobrancelhas — ou o lugar onde elas deveriam estar — e voltou-se à janela condensada, que comportava a chuva do lado de fora da quitinete. O cheiro de sexo flutuava feito uma bolha de sabão, estourando como a lembrança de prazeres temporários para suprir o vazio no peito, assolando o ar cruelmente gelado e envolvendo os corpos molhados e espremidos por debaixo dos lençóis de flanela. 

Não que aquilo fosse capaz de esquentá-los. Naruto, inclusive, tinha completa convicção de que seus dedos dos pés estavam roxos e que deveria amputá-los com uma faca de cozinha.

— Não é muito charmoso me comparar a um vaso quebrado — se queixou, apoiando-se sobre os cotovelos, chacoalhando o guardanapo entre os dedos — Se me chamar de lustre, quem sabe eu te dê o meu telefone.

— Uma lamparina, no máximo. — o riso se desprendeu de Gaara assim que observou Naruto pousar a mão sobre o peito nu, ofendido. Jazz melancólico de cafeteria para ricos escapava do tocador de músicas da moda. Her day was born in shades of blue. Her song was sad the words were true — Não me faça mudar de assunto, palhaço. Você sabe muito bem do que eu estou falando. O que é? 'Tá abalado por causa de ex?

Naruto havia conhecido Gaara em seu serviço. O rapaz de Suna levou, por acaso, seu cão debilitado para que Naruto o tratasse na clínica veterinária que, coincidentemente, era ao lado da lanchonete. Foram necessários exatamente dois encontros para que finalmente se enrolassem dentre os lençóis. Não eram tão puros quanto imaginavam, estavam partidos por dentro e usando um ao outro em busca de uma felicidade que não conseguiam encontrar em si mesmos, mas não que Naruto se importasse.

Ele não se importava com grande parte das coisas há muito tempo, no fim das contas.

Poor lady day could use some love, some sunshine.

— Flertar e citar o ex do outro não são coisas que combinem. Você é um fracasso para cantar as pessoas.

Gaara apertou os olhos verdes. A maquiagem preta nas pálpebras, borrando os cílios, estava tão péssima quanto os cabelos tingidos de vermelho, que mais pareciam um ninho de pássaros. Um ninho arruinado, com os seus galhos torcidos despencando para todos os lados.

Lady day has too much pain. It's such a lonely face. Such a cloudy sky. So many shadows in her eye.

— Já passamos da época de flertar. O sexo já foi, agora está na hora de conhecermos melhor um ao outro e você não tá ajudando. Depois eu quem sou o fracasso?

Naruto arquejou, exausto. Sentia que a cada instante — cada maldito instante infeliz — que era forçado a pensar naquele assunto, uma parte de dentro de si trincasse. Faltava o mínimo para que tudo se estilhaçasse de uma vez, e tinha certeza absoluta que jamais teria todos os pedaços de si mesmo, perdido entre encontros e desencontros de solidão. Ainda mais depois que o Uchiha levou tanto de si consigo.

E após longos minutos, Naruto deixou que a voz escalasse sua garganta.

— Ele não se encaixa no status de ex-namorado — disparou, nervoso — É um ex-alguma-coisa.

— E seu ex-alguma-coisa tem nome?

Então, o que restava para se partir em Naruto estalou em mais dez rachaduras. Mais uma, e virava pó. Como aquele que dançava sobre a mobília.

— Sasuke.

...

 

Existem amigos que são boas influências, e outros, nem tanto. 

E Naruto tinha completa e indiscutível certeza de que Sakura se encaixava de forma impecável na segunda opção. Dos cabelos loiros tingidos de rosa, até os dedos feios do pé.

— Existe um ditado que diz que a vida só se vive uma vez, sabia? E você, meu caro, está a está vivendo igual um filho da puta miserável. Mas o destino não conspira contra você, então você tem a mim para mudar a sua situação — então, Sakura explodiu o chiclete de melão em uma bolha generosa e brilhante — Não precisa agradecer.

— Olhe a minha cara de quem está completamente agradecido — Naruto apontou um dedo para o próprio rosto, crispando os lábios de uma maneira que fez com que a mulher em sua companhia sorrisse — Eu deveria estar estudando imunologia e chorando no meu quarto por não entender porra nenhuma. Então, adivinhe, você me trouxe a um pub para que eu chore em público. Então, sim, o universo está conspirando contra mim, minha linda. 

Como se a possibilidade de reprovar em mais uma matéria não fosse grande o bastante, Naruto sentia como se suas pálpebras tivessem mais peso do que um caminhão pipa, densas e inchadas de cansaço, olheiras escuras debaixo da pele fina do olho azul. Jamais sentia a inclinação natural para estudar, não quando afundar dentro de lençóis amarelos pelo tempo era mais tentador, quando o colchão o engolia num abraço deprimente e apertado, quente o suficiente para te fazer desejar nunca sair de dentro dele. Mas quando estava à um fio de afundar em uma reprovação de novo, passar as madrugadas em claro não era uma visão tão ruim assim.

Não quando sabia que poderia dormir no dia seguinte. Era sábado, e ao invés de roncar em seus travesseiros, beber tequila com sal até arrotar azedo e esquecer das dores que às vezes pareciam sufocantes demais, havia se deixado arrastar por Sakura a um boteco que ele sabia que não conseguiria pagar nem por dois litros de cerveja. 

— Você é tão dramático que me dá úlceras — Sakura afirmou, ajeitando os saltos apertados demais nos calcanhares. 

Naruto a ignorou, ciente de que quando se tratava de drama, Sakura ganhava de dele com cem pontos de diferença e, exatamente por conhecer a personalidade dela, se encarregou de selecionar a mesa onde sentariam — meio bamba, suja com farelos de torrada e úmida por gelo derretido, longe dos mictórios com cheiro de mijo de homem —, ao passo que Sakura, por sua vez, andava cambaleante até o banheiro para colocar pedaços de algodão nos calcanhares, balançando os quadris ao som de Nina Simone, Blues for Mama saindo das caixas de som e deslizando pelas paredes feito tinta. 

As lâmpadas cobriam tudo com um reflexo minguado, amarelado, fazendo com que Naruto se sentisse sossegado — não, não era devido à luz que deixava o bar ameno demais —, visto que ninguém conseguiria notar sua camiseta com manchas de água sanitária. Na roupa havia um bordão estampado "Until it Sleeps", a tipografia do Metallica escrita embaixo, e Naruto pensava em comprar novas roupas em um brechó, talvez alguma que não denunciasse sua falta de dinheiro e o ótimo gosto musical como única qualidade realmente impressionante que tinha, quando um som de interferência de microfone fez com que torcesse a cara em uma careta hostil. O blues parou de tocar e deu lugar ao ruído de isqueiros e aos sussurros gelados de copos de cerveja batendo contra as garrafas.

Os olhos claros vagaram a esmo pelo bar, capturando um tablado baixinho, carcomido nas bordas e reluzindo em um amarelo viscoso da iluminação, que comportava equipamentos musicais para todos os lados, fios enrolados ocupando o assoalho e caixas de som com poeira marrom que parecia antiga. No entanto, Naruto conseguiu achar em tempo hábil algo que realmente fosse digno de sua atenção: era um cara gótico — ou seria punk? Headbanger também era uma ótima alternativa — posicionado atrás de um microfone vintage, clássico, parecendo ter brotado diretamente dos anos 20. Naruto quase podia escutar as almas mortas do jazz cantando sobre ele. O homem, em questão, tinha a cara de Syd Barrett, do Pink Floyd, e isso já era um alerta vermelho por si só. Porque, acima de tudo, além da aparência, aquele cara carregava olhos caídos de desesperança e hostilidade que, sozinhos, avisavam que era melhor se manter longe.

Não que Naruto fosse um exímio consultor de moda, mas tinha a convicção de que o figurino do sujeitinho passava longe de ser harmonioso. Ele vestia-se com coturnos metidos nos pés, calças escuras apertadas nas coxas e frouxa nos cambitos, e um sobretudo militar negro que cobria quaisquer camisetas que o cara estivesse usando por baixo. E aquilo não era o pior: o cabelo preto era completamente revolto, desfiado como os de Nikki Sixx, secos e parecendo lambuzados com laquê. Os olhos delineados eram tão escuros que Naruto sentiu-se orgulhoso ao constatar que aquilo era, sem sombra de dúvidas, lentes de contato. Porque somente demônios poderiam ter olhos tão sombrios e não existia possibilidade no mundo que sugerisse que existia um, agora, à frente de Naruto e parecendo perdido nos séculos.

— E chegou a hora do bonitão brilhar! — Sakura disparou e Naruto a observou, perplexo por sequer ter notado que ela havia chego da viagem ao banheiro — Ele e o grupo dele se apresentam todos os sábados. São maravilhosos, sabia? Por isso que eu te trouxe pra cá.

— Me trouxe para assistir a um esquisitão?

Sakura ergueu as sobrancelhas e correu o dedo pelo rastro de gelo derretido sobre a mesa.

— Onde, exatamente, você está vendo alguém esquisitão ali?

— Bem ali, atrás daquele microfone retrô cafona.

Lutando contra a sua inclinação de achar que aquele homem era um completo lunático à primeira vista, Naruto permitiu-se dizer que o rosto duro dele formava algo belo se o olhasse bastante e ignorasse os sinais quase óbvios de um possível abuso de álcool. Os cílios densos geravam sombras grossas sobre as maçãs do rosto quando ele abaixava os olhos para os próprios pés, em companhia ao nariz todo arrebitado e os lábios — a cereja do bolo daquela beleza toda — que possuíam um desenho charmoso e ondulado. 

E, assim, sem apresentar-se ou se dar ao luxo de conquistar a simpatia da plateia, o ritmo começou de súbito e o cara dirigiu, sutil e vagarosamente, a boca ao microfone prateado, a virilha se esfregando de repente na haste e o brilho amarelo das lamparinas dando a ele o charme líquido de alguém que não pertencia aos anos 2000. Naruto sabia de qual música se tratava, porque o título dela havia sido gravado em sua camiseta — aquela com manchas de água sanitária — e dispensou a mínima possibilidade de ser uma coincidência, visto que os olhos do homem, tão sombrios quanto nanquim, pousaram em Naruto e, com aquela boca ardilosa, o sujeito estirou o lábio no que deveria ser um sorriso.

Naruto sabia o que era um sorriso amistoso, e aquele o qual observava passava muito longe de ser amigável, com lábios duros e curvados nas pontas como se carregassem a maldade dentro de si mesmos.

— Para quem ele sorriu? Para mim ou para você? — Sakura lhe questionou, o sussurro ansioso chegando aos seus ouvidos enquanto ela chamava o garçom para que trouxesse outra dose.

— Para você.

Não era verdade, mas o que mais poderia fazer? Sakura poderia sentir-se confiante e, posteriormente, tomar coragem para testar seu sex appeal com o sujeitinho bizarro. Ela estava bastante segura de si desde o retoque da tintura rosa nos cabelos e não era ele quem precisava transar ali. Não com um homem que, agora que Naruto averiguava mais adequadamente, traçava lápis de olho nos olhos. Era sutil, muito borrado, como uma pintura de guerra, mas ainda estava ali e Naruto não deixava de considerar aquilo mais uma característica anormal no meio de todas as outras.

Sakura tinha gostos fora do comum, mas não seria ele a contestá-los.

So tear me open, pour me out. There's things inside that scream and shout and the pain still hates me. So hold me until it sleeps.

— Sabe o nome dele? — Naruto questionou, os pés arrastando-se no assoalho de acordo com a pulsação da música, os poros da pele quase sangrando pelo corte que era a voz rouca e nervosa escapando pelo microfone, a bolha de calor e energia do rock estourando.

A cerveja havia chego, e agora a espuma amarga dela estava sobre o lábio superior de Sakura, que havia ingerido uma golada ansiosa. 

— É Sasuke — Sakura ponderou — Talvez seja um nome artístico. Alter ego, estilo Buckethead.

— Talvez ele devesse aderir o nome artístico de Rebelde sem Causa. É muito original. Você notou o lápis de olho? É como se ele tivesse se maquiado e coçado os olhos.

— Suas olheiras quase deixam você igualzinho a ele. Formariam uma dupla muito boa.

— Deixe de ser puxa-saco, Sakura.

Naruto não desejava voltar os seus olhos a Sasuke, ou sua variação, Rebelde Sem Causa. O nome encaixava nele como uma luva —, com grande receio de ganhar de presente mais uma daquelas expressões que Sasuke chamava de sorriso. Não queria ser engolido pelos olhos sombrios e elevado pela voz metálica. Ele deveria se esforçar muito mais se quisesse parecer amigável, no entanto, não era como se Naruto pudesse ignorar o ritmo que entrava em seus ouvidos.

A voz dele era mais gostosa do que Naruto ousava admitir, e o som alto fazia sua cadeira palpitar e a cerveja sacolejar, perdendo a espuma. Ele cantava e cantava, a virilha ainda se arrastando pela haste, a voz estourando como um trovão (Então me rasgue, mas cuidado. Existem coisas aqui dentro sem cuidado e a sujeira ainda me mancha. Então lave-me até que eu esteja limpo). Naruto não queria acreditar que a música era tão boa para fazê-lo se arrepiar, mas os pelos de seus braços apontavam para cima e ele quase apostava que os pelos de outro lugar ficariam para o alto caso o Sasuke não ficasse calado. Porque, porra, ele era bom pra caralho.

Aquela não era a pior parte — o que não significava mais pelos arrepiados —, na verdade, Naruto notava um olhar fervendo em sua nuca, fazendo com que tivesse certo ressentimento por ela. Talvez os cabelos dali também fizessem menção de subir.

— Não é para mim que ele está olhando — mais um gole, e os olhos verdes de Sakura subiram de Naruto para o homem acima do tablado.

A entonação de voz de Sasuke subiu um grau, chegando perto de James Hetfield. Era mínimo, mas pôde fazer Naruto arquejar devido à satisfação, o tesão musical que fazia com que tivesse vontade de gemer e teria revirado os olhos por causa da avalanche de prazer, o delírio que qualquer música boa era capaz de provocar, mas Sakura enrugava a testa para ele, as íris queimando sua expressão enganosamente entediada. Ela exigia que Naruto devolvesse o olhar, e quando a mulher deixou o queixo cair, soube que algo estava errado.

Talvez Sasuke tivesse tropeçado no palco e por isso, só devido a isso, Naruto virou-se a fim de checar o motivo do espanto de Sakura. Lançou uma olhadela por sobre o ombro e teve de segurar o gemido de assombro ao não encontrar o cara cantando atrás do microfone centenário.

Na verdade, o microfone também não estava ali. Igualzinho a Sasuke, que ao invés de estar fazendo seu papel de cantor em ascensão, dirigia-se vagarosamente até Naruto. Até Naruto!

Sakura chutou-o com a extremidade fina do salto por debaixo do tampo da mesa, fazendo-o saltar em surpresa. Sasuke cantava o último trecho de Until It Sleeps, a voz gostosa e crua parecendo estar boiando para mais perto de seus ouvidos. Talvez Naruto estivesse boiando mais do que ela, o desespero de ter aquele homem por perto o rasgando na mesma medida que o som nervoso do rock o remendava, só para ser aberto e exposto pelos olhos de Sasuke outra vez.

Os pelos que faltavam despertar espetaram-se, como uma platéia que leva suas mãos ao alto durante o clímax de um refrão. Isso fez com que Naruto pressionasse uma coxa na outra, espiando Sasuke aproximar-se com uma graciosidade que não condizia nem um pouco com sua aparência. Ao espiá-lo, temendo a possibilidade de Sasuke exigir que cantasse o final da música, Naruto mordeu a bochecha até que sangrasse.

Parecia uma onça voltando-se à presa e Naruto tinha quase certeza que ele era o veado da história.

Um sorriso preguiçoso alcançou o semblante dele, e Naruto quis sorrir de volta: Um sorriso nervoso, que exprimia seu desejo de escapulir para o lado oposto e berrar pernas, pra quê te quero. Sentia-se reprimido feito uma barata diante da bota, e o momento de ser esmagado chegou quando Sasuke parou diante dele.

O público do pub sorria e voltava a atenção para eles, contudo, não era como se Naruto se importasse com o detalhe. De quebra, havia outras coisas para se concentrar, e uma delas era que Sasuke estava com o microfone na mão, segurando-o com falta de cuidado, e próximo o bastante para que Naruto sentisse o cheiro de suas roupas.

Havia um perfume tão inebriante quanto um narcótico, mas o odor forte de charutos e maconha quase fez com que perdesse o encanto. 

So hold me until it sleeps — o outro canto dos lábios de Sasuke subiu devagar — Until it sleeps.

A música havia acabado, e Narutou achou que era a única parte do auditório que não explodiu em uma cacofonia insuportável de aplausos. Estava ocupado demais em pensar que, ao contrário do que achava, Sasuke não fazia uso de lentes de contato e que isso era completamente bizarro, porque os olhos pretos pareciam fundos demais e Naruto agora se afogava neles, engolindo tinta escura e tenebrosa que não refletia luz.

Ele era muito bonito de perto e, porra, talvez a versão masculina da Mortícia Addams diante dele talvez não fosse tão ruim assim.

— Sabe, eu conheço todos daqui — ele ronronou, a boca se afastando do microfone em um gesto sutil — Não me parece desagradável ver uma cara nova nesse fim de mundo.

— Não é o problema. Naruto gostou tanto que disse que voltaria aqui o quanto antes — Sakura interviu, e Sasuke olhou-a de soslaio rapidamente, antes de assentir e voltar-se a Naruto. 

— Não foi o que me pareceu — a mão tamborilou o cabo do microfone — Ele sequer olhou para o palco.

A dedução fez com que Naruto se sentisse mais alarmado ainda. Ele não dava a mínima para as conclusões de Sasuke, as opiniões dele não mudariam nada em sua vida e por isso não havia motivos para considerá-las. No entanto, saber que Sasuke o investigava o suficiente para saber que Naruto não prestava atenção nele era realmente apavorante. Não queria ser notado, não queria ser visto, não queria estar à mira de alguém que conseguia deixá-lo instável com um olhar e o aperto sufocante da voz.

— Olhei, sim — Naruto disparou, tomando um gole da cerveja, agora quente, de Sakura — Eu gostei mesmo — então, um sorriso — mas já vi melhores.

Mentira.

Existiam poucas vezes que havia escutado algo melhor, e talvez a voz de Ella Fitzgerald e Steven Tyler fossem mais constantes, mas não era como se Sasuke devesse saber. Além disso, Naruto tinha outras coisas para focar, o que incluía a reação de seu ouvinte: que estava, vale ressaltar, tão impassível quanto no momento em que iniciaram aquela conversa. Os olhos pretos maquiados se apertavam, mas o mais repentino foi o suspiro que ele expeliu. Pelo nariz, como se risse e não quisesse ser descoberto.

— É mesmo? — Sasuke questionou, transferindo o peso do corpo para outra perna — Talvez se eu não estivesse não chapado, o som poderia ter saído melhor. 

E na anotação mental, aquelas que vinha escrevendo desde que sentiu o cheiro de fumaça de Sasuke serpenteando até seu nariz, abaixo de "obsessivo compulsivo", Naruto anotou "intoxicado". 

Estava com a resposta na ponta da língua, incomodando-o para escapulir pelos seus lábios quando um dos integrantes da banda passou a aproximar-se deles. Havia um nome rabiscado na pele próxima à clavícula, uma tatuagem que mais parecia uma obra infantil, onde jazia "Suigetsu". Naruto optou por chamá-lo assim, examinando-o sussurrar ao pé do ouvido de Sasuke antes de partir para longe feito uma sombra bruxuleante, carregando o velho microfone consigo.

— Admiro sua capacidade de análise musical, cara — Sasuke ponderou, a mão livre descansando sobre o tampão da mesa. Seus dedos duros e gelados roçavam no pulso de Naruto, que afastou-se um bocado — Talvez você quisesse botar a cara no sol e mostrar teu talento — um riso, e Naruto desejou esmagá-lo com os punhos — Vem pro palco.

Naruto surpreendeu-se tanto que não se deu ao trabalho de se irritar com os pontapés que Sakura desferia em suas canelas. As bochechas da mulher estavam em vermelho, como se fossem explodir em uma bomba de ansiedade, empolgação e emoção. A ponta do salto dela subiu, atingindo em cheio sua nádega que estava escapando do assento. Seu plano jamais foi levantar-se, mas quando o fez, Naruto pôde imediatamente notar a densidade da presença de Sasuke ao igualar-se à altura dele.

Era intenso, e exatamente por isso Naruto engoliu um bolo imenso de ar que quase prendeu-se à sua garganta. 

Virou-se para ele, capturando os olhos pretos com os seus e desejando que seu celular tocasse para que tivesse uma justificativa para parar de sustentar o olhar que fez com que estremecesse de antecipação. Sasuke poderia olhar para a sua boca, para o nariz ou os cabelos, mas pareceu preferir voltar sua atenção às íris claras de Naruto, razão para deixá-lo ainda mais sem-graça.

— Coopera, Menino-Raposa. Todos 'tão esperando.

Sasuke pareceu reparar os sinais sobre as bochechas de Naruto para chamá-lo daquela forma. Ele não havia usado bigode de gato, bichano ou coisa semelhante. Chamá-lo de Menino-Raposa era tão estranho quanto o próprio Sasuke, e Naruto viu-se sem fôlego para respondê-lo. Poderia tê-lo xingado com sua lista de ofensas novinhas em folha, mas Sasuke ajeitou-se em sua postura e Naruto viu-se alinhado ao corpo do outro. 

Quis ofender a Sakura.

Quis ofender às suas duas cabeças. A de cima, que não pensava com coerência, e a debaixo, que inchava devido à presença erótica e felina diante de si.

Naruto realmente não era o gato ali.

Dedos quentes envolveram seu cotovelo rapidamente, impulsionando para que Naruto caísse fora de seu estado catatônico. Assim, como um vagão de trem, ele passou a ser arrastado pelos trilhos imaginários do pub. O toque com pressão o suficiente para que permanecesse sendo carregado, mas sem qualquer força que o impedisse de desistir.

Sasuke lhe dava o livre arbítrio, mas não era nisso que Naruto pensava. Na verdade, a pegada em sua pele eriçada era singular o bastante para que imaginasse aquelas mãos enterradas em seus cabelos, os dedos compridos e brancos atiçando sua, agora quase real, ereção .

Isso fez com que se desse conta que realmente estava sem sexo há tempo demais, e era a razão para que imaginasse coisas tão baixas como aquelas. Assim, Naruto agitou a cabeça para espantar sua falta de vergonha, só parando quando seu pé esbarrou no degrau do tablado. Sasuke parou de arrastá-lo, subindo por si mesmo naquele pequeno palco e retornando ao seu antigo posto: atrás do microfone centenário, a postura corporal largada sugerindo que, talvez, pudesse estar entediado com a coisa toda.

Ele parecia ter esquecido de Naruto de repente, este que se censurou ao desejar que o sujeito continuasse a puxá-lo naquela forma. A mão toda em sua pele, arrastando-se para o antebraço quando relaxava a pegada. Não era uma carícia, muito menos um sinal de interesse, mas era tão gostoso como se fosse.

Naruto viu quando Sasuke virou o rosto pálido para ele, subindo as sobrancelhas expressivas como se lhe questionasse a razão do outro estar imóvel daquela maneira. 

— Vem ou não? — Sasuke perguntou, enquanto os demais membros arrumavam-se perante seus instrumentos musicais. Com Sasuke, eram quatro. Cada um com os cabelos pintados e coloridos de uma forma diferente: vermelho, laranja e branco. Talvez fosse para chamar atenção, quem sabe se tratasse de um estilo alternativo, mas Naruto não queria saber.

Que a verdade seja dita: jamais havia cantado em lugares que não fossem karaokes ou no interior do box abafado de seu banheiro. Agora, dentro daquele boteco, não estava bêbado e não existia álcool o bastante em seu organismo que servisse como válvula de escape para cometer aquela loucura. Sasuke aparentava ter ciência disso, pois aprumou-se em sua posição e sorriu torto, o riso anasalado que deu ecoando pelas caixas de som quando cercou o microfone.

Ele não parecia ser um homem cuja virtude era a paciência. Se isso era bom, Naruto não sabia dizer, mas ficou definitivamente satisfeito quando notou o instante que o pé de Sasuke, devidamente coberto pelo coturno usado e grosso, chocou-se contra o chão e o som dos instrumentos fez-se presente.

Não era rock, alternativo, reggae ou qualquer outro gênero musical que Naruto pudesse visualizar Sasuke interpretando. O ritmo pesado pulsou feito um coração e o blues de B. B King emergiu dentro da voz rouca e gostosa do homem, a música Ten Long Years entoada em ondas cruas, sensuais e que se encaixavam na fisionomia atraente de Sasuke como uma luva.

Ao olhar para Sakura — que, a propósito, servia-se com uma bebida azul que aparentava ser adoçada e nauseante por demais —, Naruto pensou em retornar ao seu lugar e apreciar o espetáculo ao longe. Parado aonde estava, existiam pessoas que desviavam a atenção para ele um momento ou outro, como se atribuíssem a ele o título de intruso. De fato, sua mesa com migalhas de pão, úmida pelo gelo derretido das bebidas, era mais convidativa do que aparentar ser uma peça de museu.

Damn you know I'm all alone

Well the reason you hear me

singing the blues baby

Yeah, you know my baby's gone

Entretanto, quando Naruto fez menção de voltar à companhia de Sakura — que era mil vezes menos problemática ao comparar-se ao vocalista —, sentiu um pé duro cutucar-lhe os flancos e virou-se de abrupto, a tempo de ver Sasuke abaixar-se para si, não deixando de entoar a melodia que interpretava tão impecavelmente.

— Não me chute desse jeito — disparou, mais constrangido do que aborrecido — Fique com o seu blues. Vou voltar para o meu lugar, B.B King.

Então, em um segundo mínimo do refrão que dava espaço ao som instrumental, Naruto observou Sasuke colocar a língua para fora, expondo o piercing longo e prateado que a empalava. Os traiçoeiros olhos negros — aqueles que Naruto jamais acreditaria serem autênticos — pregaram-se às íris azuis, e em alguns instantes antes de precisar cantar novamente, a língua de Sasuke deslizou sobre o microfone. De baixo para cima, devagar, o metal da joia em sua língua reluzindo junto ao material do aparelho que lambia. 

— Quero que fique aqui e me espere, Menino-Raposa.

Assim, Sasuke retornou ao público e abandonou Naruto ali: afogando-se em um mar de fascínio sem saber nadar. As ondas de excitação engolindo-o e não era como se Sasuke houvesse lhe dado um colete salva-vidas para que se salvasse do seu rock, seu blues e sua pouca vergonha.

 


Notas Finais


As músicas que o Sasuke cantou foram until it sleeps do Metallica e ten long years do B.B King. Às vezes escutar é bom para imersão.

Ten Long Years: https://www.youtube.com/watch?v=QkjyMGFfju8
Until it Sleeps: https://www.youtube.com/watch?v=UnWz59xz8Pc

Então é isso. Gostei bastante de escrever esse capítulo e espero que tenham gostado de lê-lo.
Planejo postar a continuação em, no máximo, duas semanas. Vejo vocês de novo por lá.

Comentários são importantes para a motivação. Algum?
Até a próxima!


Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...