Uma camada de poeira branca cobria a superfície da cozinha. Harry abanou a mão à frente do rosto numa tentativa de clarear o ar. O cheio das tortinhas invadira o apartamento, criando uma atmosfera ao mesmo tempo saborosa e divertida. Harry aprendeu a cozinhar por necessidade. Sendo esta uma das exigências de sua mãe para sair de casa e ir morar sozinho. No entanto ele nunca imaginara que a culinária seria sua válvula de escape para um dia de stress no trabalho e também uma forma de reunir sua amada família.
Henry estava em pé numa cadeira, inclinado sobre o processador elétrico observando atentamente as pás misturando a massa. Harper estava perto do balcão, as mangas arregaçadas até os cotovelos e as mãos ocupadas fazendo a mistura do melaço. Harry retirava as tortinhas assadas do forno e as espalhava sobre uma bandeja forrada com papel alumínio para que esfriassem.
— Acha que alguém vai sentir o gosto da casca de ovo? — ele perguntou.
— A receita dizia dois ovos para cada porção de mini-torta — Henry tratou de defender-se. — E Harry disse que os ovos deviam ser inteiros. Como podia saber que devia tirá-los das cascas?
— Devia saber e pronto — decretou o irmão mais velho com ar autoritário. Era evidente que, de acordo com sua opinião, o engano não teria sido cometido, se os ovos houvessem ficado sob sua responsabilidade.
— Já disse que não precisamos nos preocupar com isso — Potter repetiu, tentando salvar parte do orgulho de Henry. — Uma dose extra de proteínas nunca fez mal a ninguém. — Conseguira retirar a maior parte das cascas, e a pequena porção esmagada pelas pás do processador foram tão pulverizadas que ninguém as perceberia.
Scorpius suspirou e ergueu os olhos, mas era óbvio que divertia-se muito. O jovem apaixonara-se imediatamente por Harper e Henry, que também o adoraram, e em menos de uma hora os três haviam se tornado grandes amigos.
— Também quero decorar as tortas — Henry gritou, percebendo que Harper terminara de preparar o creme.
— Não pode lamber a faca — preveniu o irmão mais velho. — Vamos oferecer as tortinhas a outras pessoas.
— Há creme de sobra para todos.
— Quem vai experimentar a primeira mini torta?
Os três ficaram em silêncio, trocando olhares hesitantes.
— Acho que Henry devia ser o escolhido — Harper arriscou.
— Está bem — o pequeno aceitou a missão com coragem. — Não me importo. Harry disse que ninguém poderia sentir o gosto da casca de ovo, e acredito nele. Talvez seja melhor espalhar um pouco de creme sobre ele, só para prevenir...
Sorrindo, Harry cobriu a torta com mais creme fresco e ofereceu-o ao irmão, que deu a primeira mordida mantendo os olhos fechados. Todos esperavam ansiosos enquanto ele saboreava a guloseima.
— É melhor provar mais um, só para ter certeza.
Harry torceu o nariz e deu outra ao garoto.
— Talvez eu deva experimentar, também — Harper decidiu, servindo-se sem esperar por uma resposta. — Humm! Nada mal! — exclamou com a boca cheia. Vamos guardar um pouco para nós, não é? — Harper quis saber.
— Sim, mas prometi uma torta para Hangrid, Minerva e Sibila.
— Posso decorar agora? — Harper perguntou, voltando para a cadeira.
— Também quero decorar — Henry avisou.
— Eu também — Scorpius adiantou-se.
Duas horas mais tarde, Potter estava exausto. Henry e Harper haviam terminado de enxugar o último prato e deitaram-se diante do aparelho de tevê para assistir ao filme que mais apreciavam. Sentado junto ao balcão da cozinha, tentando livrar-se da dor nas pernas e nos braços, observou Scorp adicionando os últimos toques ao prato.
— Papai está atrasado — o menino suspirou. — Mas ele sempre demora mais do que se espera. Não tem vida própria, sabe?
— Scorp, nós combinamos...
— Sim, eu sei — ele suspirou desanimado.
Potter insistira na necessidade de manterem Draco Malfoy fora da conversa. Parecia uma atitude drástica, mas era a única maneira de impedi-lo de usar toda e qualquer oportunidade para falar sobre o pobre, solitário e infeliz pai, tão desesperado por companhia que literalmente murchava diante de seus olhos. Harry era capaz de repetir o discurso completo, palavra por palavra de tanto que já ouvira. A história estava quase virando um mantra.
Levara dois dias para convencer o adolescente de que não estava interessado no pai dele, por mais perfeita que pudesse parecer a união aos seus olhos. Ele desconfiava de que o garoto estivesse ouvindo o mesmo sermão de Draco, que odiara a ideia do filho tentando uni-lo a um homem desconhecido. Nos três dias desde aquele primeiro encontro, os dois adultos haviam feito um enorme esforço para evitar qualquer possibilidade de encontro. A última coisa de que Scorp precisava era uma evidência de que o plano podia dar certo.
— É uma pena — o menino resmungou. — Sibila concorda comigo, e Hagrid e Minerva, também.
— Chega! — Harry insistiu, erguendo a voz a ponto de atrair a atenção dos meninos.
Assim que as tortas ficaram prontas, ele os distribuiu por pratos de papel e cobriu-os.
— Quero levar os de Hagrid — Henry avisou. Ele adorava o levantador de pesos. Apaixonado por circos, o garoto encontrara no artista a personificação de todas as suas preferências.
— Acha que Minerva vai me deixar brincar com os gatos? — Harper quis saber.
— Tenho certeza de que sim.
— Bem, isso me deixa apenas uma possibilidade: a vidente — Scorp deduziu animado. Olhou na direção da cozinha e Harry soube que ele tentava certificar-se de que haviam deixado tortinhas suficientes para que levasse uma porção para o pai. Felizmente já havia preparado um prato para a casa dos Malfoy, e assim pôde tranquilizar o jovem amigo.
— Obrigado — ele disse com olhos brilhantes.
Os três desapareceram para levar os doces, e Potter atirou-se no sofá. Apoiando a cabeça contra o encosto, fechou os olhos e desfrutou da paz e do silêncio... que não duraram muito.
Harper voltou instantes depois, seguido pelos outros dois. Atrás de Henry, o último da fila, vinha Draco.
Harry teve consciência imediata de como devia estar horrível. A farinha havia se espalhado por suas roupas, seu cabelo estava parecendo um ninho e escolhera a blusa e calça jeans mais velha que possuía já prevendo a bagunça que seus irmãos fariam. Raramente sentia-se tão constrangido diante de um homem.
— Papai! — Scorpius gritou ao vê-lo.
Harry levantou-se e arrancou o avental, certa de que o estilo doméstico o distrairia de qualquer resquício de sofisticação que ainda pudesse possuir. Principalmente porque seu avental que fora dado por sua mãe era personalizado. Todo desenhado com um tórax musculoso como estampa e os dizeres: Está com fome? Sirva-se. Talvez fosse sua imaginação, mas tinha a impressão de que Draco não tirava os olhos dele.
— Acho que devia ter batido na porta — ele desculpou-se —, mas seu amigo aqui insistiu em me trazer.
— Não faz mal — ele respondeu, sorrindo para Harper com um misto de compreensão e desânimo.
Cada palavra parecia enroscar-se nos dentes e no céu da boca. Cerrando os punhos, lembrou como a mãe ficara embaraçada diante de Snape naqueles primeiros encontros, mesmo que ambos já tenham sidos amigos de longa data. Potter nunca entendera esse desconforto. Agora entendia.
— Scorpius comportou-se? — ele perguntou.
— Sim, e nos ajudou muito — Potter garantiu.
— Mamãe não telefonou, não é? — o menino perguntou. Draco negou com a cabeça e a decepção apagou o brilho de seus olhos.
— Ela está sempre muito ocupada, especialmente nesta época do ano — o garoto explicou em voz baixa, como se falasse para si mesmo. — Não estou surpresa por não ter ligado. Com tantas preocupações...
— O que acha de irmos ao cinema? — Draco sugeriu. — Há muito tempo não saímos juntos.
— Está falando sério, papai?
— É claro que sim.
— Henry e Harper também podem ir?
— Sim, se eles quiserem.
— E Harry?
— Oh, eu... não posso — ele adiantou-se, poupando o visitante do constrangimento de ter de responder.
— Por que não? — Henry quis saber. — Disse que já havíamos terminado tudo. Ir ao cinema seria divertido.
— Sim, venha conosco — Draco o surpreendeu. Talvez se sentisse mais seguro com os três pequenos guardiões.
— Tem certeza?
— É claro que ele tem certeza — Scorp bateu palmas. — Papai nunca diz nada de que não tenha certeza. Não é, pai?
— É isso mesmo.
Harry sentiu-se tentado a deixá-lo ir com as crianças, mas mudou de ideia. Henry tinha razão, sair um pouco seria ótimo para distraí-lo, e um bom filme ajudaria a relaxar depois do dia agitado. Além do mais, que tipo de perigo poderia haver num passeio tão inocente?
Em sua ingenuidade, esquecera que crianças com mais de seis anos raramente sentavam-se com os pais. Assim que entraram no cinema, os três menores logo encontraram lugares várias fileiras à frente de Harry e Draco.
— Pensei que ficaríamos juntos — ele indicou com tom desesperado.
— Isso é para bebês! — Harper informou.
Com o movimento de espectadores crescendo rapidamente, logo todas as cadeiras foram ocupadas e a discussão foi encerrada. Harry acomodou-se ao lado de Draco, e os dois permaneceram em silêncio. Ele também não parecia nada contente com a situação.
— Quer pipocas? — Malfoy ofereceu, inclinando a embalagem em sua direção.
— Não, obrigado — foi à resposta tensa. Olhando no relógio, imaginou quanto tempo ainda teriam de esperar até que o filme começasse. — Espero que não esteja pensando que arranjei tudo isso.
— Isso... o quê?
— Estamos sentados lado a lado, e sozinhos.
— E por que eu o acusaria disso?
— Será que devo lembrá-lo sobre nossa última conversa? Você parecia certo de que eu pretendia seduzi-lo.
Malfoy riu.
— Não estava preocupado comigo — explicou. — Temia apenas que meu filho tornasse nossas vidas insuportáveis. Peço desculpas se fui grosseiro, mas só estava tentando nos proteger da determinação dele. Agora relaxe e divirta-se com o filme — sugeriu, oferecendo a pipoca mais uma vez e esperando que ele se servisse.
As luzes foram apagadas e a exibição teve início.
O filme era ótimo, e logo Harry mergulhou na trama. Draco também ria muito, e toda a tensão desapareceu em poucos minutos. Embora estivesse realmente gostando do filme, também apreciava o fato de estar sentado ao lado desse homem. Descobrira que gostava dele. Preferia ter encontrado algo que o desagradasse, mas a mente insistia em concentrar-se apenas nos aspectos mais atraentes do sujeito.
E Draco deixara bem claro o desinteresse por qualquer tipo de relacionamento, principalmente com ele. Por que não podia continuar com aquela atitude fria e impessoal? Essa faceta divertida e simpática que estava vendo desde o início do filme era adorável... e perigosa.
— Seu gesto foi realmente nobre — disse quando saíram do cinema, referindo-se ao fato de ele ter convidado o filho para sair a fim de amenizar a dor provocada pelo desinteresse da mãe. As três crianças seguiam na frente, rindo e comentando o filme a caminho do estacionamento. — Conseguiu fazer Scorp esquecer o fato da mãe não ter telefonado.
— Não sei se foi uma boa ideia.
— Por quê?
— Porque de repente descobri que gosto de você.
A reação devia estar estampada nos olhos dele, porque Draco parou e encarou-o com expressão interessada.
— Sentiu a mesma coisa, não?
Queria mentir, mas era incapaz disso.
— Sim — sussurrou.
— Não sou o homem certo para você.
— Em outras palavras, sou o homem errado para você.
Ele não respondeu. Depois de alguns instantes de silêncio, suspirou e disse:
— Não quero magoá-lo, Harry.
— Não se preocupe — ele sorriu. — Não vou permitir que me magoe.
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