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História A Seleção - A Seleção - Capítulo Dois


Escrita por: MatthewBPMalfoy

Capítulo 2 - A Seleção - Capítulo Dois


Merlin acordou com alguém o sacudindo irritantemente. Ele tentou esquivar-se da pessoa, mas a voz de Will seguiu-se, impedindo que ele voltasse a dormir.

"Merlin! Acorda, porra! A Guarda Real está aqui!" Will sussurrava tão próximo do seu ouvido que Merlin captou a mensagem com facilidade apesar do sono.

Merlin arregalou os olhos, a imagem meio embaçada do seu quarto invadindo sua mente. Will estava ajoelhado ao lado de sua cama e Hunith estava parada atrás dele, as mãos envolvendo o próprio tronco num abraço.

"Eles estão te procurando." Will anunciou em tom de desculpas. "Nós pedimos para eles esperarem enquanto te acordávamos, mas eles não parecem pacientes."

Merlin obrigou-se a se sentar, focalizando o quarto e a figura de Will e sua mãe. Os dois pareciam preocupados.

"O livro!" Merlin guinchou, correndo para a sala meio cambaleante, seguido de perto por Hunith e Will.

"O que é isso, Merlin?" Hunith perguntou sem tentar disfarçar sua insatisfação, quando Merlin afastou a cômoda do lugar.

"Depois eu explico." Merlin cochichou em resposta.

Ele aproximou as mãos dos tijolos falsos, fixando-os à parede com um feitiço que aprendera semanas antes e trancando o livro de feitiços seguramente em seu esconderijo. Quando a cômoda foi colocada de volta no lugar por Will ele voltou-se para a mãe:

"O que eles querem?"

"O que você acha, Merlin?" Hunith perguntou ranzinza. "Falar sobre A Seleção!"

Então Merlin lembrou-se da noite anterior, o pub, o Jornal Oficial de Camelot, o anúncio dos Selecionados, a expressão de Arthur ao anúncio de cada um, sua própria reação – ou a falta dela – ao ver que estava entre eles…

"Senhora Emrys?" Uma voz masculina fez-se ouvir do outro lado da porta. "Está tudo bem aí dentro?"

Os três se encararam por alguns segundos como se procurassem nos olhos uns dos outros uma escapatória para aquilo. Quando nenhum deles pareceu ter algo a dizer, Hunith caminhou até a porta, decidida.

"Desculpe a demora." Merlin ouviu a mãe dizer, a porta cobrindo a visão dos visitantes indesejados. "Ele foi dormir tarde ontem… estava muito excitado. Venham, entrem."

"Ora, ora, Sr. Emrys, é um prazer conhecê-lo." Um homem magrelo cumprimentou Merlin, não dando tempo para que ele se recuperasse do choque de ter dois soldados da guarda local entrando em sua casa. "Meu nome é Cedric Crow e estou aqui como responsável por lhe informar as regras d'A Seleção."

Merlin devolveu o aperto de mão de modo automático e encarou o homem. Ele tinha uma aparência esquisita, como se seu corpo tivesse envelhecido muito em poucos anos, seu rosto formando rugas onde não deveria haver nenhuma.

Will convidou o visitante a sentar-se à mesa da cozinha e Merlin acompanhou-os a contragosto.

"Primeiramente, fui informado que o pai do Selecionado é falecido. Isso está correto?" O homem direcionou-se a Merlin, mas foi Hunith quem respondeu.

"Sim. Ele faleceu alguns anos depois de Merlin ter nascido."

Merlin só perguntou sobre o pai uma única vez, quando tinha oito anos. Hunith sentara-se junto a Merlin naquelas mesmas cadeiras em que agora estavam e num tom sério dissera que o homem com quem havia se casado e que registrara Merlin como seu filho, Alator Emrys, na verdade era irmão de seu pai biológico, Balinor. Com um olhar triste e distante, Hunith explicara que Alator era um amigo, um homem muito bom, gentil e solitário que havia se apiedado da sua situação. Se não fosse por esse ato de caridade, Merlin teria sido registrado como um Oito, um ninguém. Em seguida, quando inquirida sobre seu verdadeiro pai, Hunith se limitara a sorrir tristemente e apertar a mão do filho, parecendo subitamente preocupada. Havia tanta emoção naquele simples gesto que Merlin jamais tocara no assunto novamente.

Agora que tinha dezesseis anos, entretanto, Merlin suspeitava qual teria sido o destino do homem. Visto a extensão do seu próprio poder, ele não poderia deixar de imaginar que seu pai fosse como ele. Às vezes, Merlin pensava no assunto e acabava chegando à conclusão que o motivo de não tocar no assunto não era apenas para evitar o sofrimento da mãe, mas também porque em parte ele tinha medo da resposta que receberia. Dessa maneira, Merlin poderia imaginar que o homem havia fugido para algum lugar onde suas habilidades não o rendessem uma sentença à forca.

"Meus sinceros pêsames." Cedric disse, mas Merlin suspeitou de sua sinceridade.

Então ele continuou falando tranquilamente, dando a Merlin a certeza de que pouco se importava. Merlin fingiu dar atenção às palavras do homem, que parabenizou-o por sua conquista – como se o simples fato de ter capturado a atenção do Príncipe merecesse ser enaltecido – e começou a repassar todas as regras do concurso.

"Você deverá assinar um contrato de sigilo que o impedirá terminantemente de compartilhar toda e qualquer informação pessoal sobre o Príncipe ou qualquer membro da família real que venha a entrar em contato daqui em diante." Ele disse em tom rígido, alheio à falta de entusiasmo de Merlin. "Caso você descumpra essa regra, será imediatamente eliminado e, dependendo da informação, será julgado da forma que melhor o Rei julgar necessária."

Merlin limitou-se a assentir, engolindo em seco.

"Além disso, precisarei entrar em contato com seu médico…"

"Merlin nunca foi ao médico." Hunith cortou o homem.

Longe de parecer abalado pela informação, Cedric sorriu – um sorriso que Merlin considerou incrivelmente ensaiado – e continuou a dizer:

"…Caso não tenha registros médicos, você terá que passar por uma inspeção com o médico da corte ao chegar ao palácio."

"Claro." Merlin sorriu amarelo.

Não é como se ele não esperasse por algo do tipo, mesmo que planejasse ficar o mínimo possível n'A Seleção, mas aquilo não impediu que sentisse como se fosse algo sujo. Todavia, ele agradecia por não ser uma garota, ele imaginava que elas passariam por um exame muito mais minucioso.

"É apenas protocolo para que possamos cuidar da melhor maneira possível de sua estadia."

Nesse momento, duas batidas fizeram-se ouvir à porta e Will correu para atender. Merlin sentiu-se grato pela interrupção.

Um homem trajando roupas oficiais entrou em seguida. A roupa era diferente das usadas pelos soldados locais e Merlin soube na hora que aquele era um dos guardas do palácio.

"Já vistoriei o perímetro. Acredito que vocês não terão grandes problemas em fazer a vigia." Ele dirigiu-se aos guardas locais.

"Desculpe." Hunith virou-se para o oficial. "Vigia?"

"Ah sim!" O homem pareceu inabalado. "Já que o Sr. Emrys e sua família estão prestando um grande serviço ao reino participando d'A Seleção, Sua Alteza, o Rei Uther e Vossa Majestade, o Príncipe Arthur assumem a total obrigação de zelar pela segurança de todos vocês durante o processo."

"Com todo respeito, senhor, não acho que isso seja necessário." Hunith atalhou. "Conhecemos todos na vizinhança e posso atestar por cada um deles. Tenho certeza que ninguém nos fará mal."

"São ordens do Rei, Sra. Emrys." O soldado disse, como quem coloca fim a discussão.

Ainda que Hunith estivesse visivelmente desconfortável, Merlin sabia que ela não poderia argumentar contra aquilo, o que fez com que Merlin se sentisse mais culpado por não ter contado a ela antes. Os oficiais saíram em seguida, deixando Merlin, Will e sua mãe a sós com Cedric.

"Devo lhe informar que durante todo o processo d'A Seleção, se o senhor for pego em algum conflito físico com algum funcionário do palácio será imediatamente desligado do processo. Lembrando que qualquer desentendimento com a Guarda Real pode ser encarado como desacato à autoridade." Ele disse de forma austera. Merlin limitou-se a acenar sua compreensão. "Caso esteja insatisfeito com algo, deve direcionar-se à pessoa responsável pelos Selecionados ou diretamente ao Príncipe e eles tomarão as medidas cabíveis para que o senhor possa usufruir melhor da sua estadia."

Merlin teve que se segurar para não girar os olhos e o homem deve ter entendido isso como nervosismo, pois sorriu de forma tranquilizadora.

"O senhor não poderá deixar o palácio por vontade própria. Somente o Príncipe pode dispensá-lo, nem mesmo o Rei tem esse direito. Sua Alteza pode manifestar sua insatisfação ao Príncipe, mas é do Príncipe que parte qualquer decisão sobre quem permanece na competição e quem é dispensado. Não há um cronograma predeterminado para a Seleção. O processo pode durar dias ou anos."

"Anos?" A voz de Merlin soou horrorizada aos próprios ouvidos. Não que ele estivesse preocupado com aquilo, já que provavelmente estaria de volta na primeira semana, mas ele não pode conter a surpresa.

"Não se preocupe. É improvável que o Príncipe demore tanto. Vossa Majestade precisa transmitir segurança diante do povo e deixar A Seleção correr por muito tempo não passa a melhor das impressões. Mas se ele decidir fazer as coisas desse modo, o senhor terá que permanecer no castelo o tempo que o Príncipe julgar necessário para tomar sua decisão."

Merlin estremeceu àquela ideia ao que Hunith segurou sua mão.

"Não cabe ao senhor determinar seus horários com o Príncipe. Quando julgar necessário, Sua Alteza o procurará para um encontro a sós. Os grandes eventos sociais fogem a essa regra, mas o senhor não pode se aproximar dele nem se dirigir a ele ou qualquer outro membro da família real sem ser convidado a tanto." Ele prosseguiu sem interrupção. "Embora ninguém espere que seja amigo dos outros candidatos, são proibidas as brigas e as sabotagens. Caso o senhor seja flagrado em alguma dessas situações, subtraindo-lhes algo ou fazendo qualquer coisa que possa prejudicar a relação de algum dos participantes com o Príncipe, ele próprio decidirá se o senhor permanecerá ou será dispensado no ato. Todos os seus pensamentos românticos devem ser dirigidos a ele. Se o senhor for pego escrevendo cartas de amor no palácio ou iniciar um relacionamento amoroso com outra pessoa ali, será considerado culpado de traição e pode ser sentenciado à pena de morte."

Hunith arregalou os olhos, embora essa fosse a última das preocupações de Merlin. Ele poderia perder a paciência e discutir verbalmente com alguém, incluindo o próprio Príncipe; poderia até mesmo não saber se portar diante da realeza, mas ser pego numa situação de flerte com alguém? Isso com certeza não era do feitio de Merlin. Entretanto, Merlin não podia deixar de achar aquilo absurdo. Alguém ser sentenciado a morte porque cometeu um erro tão pequeno?

"Caso o senhor quebre qualquer uma das leis de Camelot, será punido de acordo. Sua condição de Selecionado não o coloca acima da lei. O senhor não poderá usar roupas ou consumir alimentos que não lhe tenham sido oferecidos diretamente pelo pessoal do palácio. Trata-se de uma medida de segurança que será rigorosamente aplicada." As regras pareciam não terminar. "Todas as sextas-feiras o senhor estará presente ao longo da transmissão do Jornal Oficial. Haverá momentos, sempre previamente informados, em que cinegrafistas e fotógrafos irão ao palácio. O senhor deverá ser gentil com eles e permitir que filmem seu dia a dia com o Príncipe. Sua família será recompensada a cada semana que passar no palácio; deixarei o primeiro cheque antes de sair. Caso o senhor venha a ser dispensado, no entanto, haverá assistentes para lhe ajudar a se adaptar à vida após A Seleção. A assistente dos Selecionados vai auxiliá-lo com os preparativos de sua saída, bem como na procura por uma nova moradia e um novo emprego. Caso o senhor fique entre os dez melhores candidatos, será considerado da Elite. Na eventualidade de o senhor atingir tal status, lhe serão informados os deveres e as funções de um membro da realeza oportunamente; o senhor não tem autorização para se informar sobre os detalhes antes da hora. De agora em diante, o senhor é um Três."

"Três?" Will arregalou seus olhos e só então Merlin percebeu que ele estava sentado à mesa novamente.

"Sim. Após a Seleção, muitos têm dificuldade para voltar à vida antiga. Membros das castas Dois e Três saem-se bem, mas os Quatro e inferiores costumam sofrer. O senhor agora é um Três, mas seus familiares permanecem Seis."

"Sete." Will corrigiu.

"Will é meu filho adotivo." Hunith disse, resoluta, diante da confusão de Cedric.

"Claro." O homem continuou, em óbvio tom desaprovador. "Caso chegue à Elite, sua mãe também será uma Três e, caso vença, você e sua mãe serão Um, membros da família real."

"Mas e Will?" Merlin não pôde impedir-se de perguntar.

"Como não há vínculo sanguíneo entre vocês, ele permanecerá na casta a qual pertence."

"Isso não é justo." Merlin bufou, irritado. Toda a ideia daquilo tinha partido de Will, afinal.

"Justo ou não, são as regras." O homem falou estoicamente. "Por último, caso permaneça até o final d'A Seleção, o senhor se casará com o Príncipe Arthur e será coroado Príncipe Consorte de Camelot, assumindo todos os direitos e responsabilidades desse título. Compreende?"

"Sim." Apesar da surrealidade daquela hipótese, Merlin tentou não argumentar.

"Muito bem. O senhor poderia assinar este comprovante de que ouviu todas as regras oficiais? E poderia assinar o recibo do cheque, por favor, Sra. Emrys?"

Merlin não conseguiu ver a quantia, mas a maneira como Hunith arregalou os olhos foi pista suficiente. Ao seu lado Will tentava espiar, mas Hunith logo tratou de dobrar o cheque e colocá-lo no bolso do avental que usava. Merlin detestava a ideia de partir, mas tinha certeza de que, ainda que voltasse já no dia seguinte, aquele cheque sozinho garantiria um ano bem confortável para os três e isso por si só já era um estímulo para continuar com aquela farsa. Além disso, ele seria um Três quando voltasse e poderia voltar a estudar. Ainda que ele tivesse que conciliar os estudos com o trabalho – coisa que a maioria dos nascidos Três não tinham que se preocupar –, pelo menos ele poderia ser médico, advogado, professor, cientista, dentista, arquiteto… as possibilidades eram infinitas.

Cedric juntou a papelada e se levantou para sair, agradecendo a atenção de sua anfitriã e pedindo que Merlin o acompanhasse até a porta. Hunith consentiu a contragosto. Merlin não estava ansioso para ficar a sós com o homem, mas a boa educação que sua mãe lhe dera fez com que cedesse com um sorriso amarelo.

"Mais uma coisa," Cedric pareceu se lembrar, quando já estavam do lado de fora. "Não é exatamente uma regra, mas seria imprudente não seguir. Quando o Príncipe Arthur convidá-lo para fazer alguma coisa, o senhor não deve recusar. Não importa qual a proposta: jantar, sair, beijar, ou até mesmo algo mais íntimo; qualquer coisa. Não o dispense."

"Como?" Merlin arregalou os olhos, chocado.

Ele sentiu-se sujo novamente e lutou para conter um arrepio que subia por sua espinha, abrindo e fechando as mãos ritmicamente. Merlin não queria que sua magia se rebelasse, mas começava a senti-la esvair-se pela ponta dos dedos.

"Sei que soa um pouco… inadequado. Mas não convém rejeitar o Príncipe em nenhuma circunstância. Boa noite, Sr. Emrys."

Merlin sentiu nojo, revolta. Sua vontade era de sair correndo e gritar. Explodir alguma coisa, só pelo prazer de ver algo queimando, mas um rápido olhar à sua direita fê-lo constatar que os guardas ainda estava lá, a postos.

"Aposto como vocês muito convenientemente não ouviram essa última parte." Merlin comentou sarcástico, porém não obteve nenhum tipo de reação dos soldados. Ele respirou fundo e voltou a entrar em casa.

"O que ele queria?" Will e Hunith perguntaram ao mesmo tempo quando Merlin fechou a porta atrás de si.

"Nada de mais." Merlin deu de ombros. "Apenas me desejar boa sorte."

Merlin não queria compartilhar as palavras de Cedric com sua mãe. Não queria preocupá-la sem motivos. Afinal, o Príncipe Arthur dificilmente teria aquele tipo de desejo por ele, de qualquer forma. Hunith pareceu comprar a mentira de Merlin, mas Will o encarou com clara desconfiança.

"Acho que já é tarde demais para brigar com vocês a respeito disso." Hunith suspirou. "E olhando pelo lado bom, você terá uma vida melhor quando voltar."

"Todos nós teremos." Merlin afirmou firmemente.

"Claro, querido." Hunith sorriu de forma carinhosa.

Will parecia dividido entre nervosismo e euforia.

"Não vou tentar te estrangular de novo, Will." Merlin assegurou com um rolar de olhos. "Eu estava com raiva, mas como minha mãe mesmo disse, tem um lado bom nessa história toda."

"E se você chegar à Elite vocês dois serão Três." Will pareceu animado.

"Não!" Hunith soou decidida. "De nada vale um título para mim, William. Merlin pode estudar, conseguir algo melhor, mas eu não estou mais na idade para isso. Você deve se arriscar o mínimo possível, Merlin. Deve voltar para casa o quanto antes. Se eles sequer sonharem com o que você pode…" A voz dela foi morrendo a cada palavra dita.

Will pareceu querer argumentar, mas bastou um olhar para Hunith para ele murchar.

"Não se preocupe, mãe." Merlin tranquilizou-a. "Ele com certeza mandará todos os homens para casa na primeira semana, como eles sempre fazem."

Hunith não pareceu muito segura.

.oOo.

Os dias seguintes foram tumultuados. Merlin tinha que repreender-se toda vez que pensava em pegar o livro de feitiços atrás da cômoda, ou quando sua magia lutava para se libertar. Ele sabia que se os guardas que agora mantinham guarita ao lado de fora sequer suspeitavam do seu segredo, ou ele teria ido à forca nos primeiros dias. Além disso, dúzias de pessoas vinham todos os dias para parabenizar Merlin e algumas até pediam autógrafos, o que era constrangedor, para dizer o mínimo.

Ele fora impedido de trabalhar, tanto pelos guardas – que não achavam que aquilo pudesse ser seguro para um Selecionado – quanto por sua mãe – que além de concordar com os guardas, assegurou-lhe que o cheque que ganharam era mais do que suficiente para que ele focasse na nova carreira que teria, pelo menos por um tempo.

Na manhã da véspera de sua partida, no entanto, Freya apareceu à sua porta. Hunith tinha saído para trabalhar e Will estava desmaiado na cama, como de costume.

"Entre." Merlin ofereceu, abrindo a porta para a garota entrar. "Aceita um chá?" Ele atalhou depois de um longo momento constrangedor onde eles se encararam ainda em pé na sala de estar, sem que Merlin tivesse ideia de como reagir.

"Ah, não obrigada." Ela recusou timidamente. "Eu só vim aqui te desejar boa sorte."

"Obrigado." Merlin agradeceu sinceramente pela primeira vez.

Ele nunca havia trocado mais que algumas palavras com a garota, mas sabia que ela estava sendo sincera em sua oferta e, mais que isso, sabia que ela estava ali por causa de Will. Merlin segurou-se por um momento, incerto se o que estava prestes a fazer chamaria a atenção dos guardas, mas antes que pudesse se impedir, ele virou-se em direção a cozinha, de costas para Freya. Ele mirou a prateleira da cozinha com os olhos e murmurou um feitiço o mais quietamente possível. Um segundo depois, a estante despencou, espalhando pratos e talheres de alumínio pelo chão com um estrondo.

Os guardas entraram instantaneamente, como Merlin previra. Mas, quando perceberam que não havia nenhum perigo iminente, voltaram a sair. Freya juntou-se a Merlin na tarefa de recolher os objetos do chão e instantes depois Will apareceu pela porta que dava acesso ao quarto.

"Que diabos…" Ele começou a dizer, mas seus olhos flagraram Freya ajoelhada ao lado de Merlin e as palavras sumiram em sua garganta.

Os dois se encararam por longos instantes e Merlin remexeu-se, desconfortável.

"Hum…" Merlin murmurou, chamando a atenção dos outros dois. "Me desculpe, Freya, mas tenho que arrumar minhas malas."

"Oh… tudo bem." Ela murmurou, corando. "Eu já vou…"

"Não precisa ir tão depressa." Merlin dispensou a despedida dela com um acenar de mão. "Will pode fazer companhia para você enquanto isso."

Merlin não esperou por uma resposta, sumindo pela porta no momento seguinte. Ele tratou de manter-se ocupado com sua mala – se é que ele podia chamar de mala a pequena sacola onde guardara duas mudas de roupa, a foto dele e Will e uma foto da mãe – e chegou a pensar que Freya tivesse ido embora quando o silêncio se estendeu na sala ao lado, mas a voz alarmada de Will fez-se ouvir algum tempo depois.

"O que você está fazendo aqui?" Ele perguntou e Merlin pôde notar pelo tom que Will tinha os dentes cerrados em contrariedade.

"Eu… eu…" Ela gaguejou e Merlin tentou distrair-se com a colcha da cama, mas não era como se o fino lençol que servia como porta para o seu quarto pudesse dar alguma privacidade ao casal. Se ao menos ele soubesse como abafar os sons, como fizera na noite do anúncio dos selecionados – mas aquele feitiço fora acidental e não arriscaria chamar a atenção dos guardas justo agora. "Queria falar com você."

"Seus pais sabem que você está aqui?" A voz de Will soou cansada por um momento.

"Sim." Freya disse e Merlin podia jurar que ela estava sorrindo. "Eles estão felizes por Merlin estar n'A Seleção. Eles sempre gostaram de você."

O silêncio voltou e Merlin pegou-se dividido entre a curiosidade e a vergonha por espionar uma conversa tão íntima, não que ele pudesse fazer muito a respeito sem usar sua magia.

"Freya…" Will suspirou.

"Todos estão dizendo que vocês serão Três, caso ele chegue à Elite." Ela disse de repente e Merlin não saberia dizer como ela ficara sabendo disso, mas suspeitava que os outros selecionados não estivesse sendo tão sutis em guardar este segredo.

"É por isso que você está aqui?" Merlin pôde sentir a frieza por trás das palavras do amigo.

"Isso solucionaria todos os nossos problemas…"

"Não. Não solucionaria. Não existe nós, Freya. Quando é que você vai entender?"

"Mas…" Ela soluçou e Merlin teve que se segurar para não ir até a sala e repreender Will.

"Se eu fosse um Três seus pais me dariam sua mão de bom grado, tenho certeza." Will falou, amargo. "É isso que você quer? Um Três como marido?"

"Não!" Freya disse imediatamente. "Eu quero você! Já deixei isso claro antes."

"Mas eu sou um Sete!" Will rosnou. "Um maldito Sete. O último degrau antes do fundo do poço e nada vai mudar isso."

"Mas A Seleção… Merlin…"

"Mesmo que ele chegue à Elite, eu nunca serei um Três." Will falou e só então Merlin percebeu a gama do sofrimento na voz do amigo. "Não sou irmão de sangue dele e por isso eu continuarei sendo um Sete até morrer."

Merlin conteve a respiração, não querendo dar indícios de que estava ouvindo a conversa.

"Eu jamais poderei te dar o que você merece." Will continuou. "Não quero que você viva com medo, com fome, com frio…"

"Nunca precisei de muito para ser feliz. Achei que soubesse disso."

Merlin fechou os olhos, sentindo a dor dos dois como se fosse sua.

"Chega, Freya. Eu fiz a coisa certa." A voz de Will era firme. "Nós dois ainda somos novos. Você vai se apaixonar de novo. Agora você pode se casar com um Quatro ou um Três. Deus, até um Cinco seria uma solução melhor para…"

"Seu idiota!" A voz de Freya subiu uma oitava. "Não quero me casar com outra pessoa que não seja você! Quando vai entender isso? Eu amo você! Sempre quis e sempre vou querer apenas você!"

"Mas eu não quero você!" Will estourou. "Não estou pronto para assumir um compromisso. Nunca disse que me casaria com você, caso as coisas fossem diferentes."

Os soluços que se seguiram não duraram muito, pois logo Merlin ouviu passos apressados e o barulho da porta da sala abrindo-se antes de bater com um estrondo.

Merlin levantou-se e foi em direção à sala. Will estava sentado à mesa da cozinha, o olhar perdido em algum ponto entre a pia e o fogão.

"Você não precisava ter sido tão duro com ela." Merlin disse, sentando-se ao lado do amigo.

"Precisava sim." Will suspirou. "Não é a primeira vez que ela fez algo do tipo. Uma vez ela me abordou no meio da rua, para todo mundo ouvir."

"Mas ela não parece que vá mudar de ideia." Merlin deu de ombros.

"Eu sinceramente espero que ela mude." Will suspirou novamente, esfregando os olhos com o indicador e o polegar. "Acho que fui ingênuo demais por sequer ter me permitido envolver quando sabia que jamais poderia ter algo sério com ela."

"Por que você se permitiu, então?" Merlin perguntou, subitamente curioso.

"E você acha que eu vi isso acontecendo?" Will riu, amargo. "No início ela era apenas uma garotinha irritante, andando atrás de mim e me atrapalhando a fazer meu trabalho, mas depois… ela me conquistou, Merlin. Com o jeito doce e a inocência dela. E eu acabei me apaixonando. Percebi que a amava de verdade. Achei que se pudesse tê-la, mesmo que por um curto espaço de tempo, eu conseguiria vê-la partir depois, sabendo que ela teria algo melhor. Mas a verdade é que eu não deveria ter deixado isso chegar tão longe. Eu achei que se eu não fizesse promessas, se eu não confessasse o que sinto por ela, que ela poderia seguir em frente, eventualmente."

"Foi por isso que você mentiu? Para que ela saísse daqui machucada e não pensasse mais em você?" Merlin soltou o ar pelo nariz, deixando claro sua insatisfação.

"Não se mete, Merlin." Will virou-se em sua direção com os olhos estreitados.

"Assim como você se meteu me inscrevendo n'A Seleção?" Merlin rebateu, cruzando os braços frente ao peito.

Os dois se encararam por alguns segundos antes de Will desviar o olhar. Merlin notou como seus olhos se encheram de lágrimas e isso fez com que a irritação que brotava no peito de Merlin se esvaísse instantaneamente.

"Ela nunca tinha dito que me amava antes." Will disse em meio a um sorriso triste e Merlin pôde ver a lágrima que escorreu por sua bochecha, mesmo que Will tenha se apressado em limpá-la.

Merlin não disse nada e os dois sentaram-se em silêncio por alguns minutos antes que Will se levantasse e caminhasse de volta ao quarto.

Merlin soube que Will não dormira mais naquele dia, pois os roncos que geralmente acompanhavam seu sono não vieram. Merlin tampouco ousou perturbar o irmão, deixando que ele ficasse sozinho com seus demônios enquanto o próprio Merlin permaneceu sentado, ocupando-se com seus próprios pensamentos conflitantes a respeito d'A Seleção.

A cidade parecia saber que eles não queriam receber mais visitas, ou talvez todos já tivessem vindo dar os parabéns e desejar boa sorte a Merlin, pois naquele dia, ninguém mais apareceu. Internamente, Merlin estava dividido entre a tristeza e a culpa; tristeza por Will e Freya que sofriam em silêncio e culpa pelo sentimento de inveja em seu peito por jamais ter sentido algo do tipo por alguém.

.oOo.

Na manhã do dia seguinte, Merlin levantou-se cedo. Will já estava em casa, seu chefe o liberara mais cedo, assim como o prefeito dera folga a Hunith naquele dia para se despedirem e acompanharem Merlin até a plataforma onde pegaria o trem, pelo que Merlin não poderia se sentir mais grato.

Merlin vestiu a roupa dos Selecionados, uma calça cinza, camiseta branca e a flor de sua província – uma flor de Miosótis¹ – presa à altura do peito. Merlin se lembrava de alguém um dia tê-lo contado uma lenda por trás do significado daquela flor, mas não se lembrava exatamente do que a lenda dizia.

Quando uma mulher trajada num tailleur apertado entrou em sua casa torcendo os lábios para cada peça do ínfimo mobiliário, algumas horas depois, Merlin decidiu que era hora de colocar logo um fim naquilo e declarou que estava pronto para ir.

Eles foram escoltados por seis guardas até um carro – por medidas de segurança, eles iriam de carro até a estação de trem, mesmo que só estivesse a dois quilômetros de distância.

Quando chegaram, Merlin não pôde impedir-se de arregalar os olhos diante da multidão. Parecia que todos de Ireland estavam ali para vê-lo partir. O sentimento de coletivo, entretanto, não estava em todos. Merlin notou com amargura como as famílias de Dois e Três em sua maioria o olhavam com desprezo, como se Merlin tivesse roubado algo que era deles por direito. Os Quatro em diante, entretanto, agitavam suas mãos e gritavam para Merlin, desejando-lhe sorte, como se torcessem por ele. Só então Merlin tomou consciência do seu significado para aquelas pessoas. Afinal, ele era um Seis que tivera seu posto elevado do dia para noite e Merlin não podia deixar de sentir-se grato por aquilo, mesmo que estivesse decidido a frustrar as expectativas daquelas pessoas e voltar o quanto antes para casa.

Merlin foi levado até a frente da estação, onde haviam montado um palanque e o colocaram ao lado do prefeito – Hunith subiu com ele, mas Will preferiu ficar embaixo dizendo que não estava devidamente vestido, ao que Merlin girou os olhos.

O prefeito discursou e a multidão aplaudiu e gritou, alguns até jogavam flores em direção a Merlin. Ele deixou-se invadir por aquele grito contagiante da multidão e sorriu enquanto acenava para as pessoas – com certeza se acharia um tolo mais tarde, quando se visse em algum vídeo capturado pelas dezenas de câmeras, mas naquele momento ele não poderia se importar menos.

Merlin vagou os olhos pela multidão, até que encontrou o olhar de Freya. Ela sorria e acenava para ele e, apesar da tristeza em seu olhar, Merlin sabia que sua torcida era genuína. Merlin abriu ainda mais o sorriso, tentando fazer com que ela entendesse que ele também torcia por ela.

O prefeito fez um breve discurso sobre as qualidades de Merlin e como ele seria o companheiro perfeito para o Príncipe, ao que Merlin teve que se segurar para não rir. Quando ele perguntou a Merlin se ele queria dizer algo, entretanto, Merlin declinou, argumentando nervosismo.

Logo depois, a mulher no tailleur o chamara dizendo que era hora de entrarem na estação. Will e Hunith o seguiram e Merlin agradeceu que a mulher tivesse a sensibilidade de deixá-los a sós para se despedirem.

"Tenha cuidado, querido." Hunith falou, contendo as lágrimas. "Não faça nada estúpido."

"E quando foi que eu fiz?" Merlin brincou para espantar as lágrimas que ameaçavam se formar.

Hunith encarou-o por alguns segundos, como se lutasse para não dar uma bronca nele, mas logo o puxou para um abraço apertado, beijando-lhe o rosto antes de se afastar.

"Acho melhor eu ir." Ela disse, sua voz estava meio rouca. "Não acho que vou conseguir vê-lo partir, querido. Will, te espero do lado de fora."

Merlin franziu o cenho, confuso.

"Ela não quer chorar na sua frente." Will anunciou.

"E você não tem medo de chorar na minha frente, por acaso?" Merlin arqueou uma sobrancelha, divertido.

"Nah," Will deu de ombros. "Eu sei que isso é o melhor para você. Agora que você é um Três, pode ter uma vida bem melhor."

"Will…" Merlin começou a dizer, mas Will o cortou.

"Não, Merlin, escute." Ele parecia desesperado. "Sei que você não o ama. Sei que você nem sequer consegue se imaginar vivendo num palácio. Mas se você chegar até a Elite, pode tirar sua mãe dessa vida também. Ela não precisa estudar para arrumar um emprego decente."

"Will…" Merlin tentou novamente, mas o amigo parecia decidido.

"Não estou pedindo que você vença, mas por favor, me prometa que ao menos tentará."

"Will, eu sou um homem!" Merlin tentou chamá-lo à razão. "Serei eliminado na primeira semana."

"Talvez." Will deu de ombros. "Mas se não for, me prometa que permanecerá o máximo de tempo possível."

"Tudo bem, Will." Merlin prometeu, girando os olhos.

"Sr. Emrys, está pronto?" A mulher de tailleur o chamou.

"Sim." Merlin respondeu, antes de abraçar Will.

Quando se afastaram, Will entregou sua bagagem e Merlin fingiu não notar como a mulher torceu os lábios ao encarar a sacola que Merlin havia preparado como mala.

Merlin caminhou ao lado da mulher que não parava de dar-lhe instruções, mas sua mente estava em outro lugar: na parede da sua casa, atrás dos tijolos falsos fixados magicamente. Merlin prometera à sua mãe que tomaria cuidado, portanto não seria inteligente levar um livro de feitiços com ele, mas ele sabia que não conseguiria ficar tanto tempo sem praticar seu dom, caso contrário sua magia acabaria se rebelando contra ele, como em outras ocasiões. Merlin tentara explicar isso a Hunith certa vez, mas nem ela entendera, então como faria para não chamar a atenção dos guardas do castelo ou pior, do próprio Príncipe?

Merlin foi o primeiro a chegar ao aeroporto. De acordo com a mulher de tailleur – que não fizera questão de se apresentar e, portanto, ele também não fez questão de saber seu nome –, Merlin viajaria com mais três Selecionadas. Ela logo o deixou sozinho na sala de embarque que havia sido reservada exclusivamente para os Selecionados. Merlin agradeceu que a mulher não parecesse querer fazer-lhe companhia enquanto esperava – ser menosprezado por sua casta já era incômodo, quando alguém fazia aquilo tão abertamente então, era revoltante.

Ele enxugou as mãos sobre a calça, tentando conter o nervosismo. Nunca havia voado na vida e ter três pessoas que entrariam com ele numa competição ao seu lado não o deixava mais à vontade. Não poderia ter um ataque de pânico, ou suspeitava que sua magia entraria em colapso e, se não causasse um desastre aéreo, entregaria seu segredo de bandeja para as concorrentes, o que certamente seria sua sentença de morte.

Merlin começou a passar mentalmente os nomes dos Selecionados, como num exercício terapêutico. Ele decorara o rosto e os nomes de todos, na intenção de achar alguém que parecesse amigável, pois não queria passar a próxima semana sem ter com quem conversar.

Não era como se ele tivesse muitas expectativas, seu único amigo era Will e quando se tinha um único amigo por tanto tempo, as pessoas acabavam se acomodando. Mas ali estava ele: casa nova, casta nova, vida nova. Tudo por conta de um formulário estúpido e de uma foto. Ele queria sentar e chorar e acabou se perguntando se algum dos outros Selecionados também estava triste, mas aquela provavelmente era uma preocupação que só ele tinha. Merlin forçou-se a colocar um sorriso no rosto. Afinal, as pessoas estranhariam se ele não aparentasse animação.

Meia hora depois, duas meninas de camisa branca e calça preta entraram pela porta, seguidas por suas assistentes, que carregavam suas malas. Ambas sorriam e Merlin confirmou ali sua teoria de que era o único Selecionado deprimido. Então tratou de marchar em direção a elas, decidido a, pelo menos, fazer com que as pessoas acreditassem que estava animado para não parecer suspeito.

"Oi!" Merlin cumprimentou a mais próxima delas, sua pele era negra como chocolate ao leite e os cabelos encaracolados estavam presos num penteado de lado – Guinevere Smith, a única outra Seis na competição, de acordo com as pesquisas de Merlin. "Eu sou Merlin."

"Eu sei!" A garota disparou de forma excitada, abrindo um sorriso amplo. Merlin nem teve tempo para se recuperar da demonstração de simpatia, pois logo ela estava abrindo os braços em sua direção e apertando-o num abraço.

"Opa." Merlin deixou escapar, surpreso. Ele não esperava por aquilo. Embora Guinevere fosse uma das Selecionadas que tinha um rosto amigável e aparentava sinceridade, ele não poderia dizer ao certo quanto daquilo não era para o público ou para o próprio Príncipe. Não por uma foto, pelo menos.

Na semana anterior, Merlin havia recebido a visita de diversas pessoas e muitas delas aconselharam que ele enxergasse todos os outros Selecionados como inimigos. Merlin queria poder dizer que não se deixou influenciar por esse tipo de comentário, mas parado ali, sem conseguir retribuir o abraço que Guinevere lhe dava, refletiu que algo daquilo provavelmente havia se enraizado em sua cabeça.

"Meu nome é Guinevere, mas pode me chamar de Gwen." Disse ela, se afastando de Merlin, aparentemente inabalada pela sua falta de reação. "E essa é Rowena."

Rowena Keeper era uma Dois. Seu cabelo era loiro escuro e Merlin não soube dizer exatamente se seus olhos eram castanhos ou gris, mas o tom claro emprestava ao seu rosto um ar pacífico e delicado. Ela parecia frágil ao lado de Gwen, Merlin notou.

Rowena acenou de modo simpático e sorriu. Merlin agradeceu internamente, pois não saberia como agir caso ela também o abraçasse.

"Eu adorei a cor dos seus olhos!" irrompeu Gwen. "Tenho certeza que o Príncipe ficará encantado com eles."

"Er… obrigado." Merlin buscou mais palavras, mas não sabia como responder àquilo. Se a sobrancelha arqueada de Rowena indicava algo era que ela não acreditava na simpatia de Gwen. "Seus cabelos são lindos, a propósito." Merlin decidiu dizer por fim.

Gwen poderia estar fingindo, Merlin sabia muito bem disso, mas preferia lhe dar o benefício da dúvida. Além disso, ela era tão animada que Merlin não poderia deixar de sorrir.

"Obrigada." Gwen sorriu de modo tímido. "Mas dá tanto trabalho pra cuidar."

Não demorou muito para que ele e Gwen começassem uma conversa animada sobre suas famílias. A mãe de Gwen havia falecido quando ela ainda era jovem e ela vivia com o pai que era motorista numa empresa de transportes; o irmão mais novo havia largado a escola para trabalhar, assim como a maioria dos Seis e há dois anos ela não tinha notícias dele, quando o garoto foi contratado para trabalhar na capital.

"Talvez ele consiga te visitar no Palácio." Merlin ofereceu, tentando animar a garota, quando notou que parte de sua animação havia cedido.

Rowena pouco falou na conversa que se seguiu, apenas sorria de vez em quando e nada mais. Se Merlin ou Gwen tentavam introduzi-la na conversa, ela dava uma resposta rápida e voltava a exibir seu sorriso reservado.

Merlin analisou-a calmamente enquanto Gwen tagarelava ao seu lado. Rowena certamente seria uma das favoritas durante a competição, pois era filha de um político importante, uma Dois e certamente tinha a elegância de uma dama da corte. Perto de Rowena, Merlin e Gwen pareciam mais bobos da corte.

Vez ou outra, Gwen lançava um olhar em direção a Rowena e endireitava a postura, aparentemente tentando copiar a postura altiva da outra. Merlin apertava os lábios nessas ocasiões, tentando conter o sorriso.

Não demorou muito para que Merlin percebesse que a simpatia de Gwen era cem por cento sincera e talvez houvesse um pouco de ingenuidade em suas ações também. Mas quem era Merlin para julgar? Se a garota queria o sonho dourado de conseguir casar-se com um príncipe, isso não dizia respeito a Merlin.

Contudo, aquilo deu esperanças a Merlin de talvez sair de tudo aquilo com uma amiga, pelo menos. Meia hora logo se passou, mas Merlin nem notou o tempo voar. Ele teria conversado com Gwen pelo resto do dia, não fosse o som marcado pelos saltos altos pontilhando o chão. Merlin levantou a cabeça no mesmo momento que Gwen virava-se em direção a nova Selecionada. O queixo da morena caiu assim que registrou quem era.

Vivian Reese, uma Dois, era modelo e a mais conhecida entre os participantes daquele ano n'A Seleção. Ela usava óculos escuros e caminhou decidida em direção a eles. Seus longos cabelos loiros, entretanto, estavam penteados de modo quase displicente o que não combinava com as fotos que ela costumava aparecer em revistas. Ao contrário de Gwen e Rowena, ela não sorriu quando sentou-se de costas para eles e abriu uma revista, como se eles não merecessem que ela perdesse seu tempo.

Merlin notou que aquela entrada havia sido pensada para intimidar. Ele girou os olhos para Gwen que acompanhou-o com um apertar de lábios e escondeu o sorriso por trás de uma das mãos. Ele não poderia se importar menos pois, ainda que Vivian estivesse claramente tentando provocar os demais, Merlin não se sentia intimidado – apesar de que isso provavelmente tinha mais a ver com o fato de que não estava realmente interessado em competir com ela pela atenção do Príncipe. Rowena, no entanto, pareceu abalada, pois Merlin pôde ouvir a garota soltar um "Ah, não" em meio a um suspiro.

"…então Will voltou até a praça…" Merlin continuou a dizer para Gwen. Se Vivian queria atenção, teria que se esforçar mais.

"Quando partimos?" A voz aguda de Vivian fez os pelos da nuca de Merlin arrepiarem.

"Não sabemos." Merlin respondeu, cruzando os braços frente ao peito, não querendo demonstrar fraqueza. Ele poderia não querer competir, mas isso não significava que tinha que aturar aquilo. "Estávamos esperando por você."

Vivian franziu os lábios, aparentemente desagradada, mas logo fez questão de abrir um sorriso.

"Desculpem, mas muita gente queria se despedir de mim, não pude evitar." Ela alargou o sorriso, como se fosse óbvio que era cultuada. "Mas é óbvio que vocês não entenderiam como é ter que dar atenção para os fãs."

Merlin não teve que se dar ao trabalho de responder àquilo, entretanto, pois logo um homem entrou na sala de embarque.

"Fui informado que nossos quatro Selecionados já chegaram." Ele anunciou animado.

"Sim, senhor." Vivian respondeu por todos e a doçura que de repente invadiu a voz dela fez com que Merlin arregalasse os olhos.

Foi então que Merlin entendeu o porquê do cabelo aparentemente desleixado. Esse seria o jogo dela: soar ingênua e inocente para conquistar o Príncipe. Mas se dependesse das fotos de roupas íntimas para as quais ela costumava posar, ela teria muito trabalho pela frente.

"Tenham a bondade de me acompanhar, por favor." O homem pediu de forma altiva. "Vou acompanhar-lhes até o avião."

Quando saíram em direção à pista de decolagem, Merlin notou que não apenas Vivian lançou um olhar enojado para a sua sacola, como também Rowena tentava disfarçar um olhar de pena. Merlin puxou a sacola junto ao corpo. Ele não tinha vergonha de não ter dinheiro para comprar uma mala, mas aqueles olhares começavam a incomodá-lo.

Por sorte, Gwen parecia alheia a tudo aquilo. A mala dela era muito mais simples que a das outras – Gwen fazia força para carregar sua bagagem, enquanto Vivian e Rowena deslizavam as suas graciosamente –, mas, pelo menos, ela tinha uma mala.

"Você quer ajuda com isso?" Merlin ofereceu, apontando para a mala de Gwen.

"Ah, não precisa…" Ela começou a negar, mas Merlin já havia segurado uma das alças, ajudando-a com o peso.

"Obrigada." Gwen agradeceu, depois que acomodaram suas malas no bagageiro e sentaram-se lado a lado. "Sei que não tem muita utilidade levar essas coisas, quando nos darão tudo no Palácio, mas o chefe do meu pai deu uma mala para que eu pudesse vir para cá e muitas amigas me deram roupas, sapatos e maquiagens, ninguém pareceu me dar ouvidos quando expliquei que não poderia usar estas roupas quando chegasse lá, mas eles não queriam que eu fosse a única que… você sabe…" Ela parou, quando percebeu o que diria.

Aquilo fazia sentido, afinal. Merlin mal conhecia Gwen, mas sabia que ela era o tipo de pessoa que fazia amigos por onde ia. Quem não gostaria de ajudá-la?

"A única carregando uma sacola com duas mudas de roupas?" Merlin não pôde impedir-se de gracejar, entretanto, arqueando uma sobrancelha e sorrindo enviesado.

"Eu não quis…" Ela guinchou assustada.

"Tudo bem, Gwen." Merlin tratou de acalmá-la. "Não é como se eu fosse competir, de qualquer forma." Ele deu de ombros.

"O quê você quer dizer com isso?" Gwen franziu o cenho.

"Não é como se algum homem tenha durado muito n'As Seleções anteriores, não é mesmo?"

"Você acha que o Príncipe vai te mandar para casa só por causa disso?" Gwen pareceu relutante em concordar com aquilo. Merlin limitou-se a dar de ombros, não era como se ele se importasse realmente. "Quer dizer… ele escolheu nove homens esse ano, isso deve significar algo."

"Isso é muito?" Merlin arqueou uma sobrancelha.

"Bem, sim." Gwen continuou animada, encarando a pergunta como sinal de esperança por parte dele. "N'A Seleção do pai dele foram apenas três homens e pelo que me disseram, antes disso o máximo tinha sido cinco. Alguns programas falaram sobre isso na TV essa semana, você não viu?"

Merlin deu de ombros. A verdade é que ele fizera questão de não saber nada mais que o estritamente necessário sobre a competição, desde que seu nome fora anunciado.

Gwen abriu a boca, aparentemente querendo argumentar mais a respeito, mas a voz do piloto da aeronave fez-se ouvir naquele momento e ela enrijeceu em seu assento.

"Primeira vez também?" Merlin perguntou, mais para conter o próprio nervosismo do que acalmá-la. Se ele conseguisse manter a cabeça ocupada, era menos provável que tivesse um ataque de pânico.

"Sim." A voz de Gwen estava trêmula e os olhos apertados firmemente.

Merlin percebeu que teria que lidar com o medo sozinho, pois Gwen não parecia querer conversar. Ele notou como Vivian lançou um olhar presunçoso para eles do seu assento e sustentou o olhar da loira, como se a desafiasse a dizer algo. Rowena já colocara sua máscara para dormir e estava recostada calmamente em sua poltrona. Aparentemente ela também tinha experiência com aviões.

Merlin respirou fundo e enlaçou os dedos de Gwen entre os seus, prendendo a respiração enquanto o avião taxiava para a decolagem. Somente quando eles finalmente estavam no ar foi que permitiu-se respirar aliviado.

"Obrigada." Gwen agradeceu ao seu lado e Merlin sorriu para ela, apesar de achar que ela o ajudara tanto quanto o contrário. Algum tempo depois ela acenou com o queixo em direção a Rowena que até dormindo parecia uma perfeita dama. "Ela é tão elegante. Além disso é uma pessoa adorável, pelo pouco que conversamos até agora. Com certeza será uma forte concorrente"

"Você não pode pensar assim." Merlin repreendeu. "Claro que querer ganhar não é ruim. Mas aposto que você não quer que ele te escolha porque você foi a melhor, mas sim porque ele sente algo por você. Estou enganado?"

"É. Você tem razão." Gwen concordou com um sorriso tímido.

"Além disso, quem te garante que o Príncipe Arthur não queira alguém menos formal?"

"Ainda acho que ela seria uma princesa perfeita." Gwen continuou, mas dessa vez o receio passou longe de sua voz. "É difícil não gostar dela. Ela é muito gentil, além de ser linda."

Merlin encarou Rowena por alguns instantes. Ela era realmente bonita, mas não era como se fosse mais bonita do que Gwen, então limitou-se a concordar com a cabeça.

"Vivian por outro lado…" Gwen cochichou, como se tivesse receio que Merlin a repreendesse novamente, mas Merlin arregalou os olhos e assentiu.

"Sei exatamente o que quer dizer. Só trocamos duas frases com ela, mas já torço para que ela volte para casa."

Gwen colocou a mão sobre a boca, escondendo uma risadinha.

"Não estou querendo falar mal de ninguém, mas ela não se parece em nada com uma princesa." Gwen pareceu mais à vontade. "Se ela está tão agressiva assim quando nem chegamos ao palácio ainda, imagina quando estivermos junto do Príncipe?"

"Você não tem com o que se preocupar." Merlin assegurou. "Minha mãe sempre diz que esse tipo de pessoa acaba cavando a própria cova."

"Espero que sim. Às vezes…" Gwen suspirou, como que se reprimindo a continuar.

"O que foi?" Merlin perguntou, realmente preocupado.

"Às vezes eu gostaria que os Dois e Três tivessem alguma ideia de como é ser tratado como nós."

Apesar de não haver maldade na voz de Gwen, Merlin não estava preparado para aquelas palavras – até então ela só expressara gentileza e simpatia – por isso arregalou os olhos.

"Oh! Me desculpe." Gwen apressou-se em alcançar as mãos de Merlin. "Você deve achar que eu sou preconceituosa. Mas não é isso…"

"Ei. Tudo bem." Merlin acalmou-a. "Eu entendo o que quer dizer."

E então, Merlin contou a Gwen como foi crescer tendo Will como irmão adotivo.

"Eu não entendo como alguém com tantos privilégios pode ser tão egoísta." Gwen suspirou.

Merlin concordou em silêncio e olhou pela janela, encarando as nuvens abaixo do avião lembrando-se de quando ele percebeu que Will seria seu amigo para sempre.

Muitos anos atrás, pouco depois que sua mãe trouxe Will para morar com eles, ele e Will tiveram uma briga. Merlin não se lembrava sobre o que era a briga ou quem estava certo, a única coisa que se lembrava era que ele correra para fora de casa, não querendo ficar perto do novo morador. Antes de chegar à praça da cidade, entretanto, alguns garotos um ou dois anos mais velhos – moradores de rua, muito provavelmente – o abordaram. Um deles tinha uma faca na mão.

Merlin correu de volta para casa, trombando com Will no meio do caminho. Will enfrentou os garotos – com a ajuda da magia de Merlin, mesmo que ele não fizesse ideia disso no momento – e os dois voltaram em segurança para casa. No caminho, Will ralhara com Merlin e pedira para ele não fazer uma idiotice daquelas novamente. Merlin sorriu e deu de ombros, ele não soube dizer o porquê – até hoje não saberia precisar bem –, mas naquele momento ele soube que aquela amizade não era algo passageiro.

Merlin encarou as nuvens por um momento, antes de voltar sua atenção para Gwen.

"Ei, Gwen. O que acha de fazermos um propósito?" Merlin pediu de repente e Gwen encarou-o com expectativa. "Se o Príncipe Arthur não nos mandar embora na primeira semana, não vamos deixar o clima de competição subir à nossa cabeça. Sei que você quer ganhar, mas não acho que a gente precise lutar um contra o outro por isso, está bem?"

Gwen encarou-o por alguns instantes, antes de concordar com a cabeça.

"Obrigada por conversar comigo." Ela disse. "Estava preocupada pensando que ia ser cada um por si, mas você e Rowena parecem ser muito legais. Talvez seja divertido." Ela concluiu, elevando a voz com esperança.

Merlin não queria discordar dela a respeito daquilo, então sorriu de volta. Gwen e Rowena eram simpáticas, mas não tinha como saber se os outros Selecionados não seriam parecidos com Vivian.


Notas Finais


1 – Flor de Miosótis: significa RECORDAÇÃO, FIDELIDADE e AMOR VERDADEIRO. É também conhecida como "Não-me-esqueças". Segundo a lenda europeia, o jovem apaixonado era um cavaleiro que ao tentar apanhar a flor Miosótis para oferecer à sua amada, caiu no rio e se afogou devido ao peso da armadura que usava. Desde então, a flor simboliza o amor sincero e desesperado.

Eu escolhi essa flor pra representar a província do Merlin por causa da seguinte fanart (www[ponto]deviantart[ponto]com[barra]orangemouse/art/merthur-forget-me-not-454552314) e porque a história por trás da lenda da flor, o significado dela e o "segundo nome"… enfim, tudo grita MERTHUR.


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