Havia algo no entardecer daquela torre. Ver o pôr do sol através das vidraças a fazia imaginar se chegaria o momento em que poderia sair da velha torre do relógio. Embora sua vida fosse repleta de solidão, ao menos uma vez ao dia alguém abria a pesada porta para lhe trazer alimento. Esse era seu único contato com outro ser e, para a garota de longo cabelo dourado, isso se tornara um alento.
Por vezes sentia vontade de sair e correr entre as vielas até chegar ao limite da cidadela, mas, além do medo, também existia uma misteriosa força que trancava a única saída disponível.
Jamais entendeu o que o homem encapuzado queria lhe dizer, mas sabia que se não o obedecesse, ficaria sem alimento por horas, ou talvez dias, por isso nunca o questionou.
Contudo, certa vez, um dos vassalos do homem apareceu: “Não haverá comida para você desta vez, vamos ver quantos dias consegue suportar sozinha.”
O riso era alto e a pequena garota, que nunca havia desobedecido uma regra sequer, pôs-se a chorar copiosamente até que as lágrimas secassem em seus belos olhos de jóias. Não entendia, em absoluto, o porquê de fazerem aquilo. O azul tão vívido que habitava o olhar inocente, agora se tornara obscuro e sem vida.
A garota chorou por dois dias deitada sobre o tapete encardido, até que, finalmente, entendeu que ninguém viria. Tentou escapar, mas suas tentativas para abrir a porta do lugar eram ineficientes. Cansada, apenas voltou-se para o tapete e passou a observar as luzes que entravam pelas frestas do grande relógio.
Mesmo que seu estômago doesse pela fome constante, ela não reclamou. Nem se mexeu. Apenas permaneceu ali, deitada e observando os ponteiros do relógio rodarem interminavelmente. Passou o dia, veio a noite e a garota ali permaneceu.
A inanição não lhe permitia raciocinar devidamente. Mesmo que tivesse um intelecto avançado, pouco conseguia fazer pela fraqueza que seu organismo sofria. Quanto mais os ponteiros andavam e as cores através dos vidros mudavam, mais a figura da adolescente sentia a morte lhe saudando com um abraço.
Em dado momento, os ponteiros marcaram um horário. Dez para as seis de uma tarde de inverno. Os olhos de cristais azuis se fecharam e nada se podia ouvir no cômodo abandonado.
Silêncio.
Ou isso imaginou.
Antes da consciência esvair-se por completo, as alucinações pela fome a fizeram pensar que alguém a viera buscar. Seus últimos pensamentos eram de que a Morte não deveria parecer tão encantador assim.
...
- Oe, está acordada?
Levou algum tempo para que a mente letárgica processasse a nova voz no ambiente. Os olhos de jóias se adaptaram lentamente enquanto seus outros sentidos despertavam devagar. À frente de si, podia distinguir a silhueta de uma pessoa vestida com roupas escuras. Porém, a dor de cabeça que a afligiu, impediu que mantivesse seus olhos abertos por mais tempo.
- Você estava a ponto de morrer. Teve sorte de eu ter chegado aqui. Mais um pouquinho e não conseguiria te salvar.
A voz masculina preencheu a quietude do quarto.
- Hei, está me escutando? – O dono da voz voltou a questionar.
- S-si.. – A garota tentou, todavia, era difícil para ela falar. Sentia a garganta seca e até um simples “sim” lhe era custoso proferir. Por fim, voltou seus olhos – que já havia se adaptado novamente – para a figura desconhecida.
A primeira coisa que notou foram seus olhos. Vermelhos como o mais puro sangue, mas que brilhavam como esferas de rubi. O rosto era de um garoto que, provavelmente, não possuía mais do que dezesseis anos. A pele branca entrava em contraste com o cabelo negro e os fios se assemelhavam a escuridão de uma noite sem fim; eles eram curtos, porém, pareciam incrivelmente sedosos. Sentiu vontade de tocá-lo.
Nenhum ser humano deveria parecer tão bonito assim. Ainda mais com essa idade. Os olhos carmesins a encaravam, analisando os movimentos que fazia e observando as reações que ela teria. Corou. Seu olhar era intenso, entretanto, o garoto demonstrava uma profunda curiosidade.
- Está com sede? – A loira assentiu. – Aqui, beba.
Um copo foi preenchido com água e entregado a ela. As mãos trêmulas seguraram o vidro com afinco, com medo de que não conseguisse suportar nem mesmo o pequeno objeto. Quando se saciou sentiu que poderia falar.
- O-obrigada. – O som que saiu dos lábios rachados pareciam com baixos sussurros, mas, finalmente, as forças que haviam abandonado seu corpo começaram a retornar. O garoto apenas assentiu, ainda a observando atentamente e, então, recomeçou o diálogo.
- Então, qual o seu nome? – O adolescente a questionou.
Ela não se lembrava. A mente viajava entre lembranças antigas, mas eram como borrões que vagavam aleatoriamente. Pensou por muito tempo, porém, o garoto não se incomodou. De certa forma, para ele, não havia nada que estivesse interessado em fazer e, além disso, estava curioso com a loira que encontrou a beira da morte.
Forçando as lembranças ao limite, pequenos vislumbres ganharam força. Uma moça mais velha apareceu. O cabelo era longo e dourado como o seu, os fios balançavam como ondas do oceano. O rosto não era claro, porém, o som doce e melodioso que saia dos lábios rosados, eram como o canto de uma fada. A mulher a chamava alegremente.
- Athy... – revelou, enfim. – Meu nome é Athy.
Por alguns segundos o silêncio reinou, mas logo em seguida uma explosão de gargalhadas preencheu o lugar.
- É sério? – Athy surpreendeu-se. – Seu nome é Athy? – Ela assentiu. – Céus, você é um cachorro?
- Não sou um cachorro! – Exaltou-se – E-eu, não lembro exatamente qual o meu nome, apenas que havia alguém que me chamava assim. – Confidenciou. A pequena não demorou em confiar no adolescente.
- Espera, como alguém não lembra o próprio nome?
- Eu não lembro de quase nada, só que, em algum momento, eu acordei aqui e não havia ninguém ao meu lado.
- Entendo – o garoto se aproximou. – Espere um momento. – As mãos foram de encontro ao rosto alvo, Athy sentiu a temperatura quando ele a tocou gentilmente na testa. Era cálido e aconchegante como o sol do outono. – Você não está mais com febre, é uma pena que não posso ajudar com sua perda de memória, mas ao menos você não vai mais morrer.
- Obrigada. – Agradeceu pela segunda vez.
Para ela, que nunca havia sentido as mãos cálidas e o afeto de outro ser humano, aquele simples gesto a tocava imensamente. Pela primeira vez em sua vida, Athy experimentou a consideração de outra pessoa. Mesmo que tivesse acabado de o conhecer, não pressentia hostilidade e muito menos que ele a machucaria.
O adolescente sorriu gentilmente quando ela o agradeceu. A loira o observou novamente, ainda se perguntando como alguém como ele pode existir. Os olhos vermelhos eram quentes e acolhedores e, logo abaixo do olho esquerdo, Athy notou uma pequena lunar¹ que não havia visto antes. Ela retribuiu o sorriso.
- Como você se chama? – Perguntou timidamente.
- Oh, certo, eu ainda não me apresentei. – O garoto se levantou colocando-se à frente de Athy, rapidamente fez uma reverência antes de voltar a proferir. – Meu nome é Lucas. Sou um mago viajante. É um prazer conhecê-la, Athy.
...
- Lucas, porque sempre que está aqui, o relógio não anda? – Athy perguntou certa vez.
Dias se foram desde que o mago passou a visitar Athy quase regularmente, sempre no mesmo horário. A cada sete dias, as cinco e cinquenta da tarde, Lucas aparecia para lhe contar sobre as histórias de suas viagens para Athy. Ela adorava. O adolescente havia se tornado um grande amigo.
- É algo que faço com minha magia. – Respondeu simplesmente. – Sempre que venho, paro o tempo a nossa volta, assim, apenas você e eu continuamos a nos mover.
- Mas como isso é possível?
- Hmm... É devido à natureza mágica. Posso fazer outras coisas, é claro, usando minha mana, mas a natureza da minha magia se baseia em espaço-tempo. Incluindo parar o tempo de objetos e seres, também posso me mover através do espaço para outros lugares. – Lucas explicou de forma simples e rápida.
- Tipo teletransporte? – Athy perguntou entusiasmada. Talvez, só talvez, existisse a possibilidade de sair dali.
Lucas a olhou inexpressivamente. De certa forma, já imaginava o que a loira queria.
- Sim, mas antes que me pergunte, não posso tirá-la daqui. – Respondeu categoricamente. Athy consternou-se junto com a esperança de sair da torre.
O mago já havia notado o desejo implícito nos olhos de jóia e, muito antes dela perguntar, tentou usar o teletransporte com Athy. Todavia, existia algo que impossibilitava a fuga da garota. Um dos motivos pelos quais passou a visitá-la foi exatamente para descobrir sobre o estranho poder que a prendia ali.
Porém, com o passar dos dias, Lucas acabou preso em uma sensação diferente além da curiosidade.
Observar como Athy sempre o esperava entusiasmada, o deixou, de certa forma, tocado. A empolgação da garota acabava por contagiá-lo. Durante os dias em que não estava com Athy, Lucas procurava histórias para contar a loira enquanto a via se saciar com os bolos e doces que ele levava.
O desejo de quebrar a barreira que a prendia tornou-se muito mais forte. Já não era mais apenas o anseio de decifrar um quebra-cabeça, agora, existia também, a vontade de fazê-la feliz.
- Sairei daqui algum dia? – Athy perguntou enquanto comia um pedaço de bolo. O adolescente demorou a responder. O silêncio não era incômodo para a garota, mas para Lucas se tornou agonizante. Ver como ela olhava, dia após dia para as vidraças da torre, fez com que o mago trabalhasse mais agilmente para libertá-la de sua prisão. Ele, definitivamente, a livraria.
- Sim. – Afirmou. – Você vai. Mesmo que eu tenha que procurar do outro lado do continente, acharei um jeito de tirá-la daqui. Eu dou minha palavra como mago.
Athy observou os olhos de rubi atentamente. Eles não mentiam. De certa maneira, a loira sabia e acreditava em Lucas. Sorriu gentilmente. A alegria de tê-lo ali ao seu lado era o maior presente que ganhara e ela, certamente, zelaria por essa amizade.
...
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