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História Além do que se vê - Conversa de botas batidas


Escrita por: Kirilov

Capítulo 13 - Conversa de botas batidas


— O que lhe faz acreditar nisso? – O homem remexeu-se na cadeira, inquieto. Largou a caneta que segurava com a mão direita, não escreveria o que estava por vir, dedicaria toda sua atenção a ouvir.

— Ela é incapaz de amar, é incapaz de derramar lágrimas verdadeiras, de sentir ou se compadecer do sofrimento dos outros. Ela é fria, dissimulada, seu coração desdenha dos sentimentos naturais. Ela já viu a morte e não se abalou; porque ela não se importa com ninguém, além de ela mesma. Ela é capaz de matar. Ela irá matar. Ela quer matar. Ela não é nada além de um olhar cínico; uma verdade aterrorizante. Ela é os destroços de uma tragédia, forçada a ouvir os gritos de ajuda. Ela é um monstro a procura de vingança.

 

*


Era tarde da noite, talvez umas 2 ou 3 horas da madrugada. Estava dormindo em minha caminha, quando os cachorros dos vizinhos começaram a latir descontroladamente. Os uivos altos me acordaram e assustaram. Levantei-me. Amedrontada pelo barulho, fui a procura de mamãe; descobri que ela não estava em seu quarto, isso aumentou meu desespero. De imediato apavorada, com a voz chorosa chamei por ela repetidamente. 

— Estou aqui na cozinha, Sakura. Não faça barulho. 

Ao ouvir seus sussurros, meu estado de espírito foi imediatamente resgatado. Agarrada ao meu cobertor cor-de-rosa que arrastava no chão conforme eu andava, perambulei pelo corredor estreito; os olhos embargados pelo sono e os pés protegidos do piso frio apenas pelas meias de gatinhos. Fui ao encontro de mamãe. Encontrei-a, finalmente, que empurrava a mesa de jantar em direção a porta do acesso ao quintal da casa. 

— Me ajude — pediu. Imediatamente obedeci, embora meus braços finos não fossem de grande valia. — Eles estão vendo alguma coisa. 

— Os cachorrinhos?

— Sim. Por isso estão latindo tanto.

Apesar de ainda ser bem pequena, compreendi rapidamente aquelas palavras. Com o conhecimento do que poderia vir a acontecer, meu coração acelerou e o medo deu forças a meus músculos fracos e infantis. 

Nos esforçamos para empurrar a mesa pesada, e quando conseguimos, mamãe ainda me colocou sobre o móvel, para que pudesse reforçar a segurança da porta escorando-a com alguns pedaços de madeira e pequenas barras de ferro; estes quais, por precaução, sempre ficavam dentro da casa.

Porém, de repente, em meio ao barulho dos cães agora mais agitados, ouvi perfeitamente um som abafado. Alguém acabara de pular o nosso muro.

Mamãe rapidamente me tirou de cima da mesa. Com toda a pressa do mundo, recolhemos todas as facas das gavetas e objetos pontiagudos. Corremos para o quarto. Guardamos todas aquelas coisas no esconderijo secreto da cômoda branca.

Eu agia com muita precisão e rapidez, porque sabia exatamente o que fazer. Não era a primeira vez que uma cena daquela natureza acontecia. Não era a primeira vez que o meu pai, depois de gastar todo seu salário passando o dia inteiro bebendo nos bares da cidade, resolvia ir atrás da sua ex-esposa. 

Ele era um homem agressivo, espancava minha mãe quando viviam juntos. Ela o odiava com todas as forças. Não suportava vê-lo. 

Nunca soube exatamente o que os levou ao casamento, apenas tinha conhecimento de que mamãe foi obrigada a isso; mas o porquê de ter sido obrigada, nunca me foi revelado. Talvez tivesse sido o meu nascimento. Eu era o fruto desse relacionamento conturbado. E além do mais, me parecia muito com meu pai; era o que todas as pessoas falavam. Acho que por este motivo mamãe não gostava tanto de mim. Às vezes ela chorava, enquanto me observava, via o rosto dele no meu. Alguma coisa, em meu coração, dizia-me isso: que ela chorava não por ser eu diante dela; mas por ser a fisionomia do homem que a fizera tanto mal. 

Naquele mesmo instante, ela me olhava apreensiva e com os grandes olhos embargados, depois de ter me erguido nos braços e colocado dentro do guarda-roupas; num compartimento estreito, repleto de roupas penduradas em cabideiros e com cheiro de naftalina. 

Nossa troca de olhares foi quebrada quando ouvimos os primeiros socos na porta, e a voz embriagada que com certeza era do meu pai.

Mamãe colocou uma faca grande em minhas mãos pequenas e demasiadamente trêmulas. Eu quis chorar, mas segurei as lágrimas; segurei-as porque vi que minha mãe também segurava as dela. 

— Não saia daqui. Não faça nenhum barulho – recomendou pausadamente, à medida que jogava algumas roupas sobre meu corpo encolhido, na intenção de me esconder bem. — Não saia por nada nessa vida; está ouvindo? 

— Não irei sair. – Foi a minha resposta.

— Mas se ele a descobrir aqui, e eu não puder ajudar, tente se defender com isso, como ensinei no outro dia.

Concordei meneando a cabeça.

A portinhola diante de mim foi fechada. Tudo ficou escuro. Minha respiração iniciou um novo ritmo, faltava ar naquele pequeno espaço, e o cheiro forte me sufocava. Minhas mãos suavam, meu coração batia pesado. 

Por alguns instantes tudo que ouvi foram os socos e chutes desferidos contra a porta da cozinha, também a voz feminina que repetia:

— Vá embora, estou ligando para a polícia.

No entanto, não tínhamos telefone. 

Minutos depois um forte estrondo ocorreu. A porta foi derrubada. Pela primeira vez, papai conseguiu invadir a casa. 

Uma discussão se iniciou. Logo após, escutei sons de tapas, socos e empurrões; os quais me deixaram paralisada e com muito medo. Eu soluçava baixinho, tremia dos pés à cabeça.

Mamãe chorava. Pedia para que ele parasse. Ele não parava.

Da fina fresta entre as portinhas, vi quando o homem entrou no quarto puxando minha mãe pelos cabelos. Ele a empurrou contra a cama, subiu sobre o corpo dela, continuou machucando-a, tentando fazê-la afastar as pernas. Ela chorava muito.

E aquele choro, o lamento da minha mamãe, despertou um sentimento outrora desconhecido em meu coração. Fui atingida pela mistura perigosa da coragem e a raiva. Meu pulso ficou tranquilo, a respiração compassou. Parei de tremer, parei de suar frio. As lágrimas engasgadas sumiram. Minhas mãos, por si, apertaram com força o cabo da faca de cortar carne. O medo deu lugar a uma certeza absoluta: eu precisava salvá-la; ninguém nos socorreria. 

Fiz exatamente o que minha mãe dissera para não fazer em hipótese alguma; em movimentos silenciosos abandonei meu esconderijo. Desobedeci a palavra dela. E quando de pé ao lado da cama, ergui os braços no alto, segurando a faca firme com as duas mãos. 


Esta era a lembrança que povoava minha cabeça quando empurrava o sofá para o local correto. Meu corpo estava ali; a consciência, não. Enquanto meus braços trabalhavam em movimentos automáticos, revirava minhas memórias e pensava em tudo que estava me acontecendo. Tinha chegado no ponto onde jamais desejei estar, fazia parte de um número que odiava.

Cresci repetindo para mim que não teria a mesma vida da minha mãe. Lutei para conseguir um futuro melhor, joguei com todas as cartas ao meu alcance, fui uma criança reclusa, uma adolescente estudiosa e uma jovem determinada. Comecei trabalhar cedo para juntar algum dinheiro; mergulhei em livros, assim entrei na faculdade; alcancei um diploma e uma profissão; arranjei um bom emprego; financiei meu apartamento.

E o mais importante, durante esse tempo de lutas e enquanto procurava meu lugar ao sol, fui forte o suficiente para esconder minhas dores e nunca deixar que vissem minhas lágrimas; forte o suficiente para não deixar que meus traumas me tornassem uma pessoa amarga. Forte a ponto de fazer outras pessoas acharem que eu era uma garota alegre e com uma história feliz, uma tolinha que não sabia nada sobre os doestos do mundo e o sofrimento. Uma figura peculiar, que conseguia esconder muito bem a vida complicada que tivera e as mágoas que carregava no peito; uma doce criatura sorridente e amável, cheia de amor para dar, sobre quem sempre se tirava conclusões erradas.

Lutei demais para não ser a mulher atormentada que minha mãe foi. Lutei para que os meus dias não fossem semelhantes àqueles que presenciara na infância. No entanto, meu destino parecia traçado. E isso me soava cruel: esse tal destino inviolável. Com todas as minhas forças havia buscado fugir de um homem que poderia me maltratar. Entretanto, lá estava eu: perdida numa situação complicada e sem proporções; vivendo com medo; andando escondida e sempre olhando para trás, com o anseio angustiante de que a qualquer momento poderia ser agressivamente abordada; escondendo todas as facas da casa antes de ir dormir; verificando infinitas vezes se todas as fechaduras das janelas e portas estavam devidamente trancadas; escorando a porta da sala com o sofá... Deitando a cabeça no travesseiro achando que, a qualquer momento da noite, o apartamento seria invadido.

Nunca tinha se passado pela minha cabeça que Gaara se transformaria naquela criatura grosseira e violenta. Nos conhecíamos desde a adolescência. Ele era um bom rapaz. Agora, no entanto, tinha se transformado em tudo que eu mais repudiava e temia. 

Se o futuro tivesse, lá atrás, sussurrado em meu ouvido: esse homem que se diz perdidamente apaixonado irá se transformar em alguém que só lhe trará sofrimento. Tenho a impressão que não acreditaria, acharia um absurdo tamanho. Nunca queremos acreditar, apesar de saber que o pior vem de onde menos se espera.

As interações haviam me levado àquele desfecho odioso. O acaso, associado as minhas falhas escolhas, colocavam-me numa rua sem saídas, faziam-me reviver aquele passado de privações, suplício e desgraça.

Além do mais, envolvida em tudo, ainda tinha uma criança. O bebê que crescia em minha barriga. Eu vinha agradecendo todos os dias por aquele filho não ser do meu agressor. Era uma gravidez não planejada, poderia ter acontecido no meu antigo relacionamento; portanto, me alegrava imensamente pelas pílulas terem falhado enquanto namorava Sasuke, e não Gaara.

Segundo minhas contas, estava com dois meses de gravidez. Havia feito a primeira consulta do pré-natal há três semanas, logo quando o teste de farmácia deu positivo. E naquela manhã iria fazer o primeiro ultrassom. O acompanhamento da gestação bem me deixava animada; gostava de pensar no meu bebê e de cuidar dele, apesar de fora da minha barriga as coisas estarem indo de mal a pior. 

Passava das nove horas quando finalmente desobstruí a passagem da porta e consegui sair de casa. O táxi me esperava na portaria, rapidamente entrei nele, visto que já tinha feito o motorista esperar bastante. 

A clínica ficava a uns 30 minutos. Chovia quando cheguei ao destino. Paguei, abri a porta do carro e armei o guarda-chuva, antes de finalmente sair do veículo.

Uma enorme poça d'água apareceu no meu caminho, mas não me importei com ela, meus pés estavam perfeitamente protegidos pelas minhas botas novas; também usava calça jeans e um casaco de lã, me atentara a previsão do tempo antes de escolher a roupa que vestiria. 

Mais poças surgiram, e por elas segui destemida, estava colocando as botas a prova. 

As gotas da chuva eram grossas e barulhentas. A manhã invernal estava envolvida por uma névoa fina. A ruazinha por onde andei, no meio do alvoroço que a chuva causava, não dava conta do trânsito; os faróis não tinham resistido a tempestade, mantinham-se no amarelo piscante. 

O jardim, na entrada da clínica, estava com todas as suas plantinhas e rosas cobertas pelo orvalho. Depois de rir ao me agraciar com a bela visão, virei em direção à rua e fechei o guarda-chuva, balançando-o no ar algumas vezes para garantir que não molharia minha bolsa, guardei-o; em seguida peguei a pasta que ganhara da médica do pré-natal, na qual deveria guardar os exames e o acompanhamento das consultas; uma pasta que, por sua cor e estampinhas, denunciava quem a carregava. 

Ainda de costas para a entrada principal, permanecia um tanto distraída lutando para fechar o zíper da bolsa, ao mesmo tempo que tinha uma das mãos ocupadas. Mesmo assim, logo senti quando alguém se aproximou. Uma presença imponente e quente se posicionou atrás de mim, um corpo provavelmente maior que o meu, um homem de perfume inconfundível. 

— Sakura – a voz rouca, e igualmente única, me chamou. 

Antes de virar nos calcanhares, soube quem encontraria. Apesar disso, não pude deixar de estremecer e engolir seco ao vê-lo. 

Sasuke me encarou fixamente, com seu de praxe semblante austero e olhos negros perfurantes.

Muitas coisas me impediram de dizer algo. Além do fato de que não o encontrava há pouco mais de um mês; existiu o grande receio sobre quais motivos o levaram até ali. Ele estava com as roupas que costumava usar para ir trabalhar, portanto, algo o tinha feito abandonar o escritório. Esse algo esfriava minha barriga. A mesma barriga que carregava um filho dele, o filho que estava escondendo de todos. 

— Então é verdade – tornou, olhando de forma demorada o que eu segurava. – Você está grávida. 

— A sua mãe quem falou isso? – Exigi saber, a pergunta reativa escapou dos meus lábios, tão veloz quanto qualquer pensamento surpreso. Foi uma reação imediata, manifestada antes que pudesse me abalar com o peso das afirmações feitas tão convictamente. 

Só poderia ter sido Mikoto a revelar meu atual estado, visto que precisei pedir dispensa no trabalho para fazer os exames e as consultas referentes a gravidez. Sabia que uma hora ou outra a informação chegaria até minha ex-sogra, pois o gerente do RH era um homem que gostava de fofocas. Contudo, imaginava que teria mais tempo até isso acontecer, que até o boato se espalhar eu já teria resolvido toda a situação. 

— Eles não tinham o direito! – esbravejei, realmente irritada. – Não tinham o direito de expor minha vida assim! Foram antiéticos e pouco profissionais! Eles não podiam espalhar minhas informações pessoais, tampouco fazê-las chegar até você, com quem não possuo nenhuma ligação.

— Isso é o que você tem a me dizer? Que eles não tinham o direito? – perguntou em tom elevado, rindo com desdém das próprias palavras. — E você tem o direito de esconder que está esperando um filho meu? Tem o direito de esconder de mim que serei pai?

— Essa criança não é sua.

Novamente ele riu, sarcástico. Jogou a cabeça no ar, aparentemente mais estressado que eu. Incrédulo com minhas palavras. 

Com que bela cena agraciávamos o público. A vergonha por chamar a atenção de outras pessoas, misturada ao aborrecimento, já queimava minhas bochechas.

— Não é minha? 

— Não. Não é – respondi baixo, tentando não transformar nossa conversa exaltada em um grande barraco com espectadores e tudo mais.

— E de quem é, Sakura? Você quer me fazer acreditar que ficou grávida nessas semanas em que estivemos separados, ou que transou com outro enquanto ainda estava comigo?

— Não fale comigo desse jeito, não sou esse tipo de mulher com quem está acostumado. – A descarada ofensa foi justamente para atingi-lo, mantinha-me na defensiva. 

Estava irritada, não me cabia isso; mas estava. No fundo sabia que o meu aborrecimento não era com o vazamento de informações do RH da instituição, era comigo mesma; intimamente reconhecia ser a grande culpada por aquela discussão. Atacava-o como forma de defesa, para encobrir minhas falhas e conduta detestável.

— Então não minta para mim, não tente me fazer duvidar da paternidade dessa criança, porque eu sei que ela é minha – vociferou. E somente depois de recobrar a calma, num tom menos exaltado, continuou: – Você pode não sentir nada por mim, Sakura, dizer que não signifiquei nada em sua vida; mas isso não muda o fato que sou o pai desse bebê. Eu deveria saber desde o início. Você está prestes a fazer um ultrassom, e eu sequer saberia disso, se minha mãe não tivesse ligado e me falado sobre sua gravidez. Eu tive que ir até lá, tive que vasculhar papéis e procurar seu atestado, para só então descobrir onde está fazendo suas consultas; porque não importou quando vezes tentei entrar em contato, você bloqueou meu número.

— Acredite no que quiser, mas me deixe em paz, tenho hora marcada e nenhum tempo para ficar batendo boca com você. – Com essa frase fria me despedi, antes que o revelasse meus reais motivos. Ouvir as palavras dele me machucou intensamente; elas estavam muito distantes da verdade. 

Contudo, Sasuke não deixou que eu me distanciasse. Não me permitiu novamente lhe dar as costas sem olhar para trás.

— Também não tenho tempo para ficar batendo boca. Tampouco para perder minha viagem até aqui e abrir mão do meu direito de acompanhar essa consulta. Entrarei naquela sala, você querendo ou não.

A maneira como os olhos negros pareciam perdidos em sofreguidão, mesmo depois dele ter me desferido palavras duras, não me permitiu negar. Ele era o pai, realmente tinha tanto direito quanto eu de presenciar aquele momento. 

Não precisei responder, o homem era duro em suas convicções, tão insistente quanto qualquer árduo vendedor que se preze; além do mais, o tom dele havia sido de ordem, não de quem pedia consentimento. Sem dizer nada, passei pelo corpo imponente parado diante de mim, segui em direção a entrada, identifiquei-me na recepção, aguardei ser chamada; ele veio atrás, impassível, e realmente entrou comigo na sala. 

O exame foi relativamente rápido. O bebê ainda era muito pequeno, não dava para saber o sexo ou no mínimo ver muito do corpinho. Era uma figurinha quase indecifrável na tela, um borrãozinho cinza, mas que me fez alcançar um estado máximo de alegria, e inclusive conseguiu arrancar do pai um sorriso amplo e muito sincero. Eu nunca tinha visto Sasuke sorrindo daquela forma, na verdade, as mãos dele até tremeram um pouco, foi o que notei ligeiramente.

Mas apesar do nosso filho, já tão amado e querido, ainda ser só um serzinho muito pequeno, foi possível ouvir o coraçãozinho dele. E enquanto ouvia as batidinhas frágeis e compassadas, eu soube que precisaria cuidar e proteger meu bebê, mas para isso, precisava ser igualmente protegida. Naquele exato instante, reconheci que necessitava da ajuda de Sasuke para derrotar o problema que até então enfrentava sozinha, aquele que recaia sobre minhas costas já cansadas; um fardo tão maior que eu, qual me deixava sem forças e impossibilitada de manter uma gestação saudável. Poderia continuar tentando vencer o gigante sozinha e, consequentemente, definhando um pouco mais a cada dia; ou deveria pedir socorro ao pai do meu filho, e enfrentar Gaara ao lado dele. A segunda opção soou muito mais adequada, nela depositei minhas esperanças.

Quando o exame acabou, prontamente marquei na recepção a próxima consulta com a médica do acompanhamento. Sasuke me esperou do lado de fora enquanto isso, eu o tinha pedido para aguardar. Quando fui ao encontro dele, deparei-me com uma situação engraçada. 

Ele estava encostado no carro, as mãos nos bolsos, e me direcionou um olhar muito sério e acusatório; o engraçado, então, estava no fato de que, apesar da sua aparência rude, percebi nele um intenso contentamento. Nunca poderei esquecer do semblante que lhe estampava o rosto, era o retrato de uma guerra entre a severidade e o encanto. Seu modo de tentar esconder o sorriso bobo diminuía minha culpa, ao mesmo tempo que seus olhos e postura condenavam minhas ações. 

Num ímpeto, lancei-me sobre ele; ver meu bebê tinha me deixado num estado esquisito de felicidade e, ao mesmo tempo, carência. Queria ser mimada, queria de volta a paz e amor que o Sabaku havia me roubado no último mês. E tinha certeza que encontraria tudo isso nos braços do homem que, a tal altura, acreditava amar. Portanto, abracei-o forte, sem temer qual seria sua reação. 

Apesar da forçada cara de bravo, o Uchiha me correspondeu imediatamente, cobriu-me com seus braços acolhedores e confortantes. Mesmo depois de alguns minutos naquele abraço apertado e sincero, eu não quis soltá-lo, permaneci agarrada a ele, quase um carrapato humano. 

Aconchegada no corpo masculino me senti confortável e segura, ele foi meu abrigo e consolo, seu cheiro encantou-me, a calma me tranquilizou. Durante os instantes que se seguiram, nenhum medo atormentou meu coração. Meu espírito se sentiu livre de todo e qualquer martírio.

— Me leve para sua casa, Sasuke. Passe o resto do dia comigo. Cuide de mim e do nosso filhinho, sozinha não estou conseguindo – pedi num murmúrio, a voz abafada pelo tórax forte.

— É o que você quer?

— É tudo que mais quero.

—  Então farei isso. Cuidarei de vocês – afirmou com seriedade. – E protegerei – acrescentou logo em seguida. Depois, após uma breve pausa, tornou: – Terão de mim tudo que quiser e precisar, só não me peça outra vez para ficar longe, esse pedido não mais poderei atender.

Não me coube dar uma resposta, porque a distância nunca foi um verdadeiro desejo meu, mas sim uma punição cruel, qual fui obrigada a acatar por sofrer constantes chantagens. Apesar de ter terminado com Sasuke, não aceitara reatar o relacionamento com Gaara; portanto, frequentemente ele me abordava na rua, quando eu estava saindo para trabalhar ou voltando para casa. Sempre me empurrava, tentava me beijar e machucava meus braços quando não era correspondido; ressaltava que se eu não fosse dele, não seria de mais ninguém, que ele mataria qualquer homem com quem eu viesse a me envolver.

O abraço cessou, nos afastamos, eu com a cabeça baixa; ele, imediatamente disposto a atender meu pedido, pois logo me induziu a entrar no carro, embora tenha preferido não iniciar nenhum diálogo enquanto dirigia.

O caminho tornou-se longo devido o silêncio que nos regia. O Uchiha sempre foi de poucas palavras, centrado e aparentemente irritado com o mundo, como se todos estivessem abaixo de si e sua presença não devesse nunca ser subjugada, mas naquele momento todas essas características imutáveis estavam mais atenuadas, me deixavam um tanto inquieta e apreensiva, fizeram-me concluir que Sasuke aceitara minha proposta, e dissera não mais poder se afastar, porque agora eu era a mãe do filho dele. Não havia qualquer outro motivo. De todo modo, compreendia que merecia algum desprezo vindo dele, uma vez que o término do nosso namoro aconteceu de uma forma muito desleal da minha parte.

Mas salvo a situação constrangedora, não me arrependi de estar ali, pois se tinha alguém que poderia me socorrer e dar a proteção e carinho que precisava naquele momento, essa pessoa com certeza era Sasuke. Eu necessitava desesperadamente de ajuda. Não podia ser eternamente refém das ameaças de Gaara, não podia viver sempre com medo e em constante preocupação. Além do mais, estava cansada, sentia-me exausta e na iminência de um colapso. Minha razão estava abalada; minha capacidade de agir com clareza, deturbada pelos pensamentos ruins que me acompanhavam. Estava, de forma geral, fisicamente e psicologicamente fragilizada. Há dias não dormia bem, minhas noites se resumiam a pesadelos e o pavor que nunca me abandonava.

Tamanho era o meu cansaço e a necessidade urgente de ter um porto seguro, no qual poderia descansar tranquila e sem receios, que tão logo chegamos ao apartamento e Sasuke esperou alguma reação minha, eu disse apenas que queria dormir.

Ele não falou nada, além de claramente demonstrar, através da testa branca franzida, que meu pedido era muito estranho. Porém, mesmo em sua evidente incompreensão, apenas me deu as costas e seguiu em direção ao quarto. O quarto dele, não o de hóspedes; esse detalhe foi importante, eu gostei, gostei por considerar que ainda era o nosso quarto. Ele abriu a porta, deu-me espaço para adentrar o cômodo. Entrei. Conquanto, quando olhei para trás, percebi que ele estava indo embora.

— Sasuke – chamei, conseguindo sua completa atenção. – Fique. Deite comigo.

Ele pensou; moveu a boca, no entanto, nada disse. Cogitei que estivera na iminência de negar o meu pedido, mas por algum motivo maior, preferiu não se recusar a me atender; desse modo, acabou por assentir, talvez a contragosto. Fechou a porta atrás de si; desfez-se do paletó, deixou-o sobre a poltrona; tirou o cinto e os sapatos; seguiu em direção a cama e deitou-se. Ficou ali, esperando por mim, que até então o observava muda.

Finalmente resolvi reagir. Com a mesma presteza me livrei das minhas botas, da calça jeans e do casaco de lã, fiquei apenas de blusa e calcinha. E antes que o constrangimento pudesse me abater, fui até a cama, puxei os lençóis e me aninhei ao corpo masculino. Mesmo tardiamente, Sasuke me cobriu com seus braços, guiou-me a um estado sereno. Com a cabeça sobre o peito dele, senti-me protegida e livre de temores, como há muito tempo não acontecia. 

Sem preocupação, ou qualquer resquício de assombro, adormeci.

Quando acordei depois, não soube exatamente por quanto tempo havia dormido: se foram duas, três, quatro horas ou, sabe lá, um dia inteiro. Pelo menos sentia que dormira o suficiente para compensar todas as noites de insônia. Meus músculos estavam mais relaxados; minha consciência, menos perturbada.

Diferente de quando pegara no sono, agora estava deitada de lado. A medida que abria os olhos, notei que Sasuke me abraçava por trás. Meu quadril se encaixava no dele, minhas costas eram protegidas pelo tórax forte, e tendo invadido minha blusa, sua mão cariciava minha barriga levemente. Ele estava acordado, os movimentos, mesmo singelos, o denunciavam. Apreciei o toque carinhoso antes de me virar para encontrá-lo. Ergui um pouco a cabeça para vê-lo bem, seus olhos negros permaneciam serenos e atentos, aparentemente ele não adormecera em nenhum momento.

— Por que me disse aquelas coisas? – logo começou, como se só estivesse me esperando acordar, depois do merecido descanso, para fazer as perguntas que o atormentavam. 

Muito antes percebera que ele não estava de todo modo satisfeito, que queria conversar e resolver a situação, no entanto, tinha hesitado por notar meu cansaço e estado perturbado. 

— Me fez acreditar que nosso relacionamento não tinha significado nada para você, disse para eu me afastar – prosseguiu. – Escondeu de mim que está grávida; até tentou me enganar sobre a paternidade da criança. Mas agora está aqui, comigo, agindo como se em nenhum momento tivesse afirmado não manter sentimentos por mim. Dormiu tranquilamente nos meus braços, resmungou meu nome baixinho todas as vezes que tentei me desvencilhar para mudar de posição... 

Fiquei envergonhada, inevitavelmente. 

— Por que mentiu para mim, Sakura? Por que me fez afastar de você, se me queria perto? Eu sei que me quer por perto, caso contrário, não teria dormido agarrada a mim. Então não confunda mais meus pensamentos. Não me faça ficar aqui cogitando inúmeras coisas. Vi as marcas roxas em seus braços; preciso que me diga quem está fazendo isso com você. Preciso que me fale a verdade.

Não me ocorreu pensar se era o melhor momento. Diante dos questionamentos inflamados dele e todas as coisas expostas, não pude mais evitar e guardar tudo comigo. 

Ergui-me na cama. Não pensei muito sobre o que faria, pois se o fizesse, seria desencorajada pelo medo e a vergonha. Então, de forma até muito agitada, comecei contar o que Gaara estava me obrigando a fazer, como vinha me ameaçando e perseguindo.

Antes mesmo de eu ter terminado todo o relato, Sasuke levantou num movimento súbito. Andou de um lado para o outro, apertando as têmporas e jogando as mãos no ar várias vezes; depois parou, sentou, levantou de novo, entrou no closet e, para meu grande susto, num acesso de fúria, desferiu inúmeros socos contra os armários. 

Foram momentos de apreensão, o desespero me afligiu, eu não sabia o que fazer para acalmá-lo. Senti medo, vergonha, arrependimento, culpa... E quando todos esses sentimentos vieram à tona, potentes dentro do meu coração, não consegui me controlar. As lágrimas que por tanto tempo segurei, vieram à tona; deslizaram pelas minhas bochechas como cascatas flamejantes, queimaram minha pele.

Meu choro fez Sasuke parar. Ele não tentou me consolar, mas envolvido numa áurea menos sombria, deu fim à demonstração de raiva e sentou-se no chão, ali imergiu em divagações distantes.

Meus soluços finalmente cessaram. Um silêncio mortal tomou conta do quarto. Ficamos quase uma hora naquele tormento mudo.

Vez ou outra, quieta e recuada em meu canto, olhava para Sasuke, esperava alguma posição dele, esperava que não fosse me odiar ou julgar. Mas o homem permanecia sentado, imóvel; a coluna completamente inclinada, ambos os cotovelos sobre os joelhos dobrados, o rosto entre as mãos. Eu não conseguia ver a face dele, qual era seu aspecto ou que sentimentos suas feições revelavam. Ele só ficava ali, parado, pensando, respirando pesado vez ou outra. Até que finalmente ergueu a cabeça e me observou, seus olhos intensos caíram sobre mim com complacência. 

Ele levantou, veio até onde eu estava, ajoelhou-se diante de mim. Agora parecia tranquilo, a ira tinha dado lugar a paciência.

— Você ainda tem as mensagens? – perguntou com calma, um tom ameno e muito compassado. 

Meneei a cabeça confirmando. Apesar de meu primeiro ímpeto ter sido desejar apagar tudo aquilo do meu celular, mantive cada uma das mensagens  de ameaças, sabia que elas seriam valiosas caso eu resolvesse denunciar Gaara.

 — Me deixe ver.

Encolhi-me. Sei que ao ouvir a ordem meus olhos denunciaram o que senti. Minhas feições, por si, fizeram-no entender minha negação, pois não precisei dizer nada, não precisei responder não. Minha grande repulsa àquela ideia foi claramente manifestada pelas reações silenciosas do meu corpo. Apenas pensar na possibilidade de Sasuke ver aquelas coisas me deixou constrangida e apavorada.

Ele trouxe a mão direita até meu rosto, afagou minha bochecha. Voltar a ser alvo dos toques amáveis dele me fez muito bem, meu corpo imediatamente relaxou sob os dedos longos e aquecidos. Ansiei por mais daquele carinho, torci para que nosso terno contato não fosse quebrado.

— Tudo bem – ele disse, ainda com a voz amena. No mesmo instante percebi que estava sendo tratada como uma criança amedrontada ou um animalzinho indefeso que fora maltratado; certamente eu devia me assemelhar muito a esses tipos de criaturinhas inocentes. — Não precisa me deixar ver. Mas terá de mostrar todas as mensagens para Obito, e depois para um delegado.

— Seu primo? – o nome me trouxe uma recordação do dia em que conheci a família Uchiha.

— Sim. Obito é advogado, irá nos ajudar. Eu vou chamá-lo aqui e você deverá contar tudo para ele, sem esconder nenhum detalhe ou prova do que esse homem está fazendo com você. Ainda hoje faremos uma denúncia, e tudo mais que for possível.

— Nada disso irá resolver. Eu já tentei antes, Sasuke; eu o denunciei na primeira vez, mas nada aconteceu. Agora será a mesma coisa, ele sairá impune, e virá atrás de mim. A polícia só tomará uma providência quando o pior tiver acontecido, essa é a verdade.

— Não. Não é. Juro que ele não sairá impune. Ele vem te ameaçando, perseguindo, machucando, agredindo psicologicamente... E você tem como provar. Eu não sei qual a melhor forma de proceder, mas Obito saberá. Me permita chamá-lo aqui, diga que está disposta a fazer esse cara pagar por todo o mal que está lhe fazendo.

— Eu não sei... Não sei se é uma boa ideia. Tenho medo do que ele pode fazer comigo, do que pode fazer com você. Ele me jurou que te mataria, caso voltássemos a namorar; ele não estava brincando. E se não se importarem com a denúncia? Se fizerem descaso outra vez, e ele continuar confiante para nos fazer mal? Ele vai vir atrás de você; eu sei que vai. Ele também vai me matar, quando descobrir que estou esperando um filho seu. Ele acha que sou dele, disse que não posso ser de ninguém mais. Eu tenho tanto medo, tanto medo... Ele matará a nós dois, Sasuke. Se ele descobrir que contei tudo para você, que estive aqui, isso será suficiente para fazê-lo vir atrás de você.... Eu não deveria ter contado, estou colocando sua vida em risco...

— Ei, olhe para mim – pediu, interrompendo-me. Sentou ao meu lado, abraçou meu corpo que tremia. Beijou o topo da minha cabeça. Esperou que eu me acalmasse, para então prosseguir. – Eu sei me cuidar; e em hipótese alguma permitirei que ele faça mal a você. A vocês – corrigiu rapidamente. – Sei que está assustada, o quanto esses dias foram prejudiciais a sua saúde. Mas tem que fazer a coisa certa, Sakura. Você deve denunciar esse homem; provavelmente uma investigação será aberta...

— E nesse tempo ele virá atrás de mim – cortei-o. – Irá me machucar quando souber que está sendo investigado. 

— Não. Não vai. Eu vou te levar para longe de tudo. Nós vamos viajar enquanto o caso não for resolvido. Eu e você, só nós dois. Vamos passar algumas semanas na  praia ou no interior, onde preferir. Só voltaremos quando for seguro.

— E se Gaara descobrir onde estamos? Se for atrás de nós?

— Ele não vai. Vamos viajar assim que deixarmos a delegacia, nem mesmo passaremos na sua casa.  Irei ligar para o meu primo agora mesmo, conversarei com ele, enquanto isso você pode preparar nossas malas. 

— Está sendo sincero? Vai abandonar tudo e viajar comigo?

— Estou.

— Mas... Eu sequer tenho roupas para levar.

— Tem as roupas que deixava aqui para passar o fim de semana. Leve apenas elas, lá compraremos mais se precisar. 

Assenti. 

Sasuke se permitiu um sorriso mínimo. E antes de levantar para pegar o celular, beijou-me. O reencontro dos nossos lábios foi doce e devagar, um beijo apaixonado que me deu a segurança e confiança necessárias para seguir com aquilo.


Notas Finais


“A gente corre pra se esconder e se amar, se amar até o fim. Sem saber que o fim já vai chegar.”

Depois de Além do que vê, essa é a minha música favorita do los hermanos *-*


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