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História Amortentia - Uns casos e outros descasos


Escrita por: MxrningStar

Notas do Autor


Olá, minha gente! Como estamos? Tudo certo com vocês?
Bora de capítulo?
Uns esclarecimentos: Rede de Flu é basicamente o meio de transporte bruxo caseiro. A pessoa literalmente entra na lareira, diz o lugar pra onde quer ir e joga o pó de flu no lugar do fogo. Ela se transporta entre as lareiras pro local de destino. Harry usa esse recurso em a Câmara Secreta e acaba indo parar na Travessa do Tranco no lugar do Beco Diagonal.
Reducto já foi explicado aqui antes, mas vale lembrar: é um feitiço redutor que tira objetos do meio do caminho. Transforma qualquer objeto em pós, o destrói.
NIEM's é a sigla para Níveis Extraordinários em Magia.

No mais, partiu capítulo?
Boa leitura!

Capítulo 22 - Uns casos e outros descasos


- Eu vou perguntar pela última vez. O que é que está acontecendo?

O tom frio e um tanto ameaçador de Edgar devia pôr medo em Malu. Fazê-la talvez hesitar ou tremer na base, mas longe disso. Ela manteve a pose impassível, o olhar determinado e demonstrou minimamente qualquer tipo de reação. Um poste teria mais expressão.

- Eu vou responder pela milésima vez. Não está acontecendo nada e eu não sei o que você tem na cabeça pra continuar insistindo nessa história.

- Eu vou te dizer o que tenho na cabeça, Malu. Acho que é um belo de um par de chifres!

Edgar perdeu as estribeiras e espalmou as mãos na mesa sem qualquer delicadeza. Malu soltou um esgar e revirou os olhos.

- Menos, meu querido. Bem menos.

- Eu não nasci ontem, Malu! Você está diferente, está... estranha. Tem alguma coisa em você que não está batendo e eu não sei bem o que é, mas você parece mais....

- Viva? Livre? Em paz?

Ela se sentia tudo isso sim e diria em voz alta sem problema nenhum. Os momentos de leveza e paz que ela não tinha eram justamente quando estavam ali na companhia dele. Edgar vinha se tornando absurdamente insuportável, terrivelmente irritante e incômodo em níveis estratosféricos. Parecia vigiá-la, marcar território o tempo inteiro e Merlim sabia o quanto ela odiava isso. Queria ver Maria Luíza Becker perder o prumo era cercear sua liberdade. Ela própria já fizera isso demais consigo mesma a vida inteira e agora que experimentava um pouco do que era ser ela mesma, se sentia sufocada com o marido.

Sufocada, talvez fosse esta a palavra. E ela tinha o pé na claustrofobia.

- Você e a Marta. Eu quero saber exatamente o que está acontecendo. E não me venha dizer que é amizade ou cumplicidade feminina, porque vocês nunca foram cúmplices e muito menos amigas.

- E isso é o quê exatamente? Ego ferido? Medo de perder o controle?

- Eu não acredito que vou ser traído pela minha mulher com a minha ex-mulher!

- Trair não é novidade pra você, Edgar. Quer que eu te refresque a memória? Dezoito anos de caso!

- Casamento!

- Você e eu nunca nos casamos no civil e sabe por quê? Por que legalmente você ainda é casado com a Marta.

Ah, a pá de cal.... Edgar abriu e fechou a boca duas vezes antes de resmungar algo inaudível e se pôr a andar de um lado para o outro na sala. Mas se enganou se Malu tinha terminado.

- Nós vivemos juntos um relacionamento que de extraconjugal passou a ser.... Isso. Não é bem um casamento, Edgar, nós vivemos juntos, você registrou a Clara mas em momento algum me assumiu legalmente como sua esposa, então tecnicamente se eu fizer qualquer coisa não vai ser bem contra o meu marido.

- Então é esse o problema? Você quer casar legalmente? Tudo bem, nós casamos legalmente. Eu peço agora o divórcio pra Marta e nós resolvemos isso.

- Ela já entrou com um pedido – Malu informou e Edgar pareceu ter levado um choque. Ficou branco feito cera e atônito – Eu admiro bastante isso na Marta: quando ela quer, ela faz sem esperar por ninguém.

- A Marta....

- Mãe! – Clara chamou lá da sala interrompendo o momento dos dois – Chegou coruja pra senhora, é do Grupo!

- O que tem o Grupo? – Edgar saiu do torpor.

- O Níveis Extraordinários, Edgar, por Merlim! – mas será que nem na própria escola aquele homem prestava atenção? – Os alunos retornam amanhã, o Bóris pediu uma última reunião.

- Espera, nós ainda não terminamos, Malu!

- Terminamos sim, você que fica criando maluquice nessa sua cabeça. Dá licença que eu tenho mais o que fazer.

- Vocês estão brigando de novo? – Clara meteu a cara na porta do escritório – Todo dia é isso, gente. Está ficando chato passar as férias inteira ouvindo vocês discutirem. Eu devia ter aceitado o convite do Guto e ido viajar com ele.

- Clara, agora não.

- Chega, Edgar! – Malu perdeu a linha e alteou a voz – A Clara tem razão, a convivência nesta casa está uma amostra do inferno! Você reclama o tempo inteiro, me cobra explicações, não me dá um minuto de paz... Quem é que aguenta?

Clara arregalou os olhos assustada e saiu do caminho antes que a mãe a atropelasse. Malu seguiu a passos firmes para a lareira, pegaria a rede de flu se não fosse a filha tê-la impedido.

- Mãe, espera! Você vai pro Grupo? Eu posso ir junto? Vou aproveitar pra visitar a Keyla no povoado.

- Me segue – Mali anunciou, entoou um “Colégio Grupo” em alto e bom som e jogou o pó de flu na lareira até ser consumida por chamas verdes que a fizeram desaparecer no ar.

Clara repetiu o mesmo gesto sem sequer se despedir do pai. Nenhuma das duas assistiu a um Edgar transtornado quebrar em mil pedacinhos um vaso de flores na parede do outro lado. O elfo doméstico que adentrava a sala no momento por pouco não foi atingido.

- Some da minha frente ou o próximo é você – resmungou e foi se servir de um uísque. Precisava espairecer e nada melhor do que uma boa dose. Ou era isso, ou cometer uma loucura.

O que diabos Malu pensava que estava fazendo traindo-o daquele jeito na cara dura? Sim, porque estava claro a ele que sua mulher estava de casinho com Marta. Só podia ser essa a explicação para o apego todo que elas vinham mantendo nas últimas semanas. Queria encontrar Malu, buscasse por Marta. Teatros, jantares, voltinhas pela cidade, visitas a galerias... compromisso na agenda delas era o que não faltava e o que era pior: em alguns deles até Clara ia junto.

- Pai, você sabe que eu adoro a tia Marta, não brisa. Vou aproveitar e ver a Lica.

E por falar em Lica, até ela andava lhe enchendo a cabeça de caraminholas. Um “se cuida seu Edgar” ali, um “ih... cuidado com a cabeça, papai” acolá.... Tudo que ela dizia só alimentava ainda mais as desconfianças dele e de tudo que aparentemente estava acontecendo. Edgar outro dia bem que tentou arrancar algo da filha a respeito da mãe e de sua esposa, mas o máximo que conseguiu foi um “se resolve com elas e me deixa fora disso. Aliás, por que você não sai de cena de vez e deixa elas serem felizes? O Luís já sacou que o casinho dele com a mamãe já era”.

Só alimentou mais ainda a ira de Edgar que precisou de uma varinha na cara por parte de Malu para entender o lugar dele e largá-la de mão. Parece que o mundo inteiro estava era contra ele, isso sim. E isso era um saco!

Mas enquanto uns afogavam as mágoas em uma dose com gelo, outros tentavam resolver as pendengas alheias. Os pais estavam questionando a segurança do Grupo para mandarem seus filhos de volta para prestarem os Níveis Ordinários em Magia. Lá ia Malu ter que dar um jeito de convencê-los que não, ninguém seria assassinado dentro dos muros do castelo.

- A situação está feia assim? – Clara questionou a mãe enquanto caminhavam pelo saguão de entrada do Grupo. Malu ia checar mais uma vez as barreiras de proteção que criara lá fora.

- Eu diria complicada. O Grupo terminou o torneio com a imagem muito manchada e o seu pai, ao invés de pensar em um jeito de resolver a situação, só sabe reclamar de tudo.

- O papai está um pé no saco – Clara recebeu um olhar de repreensão da mãe – Mas está mesmo, mãe! Reclama de tudo, fica bodejando por nada e agora tem ainda mais essa de achar que está sendo traído!

Malu engoliu no seco e se calou, mas desviou o olhar. E foi isso que atraiu a atenção de Clara. A menina perscrutou o rosto da mãe atentamente até captar algo ali.

- Mãe, ele não está sendo traído não, né? Você e a tia Marta nã....

- Claro que não, Clara! Pelo amor de Merlim! Essa coisa de traição é só pra complicar o que já está todo errado. E eu já falei, o que eu e a Marta estamos fazendo é tentando manter uma relação cordial e respeitosa.

- Mas você não quer só isso – Clara soltou, o que pegou Malu de calças curtas e acabou por fazê-la tropeçar nos próprios pés – Eu sei da história toda, lembra? E te conheço bem, dona Malu. O suficiente pra saber que tem muita coisa acontecendo na sua cabeça e que você está no mínimo confusa.

Que inversão de papéis era aquela? Não seria a mãe a dar conselhos e sermões na filha? Malu riu, mas foi de puro nervosismo.

- Parou com esse assunto, isso não tem nada a ver com você.

- É aí que você se engana, mãe. É esse o erro de todos vocês: acharem que o que vocês fazem não tem nada a ver com a gente e não vai atingir a gente de alguma forma. Terminou do jeito que terminou: comigo e a Lica sendo enganadas a vida toda por causa da falta de vontade de vocês em explicarem as coisas pra gente – Clara reclamou incisiva, o que fez a mãe se calar – O que vocês fazem tem tudo a ver com a gente sim, porque nós somos filhas de vocês, então não deixem mais a gente de fora das decisões que tomarem... Pode ser menos doloroso pra gente mais na frente.

O tom suplicante na voz de Clara fez Malu se compadecer sem sequer notar. E de fato ela tinha um ponto, não negaria: tanto eles fizeram e tanto deixaram as filhas às cegas que tudo terminou da pior maneira possível em uma teia de traições e relações mal resolvidas. E Merlim sabia o quanto ela abominava coisas mal resolvidas. Aliás de mal resolvida ali já bastava ela.

- Sim – foi tudo que Malu respondeu e voltou a andar.

- Sim o quê?

- Eu estou confusa – e o peso de cem toneladas saiu de cima de suas costas – Confusa com o que eu sinto, com o que quero... e isso é horrível, porque me dá a sensação de que eu perdi o controle da minha vida. E eu odeio ficar andando às cegas sem saber para onde ir.

Odiava sim. Não chegara aonde chegara tateando pelo meio do caminho.

- E o que falta pra você acabar com essa confusão? Porque assim... só você pode resolver isso, mãe. Não é o papai nem a tia Marta nem eu, é você. E só mais uma coisinha... eu acho que no fundo você já sabe o que quer, mas está com medo.

Medo talvez fosse o termo-chave. Malu engoliu no seco e desviou o olhar novamente.

- Você não está feliz, mãe... está na cara que não está. Sabe, eu sempre achei essa sua relação com o papai meio torta.... Começou de uma traição e tudo que começa de uma traição não tem como dar certo. Foi que nem o lance da Lica e do Felipe: eles não tinham mesmo como ir pra frente primeiro porque a Lica gosta de meninas e, segundo, porque era uma traição na cara dura. O que começa numa mentira termina mal, porque mentira nenhuma se sustenta por tanto tempo.

Malu virou-se de costas para a filha na tentativa de não permitir que ela lhe visse tão afetada. Não iria demonstrar vulnerabilidade.

- Sabe, a Lica tem razão sobre essa história toda. E eu vou repetir o que ela diz de um jeito menos tosco: você devia se permitir viver como quer e como é de verdade. Verdade, dona Malu, não uma mentira – Clara inspirou profundamente – Eu vou lá encontrar a Key e filar um X-Miséria do Tato. Qualquer coisa, me chama, eu estou com o celular.

Deixando um aperto no ombro da mãe, Clara marchou em direção ao vilarejo. Só queria uma resolução pra série de conflitos que sua vida era e quem sabe alguém lá em cima lhe ouvisse e lhe desse o que tanto desejava.

(...)

Os dias foram se passado sem tantos eventos atípicos. Lica e Samantha se viam quase que todo dia e quando não estavam grudadas, estavam conversando por mensagem e chamadas de vídeo. Chegou a um ponto em que pensar em ficarem longe uma da outra não era bem uma opção.

E quando finalmente o dia das provas dos Níveis Extraordinários em Magia chegou, o sentimento que tomou de conta foi a nostalgia. Era muito esquisito pensar que seria a última vez que vestiriam o uniforme do Grupo. No lugar do malão, apenas uma bolsa de mão com os documentos e o que era necessário para prestarem o exame. Samantha estranhou horrores não colocar o broche de monitora-chefe no peito. Sentiria falta daquilo. Como sentiria.

- Pronta? – Alice apareceu na soleira da porta. Encontrou a filha acomodada na beirada da cama analisando atentamente cada detalhe do brasão do Grupo entalhado em ouro, prata e bronze no pequeno broche que levava sempre preso à capa.

- Eu acho que nunca vou estar cem por cento pronta, ainda mais pra uma despedida.

- Não é bem uma despedida... Pense mais como um novo ciclo começando. E pra que um novo comece, o anterior precisa se fechar. É mais simples do que a gente pensa – a mulher caminhou e se sentou ao lado da filha – Esse broche é a sua cara. Isso eu confesso que é estranho: te ver com a farda do Grupo sem ele enfeitando o peito.

- Eu vou sentir falta disso – ela balançou o objeto na mão e riu sem ânimo. Alice sacou a varinha da capa e sacudiu-a no ar conjurando uma caixinha, uma espécie de redoma transparente. Pegou-a na mão e estendeu para a filha.

- Para a posterioridade. Vai que um dia nós tenhamos uma outra Lambertini de monitora-chefe do Grupo.

Samantha riu e depositou o broche dentro cuidadosamente. Então colocou a caixinha com delicadeza sobre a estante do quarto onde guardava os troféus dos seus ganhos escolares: taças de quadribol, taças das casas, certificados acadêmicos e agora o símbolo de que um dia ela passara pelo Grupo e fora respeitada lá dentro. Quem sabe a melhor monitora-chefe que aquela escola já tivera.

- Bora? – chamou a mãe – Eu preciso garantir minha vaga numa faculdade pra começar a colecionar prêmio de jornalismo que nem uma tal de Alice aí.

A mulher inchou de orgulho da própria cria. Samantha era tão sua, tão semelhante e tão complementar... Definitivamente a melhor coisa, o melhor presente que a vida um dia lhe dera. E essa vida podia até ter lhe tomado uma filha, mas aquela ali valia por duas, por três, por mil!

- Você vai se sair muito bem, filha. E se não der certo agora, paciência... Mas não se pressione.

- Ih... eu estou de boa, dona Alice. Estou me sentindo adorável – Samantha se empertigou e deixou um abraço gostoso na mãe. Era aquele ali o real sentimento de casa.

Mas o modo “Samantha pavãozinho” não desligou tão cedo naquele dia não. A despeito da tensão de passar quatro horas sentada na mesma posição escrevendo em um pergaminho uma prova que parecia não ter fim, ao final a recompensa veio. A mão estava doendo, as costas em frangalhos, a vista cansada de ser forçada com letrinhas miúdas.... Mas ela se enganou muito se tinha terminado a sessão “surpresinhas do dia”.

- Samantha, corre aqui! – Gabriel chamou-a lá da entrada do corredor que levava ao salão principal, onde estava sendo aplicado os Níveis Extraordinários – A gente ficou lindão, amiga!

A foto da turma daquele ano do Grupo. Um quadro imenso com os alunos lado a lado trajando suas vestes perfeitamente alinhadas e sorrindo o sorriso dos justos para a câmera. Grifinórios, lufanos, corvinas e sonserinos lado a lado dividindo o mesmo espaço e a mesma glória: oficialmente formados como bruxos.

E então, a cereja do bolo.

- Olha aqui, Sam. É você.

Ao lado da foto da turma, em uma espécie de vitrine, estava a galeria dos monitores-chefes do Grupo com um “Samantha Nogueira Lambertini - Sonserina” suntuoso gravado em ouro no brasão mais recente. Mas ela se enganou se havia parado por ali. Ao lado, a galeria dos times de quadribol da escola e o nome dela novamente em destaque gravado como “Apanhadora e capitã” no ponto mais alto da redoma.

- Gente...?

De atônita que estava, ela foi percorrendo o olhar até encontrar ao lado os brasões do time grifinório com um “Heloísa de Almeida Gutierrez” também na posição “Apanhadora e capitã”. E o nome de sua namorada reluzia também em outra galeria, essa recentemente incluída. “Campeões Tribruxo”. Ao lado do dela, havia o nome de Rafael Gimenez gravado in memoriam.

- A gente é foda, né? – Samantha sentiu braços lhe envolvendo e aquele perfume francês inebriante espiralando no ar – Olha aí, mozão, nosso nome em tudo.

- Tudo certo lá na prova?

- Eu acho que sim. Acho que me dei bem, bora ver aí o que vai dar, mas estou bem confiante.

- Partiu comemorar a liberdade dessa prisão? – um MB, alegrinho demais para quem tinha acabado de ter seus conhecimentos bruxos testados à exaustão, apareceu abraçando todo mundo. Benê fechou a cara e saiu de perto para fugir do toque dele – Eu encomendei umas rodadas de cerveja amanteigada lá no Romano? Bora?

Um a um os alunos foram se retirando em direção ao vilarejo onde Roney já havia separado uma mesa em sua lanchonete com direito a uma rodada de hambúrgueres por conta da casa para comemorarem a real libertação dos estudos. Ou... libertação ao menos por enquanto. A outra parte, talvez a mais difícil, ainda estava por vir. Em caso de aprovação nos cursos que queriam, iriam cada um para um lado: Guto, Benê, Tina e Anderson tentariam Música em uma faculdade trouxa. Ellen cursaria Ciência da Computação, claro, também em uma faculdade trouxa e tinha o intuito de apresentar projetos de aplicativos e softwares que facilitassem a comunicação oficial no mundo bruxo: ao seu ver, depender de corujas era o fim e uma exploração com os pobres animais.

Keyla se dividiria agora entre Tonico e um curso de Artes Cênicas em uma faculdade bruxa ao passo que Tato ingressaria em um curso de Gastronomia para, segundo ele mesmo dizia, se tornar o maior e melhor chefe que o mundo mágico já viu. MB resolvera seguir a carreira que sempre almejara: a de herdeiro de um verdadeiro império dos investimentos. Seu pai, JM, era só orgulho. Mas ok, não tanto assim: Michel teria que cursar uma faculdade de Administração sob o risco de ser deserdado. Era só uma garantia para que ele não torrasse todo o seu dinheiro com festas e mais festas. E acreditem, MB, torraria uma fortuna bem fácil.

Clara resolvera cursar Pedagogia, seguindo os passos do avô e da mãe. Queria encontrá-la era só seguir os rastros dos escritos de Maurício Gutierrez espalhados pela casa. Malu até tentava disfarçar, mas não mentiria que se deleitava inteira de ver a filha tão imersa em seu universo. Clara seria uma educadora e tanto. Como seria! Lica já batera o martelo e seguiria o caminho que há muito já havia traçado: ingressaria em uma faculdade de Direito da Magia e mais à frente tentaria uma seleção para treinamento como auror. Quem sabe se destacasse e assume uma posição de liderança, talvez promotora ou juíza, vai saber.... A Corte Bruxa que a aguardasse.

E Samantha, claro, seguiria seu rumo em uma faculdade de Jornalismo. Curso trouxa em uma instituição trouxa. Tinha sua maior inspiração e exemplo dentro de casa: Alice era para ela o ideal de vida com uma relação sólida com quem amava, uma carreira consolidada, respeitada e bem vista perante seus pares. Era tudo o que Samantha sonhava para si: se fosse sendo repórter, editando livros, não importava. Ela só queria poder contar histórias, criar universos e ter suas ideias lidas e comentadas, espalhadas por aí. Saber que as pessoas se interessavam pelo que ela tinha a dizer. Isso sim era seu maior sonho.

- Eu e o Anderson vamos morar juntos – Tina anunciou, bebendo um gole generoso de sua cerveja. Ficou com um bigodinho na cara – Estamos querendo dividir um apartamento assim que entrarmos na faculdade. A gente já toca numas festas, vamos começar a juntar nossa graninha pra dar o pontapé inicial na vida a dois – trocaram um beijinho apaixonado que arrancou um “ooown” coletivo.

- Eu e o Guto também vamos dividir um apartamento em Campinas na escola de Música. E eu espero que ele seja organizado, porque eu não suporto desorganização – Benê deu seu veredito enquanto Guto ria fazendo pirraça e erguia as mãos em defesa.

- Modo General Benedita ativar.

- Se cuida, viu, Gutoso – MB tirou onda – Mais algum casal aqui indo morar junto ou nem? – e curiosamente o rapaz se virou para as duas meninas na outra ponta da mesa que se limitavam a rir e acenar.

Lica corou e Samantha soltou um esgar.

- Nem vem, MB.

- Eu adoraria morar com ela, mas ela não me dá bola – Lica soltou, o que fez Samantha arregalar os olhos em sua direção. Espera, ela nunca tinha externado aquilo, como ela deveria saber? – Se você quiser morar comigo, Sammy, a gente pode dividir um apezinho com umas plantas, uns gatos....

- Ih, o lance ficou sério, Samanthinha – MB provocou, o que levou a uma onda de risadas pela mesa. Tina, coitada, estava em êxtase.

- Meu Merlim... planta e gato. Que clichê, meu pai – Gabriel deu de ombros. Este pretendia ingressar na faculdade de Direito junto com Lica – Me convidem pra ser padrinho, tá?

- E já quer sentar na janela? – Tina se meteu.

Mas havia alguém ali visivelmente encabulado e sem saber o que dizer. Samantha ficara muda e se limitava apenas a acenar e sorrir como sua mãe lhe ensinara a fazer nos momentos em que não sabia como agir. Naturalidade, Alice lhe dizia, era tudo. Só que com a namorada que tinha, naturalidade não era bem algo possível.

Lica tinha fama de lerda, mas também quando pegava no tranco não tinha no mundo quem a parasse.

- E aí, Samanthinha? Vai morar junto ou não? – MB pôs lenha na fogueira.

- Calma, gente... eu hein! A gente acabou de prestar os NIEM’s. Uma coisa de cada vez.

Um balde de água fria teria sido menos doloroso. O sorriso de Lica quis morrer, embora ela o tenha mantido bem seguro no rosto. Mas se alguém ali percebeu, não deixou transparecer. MB arrumou logo outro para pegar para Cristo e o rumo da conversa mudou. Só que de um lado da mesa, um silêncio incômodo e esquisito se instalou. Lica se limitou a bebericar sua cerveja e, embora continuasse com o braço passado pelo encosto da cadeira de Samantha, não se atreveu a mais nenhum toque ou carinho que fosse. E vendo que a namorada havia engatado uma conversa com Tina, anunciou que iria ao banheiro e se retirou.

Em sua cabeça a frase de Samantha martelando com tudo: por que ela lhe pedia calma quando já tinham passado há muito daquele estágio e já tinham feito mil promessas uma à outra? E só então a verdade atingiu-a em cheio com um incômodo chatinho na boca do estômago.

Samantha sempre fora muito aberta a tudo: a todos os caminhos e possibilidades. Era e sempre havia sido uma menina plural que odiava se prender a amarras. Claro que ela não se ataria a nada mais sério do que aquilo que já tinha quando via pela frente um vasto leque de opções se abrindo: faculdade, novos rostos, novas pessoas, novos convívios, novas amizades, novos.... Lica engoliu no seco tentando digerir o amargo que se formava em sua boca mas sem muito sucesso. Ela cursaria uma faculdade bruxa e Samantha, uma faculdade... trouxa.

Costumes diferentes, algo novo. E o novo sempre interessara à sua namorada, sempre lhe fora extremamente atrativo e isso não era bem novidade para ninguém. Samantha amava mergulhar de cabeça no desconhecido e se jogar. E se ela se jogasse e acabasse se afastando de quem não devia? E se Samantha simplesmente fosse enquanto Lica simplesmente... ficasse? Ao seu ver – e em sua mente ansiosa, claro – a resposta da namorada à provocação de MB podia sim ser um indício de que as coisas podiam não sair exatamente como elas planejaram. Ou talvez Lica tenha planejado sozinha em sua cabeça e achou que Samantha também o fizera.

- Tudo certo aí? – Lica foi tirada do torpor momentâneo em que entrara com um puxão. Ao invés de ir para o banheiro, virara para a saída dos fundos e tinha caminhado em direção à cerca que levava à Casa dos Gritos. Virou-se para encontrar Clara com as mãos nos bolsos e o olhar atento sobre ela.

- Tudo, eu só vim... é que o banheiro estava ocupado.

- Não tem ninguém no banheiro, eu acabei de vir de lá – a irmã leu-a inteira em uma olhada e era um inferno como ela lhe conhecia tão bem – Lica, não cria paranoia.

- Você não está lendo minha mente, está?

- Não, eu nem sei fazer isso – Clara rebateu e chutou uma pedrinha – Mas eu te conheço o suficiente pra saber que sua cabeça está rodando e indo pro lado errado.

- E não é pra ir? – Lica riu nervosa e virou-se para a cerca – Aparentemente minha namorada não curte muito a ideia de dividir um apartamento comigo.

- E você ficou mal só por causa disso?

- Sei lá, Clara... já vai fazer um ano que eu e a Samantha estamos juntas, a gente já passou por tanta coisa que parece que vivemos uma eternidade já. Eu... eu não queria mais perder tempo, sabe? E outro dia lá na casa de Campos ela falou que casaria comigo sem muito esforço.

- E você quer casar? Já? Vocês só têm dezoito anos, Lica. Quer dizer, a Samantha tem. Não é assim... muito cedo pra já....

- Eu sei o que eu quero pra mim – Heloísa a interrompeu – E tenho certeza do que quero, mas pelo visto sou a única. Eu... – abriu a boca duas vezes em silêncio tentando escolher as palavras – Eu tenho medo de acabar perdendo a Samantha. De ela encontrar alguém mais ajustado, mais simples de lidar, sem tantos problemas e....

- Lica, você está se ouvindo? – Clara tinha que interrompê-la – Você fala como se fosse um peso na vida Sam. Você é meio doida? É. Sem noção às vezes? Sim, se não fosse não seria você. Mas você também é a pessoa mais justa, coerente e decente que eu conheço. E outra, a Samantha te ama. O fato dela querer esperar mais um pouco pra morar junto ou, sei lá... dividir um canto, não quer dizer que ela não te queira. E quanto a conhecer gente nova, isso inevitavelmente vai acontecer com ela e com você: é faculdade, é outra vibe. Normal novas relações surgirem. Agora se você acha que essas novas relações vão se sobrepor ao que vocês duas têm, é você que não acredita no que sentem uma pela outra.

Lica se calou e engoliu no seco.

- Não pira, eu estou falando sério. Controla sua mente e não deixa que ela te controle. A Samantha só falou pra vocês irem com calma, não que vai te largar e te mandar pro inferno.

Heloísa assentiu e retorceu os dedos, virando-se novamente. Ergueu o braço para apoiar-se na cerca e sua capa farfalhou, o bolso se esticou e de dentro dele caiu um objeto: uma pequena caixinha aveludada vermelha que quicou duas vezes no chão e se abriu revelando um par de alianças douradas finíssimas. Rapidamente ela se agachou para pegá-las sentindo o olhar de Clara queimar sobre si.

- Lica....

- Não fala nada – a irmã pediu e enfiou de novo a caixinha, dessa vez no bolso interno da capa – Você não viu nada.

Você ia ped....

- Não fala nada, Clara – ela tornou a repetir mais firme – São só alianças de compromisso, não tem nada de mais nisso.

Não eram não. Não mesmo. Compromisso por compromisso, ela e Samantha já tinham um. Mas depois de ouvir da boca da namorada no final de semana que passaram juntas que elas poderiam facilmente se casar, Lica se apegou àquilo. Chamem de romântica, emocionada, desesperada, do que for. O que ela sentia era forte sim e imenso e dizia muito dela: assim como Samantha, ela também se jogava quando se envolvia. Não foi à toa que juntou as economias no cofre e correu para a primeira joalheria que encontrou no caminho para comprar um singelo par de alianças. Voltou para casa radiante, permaneceu radiante por todo o fim de semana que antecedeu ao exames no Grupo.

O plano era simples: um jantar, elas duas e mais ninguém e um único pedido. Quem sabe um “sim” verbalizado em sinceridade e mesmo que elas esperassem uns anos para poderem dar mais aquele passo, ao menos já teriam iniciado o percurso juntas, juntinhas como sempre juraram.

Mas Samantha mandou ir com calma quando ela ao menos cogitou dividir um apartamento.

- Eu não sei o que dizer – Clara arriou os ombros.

- Não precisa falar nada, eu estou de boa – Lica mentiu na cara dura e passou por ela. Retornou para a mesa que dividia com os demais e se acomodou de novo ao lado de Samantha.

- Tudo bem? Você sumiu – a menina questionou, recebendo-a com um beijinho.

- Tudo, a Clara que atravancou o banheiro – mentiu de novo e devolveu o gesto uma vez mais. Samantha deitou a cabeça em seu ombro e se pôs a brincar com seus dedos. Sentiu Lica tensa e olhou para cima sem se desvencilhar dela.

- Tem certeza que está tudo bem? – insistiu.

- Sim, eu estou de boa, Sammy – Heloísa ensaiou um sorriso e capturou os lábios dela em um beijo mais demorado – Melhor, impossível.

Samantha até teria acreditado se não conhecesse bem a namorada que tinha. Por ali, deixou o assunto em suspenso, mas depois voltaria a tocar nele. Era a menina que ela amava ali, não deixaria que o que fosse que a estivesse incomodando permanecesse. Enfiou o nariz na curva do pescoço dela e se agarrou mais, contornando a cintura de Heloísa com o braço, perpassando-o por dentro da capa. Sentiu algo duro por dentro do tecido das vestes.

- Que é isso? – inquiriu, afastando o tecido para ver.

- Nada – Lica prontamente ajeitou o uniforme e tratou de afastar a caixinha do alcance dela – Nada demais.

- Lica – Samantha percebeu a cara dela e tentou enfiar a mão de novo, mas Heloísa se afastou – O que tem aí dentro? Você não andou colando no exame não, né?

- Claro que não, Sammy! Eu hein! – Lica se emburrou e ajeitou as vestes novamente.

- Então me deixa ver o que é. Tem alguma coisa aí dentro.

- Ih... está querendo arrancar a roupa da menina aqui, Samantha? – Gabriel provocou.

- É isso que ela vai acabar fazendo – Heloísa aproveitou a deixa e tratou de empurrar a caixinha mais para o fundo do bolso bem longe do alcance da namorada. E que Merlim não a deixasse sacar a varinha e convocar nada – Se você quiser, a gente vai embora agora e resolve isso.

- Meu Merlim, eca! – Clara fez cara de nojo e quase cuspiu a própria cerveja – Parem com isso, eu não preciso ficar imaginando certas cenas.

Lica encontrou a deixa para mudar o rumo da conversa.

- Ih... vai dizer que nunca transou, Clarinha? Falar nisso, cadê o Fio?

Acabou conseguindo mudar o foco. Samantha revirou os olhos e foi implicar com a amiga ao passo que Lica limitou-se a enfiar o nariz nos cabelos dela e inspirar profundamente. Ao menos uma vitória naquele dia.

Ou ao menos alguém tendo alguma vitória. Porque em outros cantos, havia gente contabilizando derrota atrás de derrota.

Se tinha uma coisa que Marta simplesmente odiava era magoar alguém. O problema era que na tentativa de não fazer isso, acabava fazendo e, sendo sincera, isso era uma merda. Foi assim com Lica quando da confusão envolvendo Edgar e Malu... E a história pelo visto estava se repetindo e, o que era pior, com os mesmos personagens.

Luís lhe tinha um olhar perdido por trás dos óculos de lentes grossas. E se ele já era ligeiramente menor que ela, da posição que estava, parecia que a qualquer momento poderia sumir. É, talvez sumir não fosse mesmo uma má ideia.

- Eu fiz algo errado?

Entendam: esta é a pior frase que alguém pode dizer na vida. Você se coloca em uma posição de autocomiseração com um misto de súbita coragem de tentar reverter tudo. Tenta entender a situação para poder revertê-la e nunca mais repeti-la. O problema era que ali não tinha muito o que entender. Ou havia e ninguém que entendia nada. E isso, de novo, era uma merda.

Marta tentou desviar o olhar e a resposta dela silenciosa disse tudo que Luís precisava ouvir. Ou que ele não precisava, não é? Vai saber. A mulher mudou o peso de perna em uma clara hesitação e se alguém um dia pensou que estaria blefando em ver Marta de Almeida ex-Gutierrez vacilar, bom... não era bem um blefe: era a realidade e ela era, adivinhem só: uma merda.

A vida era uma merda, tudo era uma merda.

- Luís, por favor....

- Eu só queria entender, Marta, e você é a única que pode me ajudar. Eu sei que a nossa vida não é perfeita e que nossa relação começou aos trancos e barrancos por causa dos erros do Edgar e da Malu, mas é justamente isso. Eu só queria que você visse que nós sofremos demais na mão daqueles dois e que assim... a gente devia se afastar deles, não ir atrás deles, sabe? E você... me desculpe, mas você está voltando um, mil passos atrás.

- Não é o Edgar, se é o que você está pensando.

- Eu sei que não é só que nós temos que reconhecer que a Malu é bem inconstante e ela já te magoou demais por duas vezes... você vai deixar que ela machuque uma terceira?

Ela deixaria? Marta respirou fundo e massageou a ponte do nariz. A dor na cabeça que ela tinha feito passar a tanto custo e a tanto chá ameaçava dar as caras novamente.

- Não, Luís, eu não vou deixar que a Malu nem ninguém me machuque e talvez, só talvez seja por isso que eu posso acertar desta vez. Você nunca teve a sensação que sua vida inteira foi meio que uma mentira? Não toda ela, mas uma boa parte?

- Eu espero que a minha participação na sua vida não faça parte disso – Luís riu sem humor e aquilo condoeu a mulher. Marta umedeceu os lábios e tentou ir até ele, mas se interrompeu no passo quando o homem se afastou e passou e andar de um lado para o outro, sacando os óculos do rosto.

- Não faz, Luís, nem nunca fez. Pensei que isso sempre tivesse ficado claro. Você sempre foi uma grata surpresa no meio disso tudo e eu sou muito, muito agradecida por tudo que você me proporcionou esses anos todos, pelo cuidado, atenção, pelo apreço pela minha filha... por ter criado a Clara tão bem como criou.... Mas olhando agora, eu vejo que talvez tenha sido sempre isso, hum? Gratidão com um pouco de... carência?

- Então seu sempre fui isso mesmo? Um tapa buraco? – o homem se exaltou e quis jogar as lentes longe. Marta se retraiu, mas nem assim cedeu. Já havia feito isso demais consigo mesma.

- Não, Luís. Nunca e você sabe disso – ela entoou com o tom mais firme que conseguiu impor – O que nós tivemos, o que eu te dei sempre foi verdadeiro, não duvide disso. Só que eu preciso parar de fingir pra mim mesma que está tudo bem quando não está. Por favor, tenta entender. Todos os meus relacionamentos, todos eles sempre terminaram mal de algum jeito, então o problema não era bem em quem estava comigo e sim comigo! Eu nunca consegui me doar cem por cento, nunca, porque... Porque....

- Porque você sempre quis outra pessoa – Luís completou – Só que essa pessoa te negou, Marta! Te chutou como se você não fosse nada! A Malu fez com você a mesma coisa que fez comigo quando traiu nós dois com o Edgar. Você... você foi traída por ela por duas vezes e mesmo assim ainda pensa nela? Isso não me parece coisa de quem ama, mas de quem não quer enxergar a verdade: a Malu não presta, Marta! Eu não acredito que você vai fazer isso com a gente.

- Por que você se casou com ela? – a mulher se limitou a questionar e respirar fundo, erguendo o queixo. Não era uma fronte, era só ela tentando se recompor dos baques seguidos que vinha sofrendo – O que foi que você viu na Malu quando se apaixonou e casou com ela?

Luís abriu e fechou a boca por duas vezes até escolher o silêncio. Marta assentiu e suspirou longamente,

- No fundo você sabe que a Malu tem algo de decente que cativa e conquista a gente. E eu sei que ela traiu a nós dois várias e várias vezes, mas eu também preciso que você entenda que eu não vou conseguir ir adiante com ninguém se não me encarar de uma vez por todas e quando eu digo me encarar, Luís, estou falando de encarar a Malu. Não como a mulher que arruinou meu casamento, porque meu marido também não valia nada, mas como a única pessoa que eu amei de verdade na vida.

Luís se encolheu e fez uma careta. Era como se cada palavra machucasse como navalhas.

- Resumindo, você vai passar pano pra todas as merdas que a Malu fez em nome de um amor que nem sabe se é correspondido – o homem riu-se, mas se aprumou na mesma hora ao ver os olhos de Marta faiscarem. E então ele entendeu – Meu Deus, não sou só eu! O Edgar também vai ser largado?

- Luís...

- Vocês duas estão... Marta, pelo amor de Merlim!

- Não, Luís! Pelo amor de Merlim digo eu! – ela se revoltou – Olha minha cara de quem teria coragem de trair alguém assim!

- Olha, quer saber? Eu já entendi – o homem entoou desgostoso e pôs os óculos na cara – Não vou interferir nem me meter mais. É uma pena que não tenha lugar pra mim na sua vida, você é uma mulher incrível por dentro e por fora, mas eu também não vou ficar me humilhando quando o caso claramente é antigo. Se você quer terminar, tudo bem. Mas que fique claro, Marta, eu não vou servir de amparo nem de consolo pra quando o amor da sua vida pisar em falso e acabar te derrubando junto. E acredite, a Malu é dessas. Ela ama na mesma proporção em que destrói.

- Luís...

- Eu mando o motorista pegar minhas coisas mais tarde – sem mais, Luís marchou porta afora que quase trombou com Heloísa entrando.

- Oi... Tchau, Luís – a menina arregalou os olhos por onde o homem passou e se virou para a mãe – Tudo bem aqui?

- Tudo péssimo – Marta admitiu e se deixou cair sentada ao sofá, massageando as têmporas. – E você? Como foi de prova?

- Bem, eu acho – Lica se jogou ao lado dela, sendo recebida em um afago – Mãe, eu posso perguntar uma coisa?

- Até duas – a mulher brincou, fazendo um carinho nos cabelos da filha – O que foi? Problemas no paraíso?

- Mais ou menos – ela se ajeitou e suspirou – Eu acho que eu e a Sammy estamos na beira de uma crise – Marta a olhou atentamente – Eu queria levar nosso namoro pra um nível mais sério, mas ela, pelo visto, não tem tanta certeza assim.

- Heloísa de Almeida Gutierrez, o que foi que você fez? – Marta se afastou para olhá-la.

- Quase pediu a Sam em casamento, já comprou as alianças e tudo – Clara chegou soltando tudo. Lica fechou a cara visivelmente enfezada.

- Clara, cala a boca!

- Olha, tia, eu se fosse a senhora teria cuidado. Daqui a pouco a Samantha aparece grávida, porque do jeito que essa maluca é emocionada, capaz até de conseguir fazer filho na menina.

- Lica...? – Marta se levantou em um átimo.

- Eu não posso engravidar a Samantha, mãe. Relaxa – e isso pareceu... entristecer a menina? Merlim do céu, sua filha havia ficado louca?

- Lica, minha filha, você não tem nem dezoito anos ainda.

- Vou fazer em duas semanas – a menina se emburrou e fechou a cara – E eu amo a Samantha, mãe. Qual o problema de querer juntar os panos de vez?

- Pra quê a pressa? – Marta perguntou séria.

- Ela quer é segurar a Sam. A Lica está morrendo de medo de perder a namoradinha pra algum trouxa bonitão ou alguma mina gata na faculdade.

- Mas Lica, pra quê isso? A Samantha é louca por você, filha....

- E eu pensei que isso já tivesse ficado claro – ah, aquela voz... fez cada pelinho do corpo de Lica se arrepiar e da pior maneira possível. Samantha Lambertini, a própria estava de pé no umbral da porta, segurando uma caixinha de veludo vermelha na mão esquerda. Heloísa tateou as vestes visivelmente desesperada até encontrar o bolso interno da capa vazio – Você deixou isso aqui cair quando desceu do carro.

- Nossa, que pedido emocionante – Clara debochou.

- Cala a boca, Clara!

- Não fala comigo assim! – a irmã rebateu.

- Chega vocês duas! – Marta interrompeu e foi até a nora – Samantha, querida, entra. Fica à vontade. Como você está?

- Tudo bem, tia – mas Samantha não tirava os olhos de Heloísa. Uma Lica encolhida e visivelmente constrangida – A senhora está um arraso como sempre.

- Imagina, roupa de casa – avalie o que fosse a roupa de sair – Fica à vontade, minha querida. Clara, vamos?

- Eu não – ela que iria embora? – Eu vou ficar aqui e assistir – a menina se aboletou ao sofá.

- Clara – Marta foi mais firme. Arrancou um revirar de olhos da loirinha, que se levantou e passou pela amiga. Não sem antes dizer baixinho – Vai com calma, essa idiota te ama e só é sem noção.

Sob o silêncio das duas, Marta e Clara se retiraram. Samantha se virou para Lica com a caixinha das alianças em mãos e o olhar no mínimo questionador. Heloísa, por sua vez, parecia tão acuada que se alguém batesse o pé, ela correria pedindo por socorro. Engoliu no seco e desviou o olhar. As mãos brincando uma com a outra e os dedos se retorcendo. Nervosa, Samantha percebeu quando abaixou o olhar para lá.

- Era isso que você estava me escondendo hoje mais cedo? – a Lambertini questionou – Você queria me pedir em casamento, era isso?

Lica respirava acelerado a ponto de ter uma crise horrenda de ansiedade. Fez uma careta como se sentisse dor e se pôs a caminhar de um lado a outro. Abriria facilmente um buraco no chão.

- Lica, olha pra mim – um tanto relutante, ela o fez. Quase vacilou ante o olhar que recebeu, mas permaneceu firme dando tudo de si – Me responde. Era isso? Você queria me pedir em casamento?

Sabe a gota d’água? Quando ela cai e o balde da paciência e do bom senso transborda, você perde o prumo. Lica perdeu o dela, porque sua gota d’água não foi bem uma gota. Foi mais uma enxurrada mesmo.

- Quer saber? Queria sim – do verbo não querer mais ou ter medo demais de continuar querendo – Queria, porque né? Nós estamos juntas tem um tempo, eu acho que a gente se entende, pensei que seria uma boa ideia. Mas pelo visto, só eu penso isso.

Samantha mentiria se disse que o coraçãozinho bobo não deu aquela acelerada marota com as palavras que ouvia da boca da namorada. Lica era uma romântica nata e à moda antiga do tipo que comprava alianças em caixinha de veludo para fazer um pedido decente e aquilo a tocou na mesma proporção em que preocupou. Emoção, quando é demais, tende a fazer as coisas desandarem. Aliás, como tudo que é demais. Já dizia o filósofo: o meio-termo é a virtude.

- Por que você acha que só você pensa assim? Você ao menos tentou pra saber?

- Samantha... você riu e desconversou quando o MB falou sobre nós morarmos juntas. Ou você esqueceu?

- Claro. Minha faculdade fica a um bairro de distância e você vai conseguir chegar na sua usando a rede de flu – ela não via? – o Guto e a Benê vão morar juntos, porque vão se mudar pra outra cidade e sai mais barato. O Anderson e a Tina também! Eu só falei aquilo porque no nosso caso não precisa pressa. A gente pode continuar namorando como estamos e deixar pra ir morar juntas quanto estivermos cada uma com um diploma na mão e pelo menos tendo uma fonte de renda própria. Eu não quero sair de casa pra continuar dependendo dos meus pais, Lica. Pensei que tinha ficado óbvio.

Não, não tinha. Lica abriu e fechou a boca duas vezes antes de mudar o peso de perna e se calar.

- E eu não sei se você percebeu, mas assim... em momento nenhum eu dei a entender que não te quero ou que te quero menos. Eu falei que era cedo demais pra gente dividir um apartamento, não que isso nunca ia acontecer. Eu não pensei que precisasse explicar isso – Samantha parecia visivelmente chateada. Lica se encolheu – E pensei também que você tivesse certeza do que eu sinto por você.

- Eu tenho. Mas....

- Mas o quê, Lica? – Samantha estava exausta e ainda tinha a caixinha das alianças na mão. Sequer se dava conta – Fala logo que eu odeio meio termo.

- E se mais na frente você não tiver? Quer dizer, você vai ter outras opções sim e um monte de gente nova na sua vida. Eu... – era horrível admitir aquilo em voz alta – Eu tenho medo de acabar te perdendo no meio do caminho.

- E por isso que você queria me dar essas alianças e ir morar junto? Não é porque é o certo nem a hora, é pra me segurar e ter certeza de que eu não vou me afastar de você no meio do caminho – não era uma pergunta – Você sabe que eu odeio isso, não sabe? Que me prendam e me impeçam de viver de qualquer forma. Casamento, Heloísa, é porque existe amor e cumplicidade, não pra garantir que a pessoa que você quer vai estar sempre ali.

Lica abaixou o olhar e retorceu as mãos sem saber nem onde pô-las. Samantha sabia ser bem cruel nas palavras quando queria.

- Eu te amo – foi o que respondeu em um fio de voz – E sempre quando eu falava em casar você nunca se opôs. Pelo contrário, sempre entrava na onda.

- Claro. Porque eu também te amo e penso sim em um dia ter seu sobrenome, mas não assim. Não porque eu vou pra uma faculdade e você pra outra e a gente não vai mais se ver todo dia. Casamento é pra somar, Lica. Não pra prender.

- Então é isso. Casar comigo, dividir um lugar comigo é prisão – Heloísa concluiu. Estava tudo bom demais para ser verdade mesmo.

- Não coloca palavras na minha boca, Heloísa, pelo amor de Merlim! Olha pela besteira que a gente está discutindo – Samantha passou a mão pelos cabelos meio exasperada.

- E você quer que eu pense o quê, Samantha? – Lica abriu os braços em um misto de contrariação com chateação – A ideia da gente morar juntas te parece uma prisão. A ideia da gente casar um dia, e nem precisava ser agora não, te faz parecer que eu estou te segurando só pra mim.... a impressão que eu tenho é a de que você não quer compromisso nenhum além do que a gente já tem pra ser mais fácil desfazer qualquer coisa caso outras opções surjam.

- E que outras opções surgiriam, me fala? – tinha virado briga. No corredor, Clara era puxada por Marta pra sair da pose de bisbilhoteira dos desentendimentos alheios – Alguém menos inseguro e imaturo que você? Alguém que confie em mim e no que eu sinto e que se ache capaz e suficiente pra me manter? Não vem jogar seus medos pra cima de mim, Lica. Essa sua insegurança me irrita. Não é bonitinho, é desgastante.

Lica se encolheu ante a ferocidade das palavras dela e foi só depois do que tinha dito que a menina se deu conta do que tinha saído de sua boca. Tinha chamado sua namorada de insegura, imatura e irritante em um frase só. E... é. Tinha feito pouco caso do zelo dela mesmo que sem querer. Do interesse dela em construir uma vida juntas e estar sempre ali ao seu lado. Do que Lica sentia.

- Desculpa, eu nã....

- Dá pra me devolver? – Lica esticou a mão. Nem fazer um feitiço simples de convocação para recuperar o que era seu ela podia. Porque a vida, senhores, ela é, adivinhem só... uma merda! No automático, Samantha olhou para a própria mão com a caixinha das alianças.

- Lica, nã....

- Dá licença – e impaciente, Lica caminhou até ela segurou o pulso e tirou a caixinha das mãos dela. Sem dizer mais nada, a menina marchou para dentro. Pegou Clara no flagra espiando a conversa barra discussão e Marta atrás dela com uma cara de pena maior do mundo. Mas ela não precisava de pena. Precisava era fugir das vistas de Samantha para poder chorar sua desgraça em paz. Ela podia só ter dito “não” ao seu pedido. Era mais fácil.

- Lica? – a Lambertini chamou sendo deixada no vácuo. Se virou e deu de cara com Clara sorrindo amarelo – Lica, volta aqui! Eu falei sem pensar! Lica!

- Samantha, é melhor você ir, querida – Marta apareceu.

- Tia, eu não queria....

- Tudo bem, eu sei, eu entendo. Mas é melhor deixar para outra hora, hum? As duas de cabeça quente não é uma boa ideia.

Samantha retornou para o próprio carro estacionado do lado de fora do prédio buscando pela varanda do quarto de Lica no décimo quinto andar. Encontrou a luz acesa, mas não registrou nenhum movimento. Dando-se por vencida, embarcou no carro enviando uma mensagem no WhatsApp.

“Me perdoa, eu não queria ter dito aquilo. Vamos só conversar civilizadamente, por favor. Era pra gente estar comemorando a libertação da escola, não discutindo por besteira. Me liga quando puder ou ao menos me atende” – enviou.

Samantha colocou o celular de lado, deu a partida. A cabeça em todo canto menos no trânsito. Quase estuporou com carro e tudo um trouxa lerdo que se meteu em seu caminho e a fez perder a merda do farol no cruzamento. A mensagem enviada a Lica intocada.

Merlim, as coisas podiam ser só um pouco menos intensas e complicadas? Samantha amava intensidade, mas daquele tipo ali ela simplesmente odiava e queria era distância.

Mas enquanto ela rumava para casa, em Higienópolis tinha gente fazendo por onde levar advertência e receber uma mancha no currículo em vias de ingressar na faculdade que sonhara para sua vida. Lica estava sentada na beirada da cama, a caixinha com as duas alianças aberta no aparador. Olhando fixamente para ela com uma raiva colérica, a menina não pensou duas vezes antes de sacar a varinha e murmurar um “Reducto” claro e sonoro que fez o objeto simplesmente virar pó e sumir.

- Lica! – Clara se alarmou porque a pegou no flagra – Você fez magia sem poder, sua louca!

E daí? Ela conhecia as leis. Expulsa do Grupo ela não podia mais ser e seria questão de dias para completar a maioridade. Mas bem... Ela parecia ser a única a entender daquele jeito.

Uma coruja passou zunindo por sua varanda no segundo seguinte em que ela caiu de costas no colchão encarando o teto. O animal pousou elegantemente em sua cabeceira e deixou cair em sua cara uma carta. Ela já devia esperar por aquilo. Jogou para o lado e girou na cama ficando de cara para o colchão. Clara pegou a correspondência e abriu.

 

“À senhorita Heloísa Gutierrez, os cumprimentos do Ministério da Magia. O Departamento de Controle de Uso da Magia detectou uso de feitiço indevido executado pela senhoria às dezessete horas e quarenta e sete minutos do dia trinta de outubro na residência localizada....”

 

Lica nem ouvia mais. Enfiou um travesseiro na cabeça abafando o barulho ao redor.

 

“Intimo a senhorita a comparecer a uma audiência a realizar-se na sede do Departamento de Controle de Uso da Magia, localizado no quarto andar do Ministério da Magia, às nove horas do dia primeiro de novembro. Em caso de não comparecimento voluntário, designaremos força de segurança para condução coercitiva. Atenciosamente...”.

 

- Lica, o que foi que você fez?

Mas se ela achou que a pá de cal tinha chegado, se enganou redondamente. Outra coruja, dessa vez maior e mais imperiosa do pelo cinza altamente bem escovado, pousou ao lado da anterior em sua cabeceira. Outra carta caiu sobre a Gutierrez. Clara a pegou e abriu impaciente e temerosa.

- Lica... essa é... É melhor você ler – e tirou o travesseiro da cara da irmã, estendendo a mão pra ela. Lica se esticou e pegou sem desenterrar a cara do colchão, só para poder ler o que havia ali. Em letras floreadas, uma única frase.

E aí sim ela temeu.

 

“Minha filha chegou chorando em casa. Aguardo você no Ministério na segunda-feira antes de sua audiência impreterivelmente.

Att.

Marco Lambertini, ministro da Magia".


Notas Finais


E aí? Lica está lascada ou não? kkkkkk
Olha, vamos matar a saudade aqui da Ordem da Fênix, as cenas em que o Harry vai ao Ministério da Magia para uma audiência sobre uso do Feitiço do Patrono. Imaginem a Lica daquele jeitinho e voi la! rsrsrs.
Mas e aí? Quem tem razão e quem não nessa discussão entre Lica e Samantha? Team Lica casa logo e tenham filhos ou Team Samantha calma lá, cada coisa a seu tempo?
Samantha pegou pesado ao chamar a Lica de imatura e insegura? Ou só jogou verdades?
E a Lica destruindo as alianças, huumm.... Não vou nem comentar.
Sobre Marlu: está vindo aí, mas calma lá que não dá pra ser de uma hora pra outra. O Luís já foi, agora o Edgar.... kkkkkk. A cabeça dele tá pesando, hein? rsrs.

No mais, eu agradeço pela leitura e nos vemos no próximo capitulo.


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