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História Amortentia - Merda pouca é bobagem


Escrita por: MxrningStar

Notas do Autor


Olá, gente! Tudo bom com vocês? Bora se alienar um pouco da realidade triste e desesperadora que no cerca? rs.
Alguns esclarecimentos sobre o capítulo de hoje pra quem é de fora do universo de HP:
1. Aparatar: aparecer do nada. Habilidade que os bruxos maiores de idade têm de aparecer e desaparecer dos lugares em um clique. Na história original, é proibido aparatar e desaparatar em Hogwarts. Aqui, permiti aos professores e diretores. A Dóris aparata ao lado da Sam e da Lica no começo do cap.
2. A entrada do escritório do Dumbledore na história original é guardada pela mesma gárgula gigante que descrevo aqui. A senha de entrada é Gota de Limão. A mesma que a Lica diz aqui pra entrar na sala do Edgar.
3. O retrato do seu Maurício dá um tchauzinho para Lica. Sim, os retratos se mexem, se movem de uma moldura pra outra e alguns falam também. Não estranhem rsrs.
4. Penseira: é basicamente uma bacia mágica onde o bruxo pode ver suas memórias mais marcantes. Como? As memórias são coletadas a partir de lágrimas da pessoas em um frasquinho e, quando derramadas na penseira, elas podem ser "assistidas". Basta o bruxo enfiar a cara no líquido da penseira pra se "transportar" pra aquela memória e vê-la como um figurante sem ser visto por ninguém que faça parte dela.
5. Murta Que Geme é personagem original de HP e igualzinha no livro e aqui. Na série ela também tem uma quedinha pelo Harry que chega a ser cômico kkkkk.
6. Sereianos: seres aquáticos que habitam as profundezas do Lago Negro do castelo. São uns amores se ninguém mexer com eles, mas se se sentirem ameaçados, são bem... chatinhos.

Sobre o capítulo de hoje: Eita, Heloísa....

Boa leitura!

Capítulo 6 - Merda pouca é bobagem


- Felipe, porra velho!

Mas a desgraça já estava feita. Lica se virou para sair e deu de cara com Samantha parada logo atrás dela estática feito um dois de paus. Porque desgraça pouca, é bobagem.

 

- Vocês não têm aula não? O primeiro tempo começa em cinco minutos – e sem dizer mais, Samantha deu as costas, a capa farfalhando em seus pés. O perfume de flor de cerejeira dela ficou no ar entorpecendo os sentidos de Lica.

Mas ela precisava agir, não se entorpecer.

- Samantha! Espera! – gritou e se virou para Felipe – Filho da puta! Você é um excelentíssimo filho da puta, Felipe! Samantha, volta aqui!

Lica correu para alcançá-la. Demorou, mas o fez. Conseguiu tocar no braço da menina para fazê-la parar ao chegarem à beirada da escadaria que levaria para o segundo andar.

- Me solta – Samantha ordenou com autoridade.

- Desculpa – Lica a soltou, mas se manteve ali – Por favor, não vai embora. Aquilo foi um engano. O Felipe me pediu um abraço e eu ia dar, mas aí ele me beijou. Não sei o que deu nele, mas eu cortei.

- Pra que você está me explicando isso, Lica?

- Porque claramente você ficou incomodada e eu não quero te magoar.

- De boa. Eu não fiquei magoada, a gente nem tem nada mesmo. Pode beijar quem você quiser.

Lica podia ter se ofendido e se magoado com o peso daquela frase, mas já tinha passado daquele estágio. Sabia como lidar com Samantha, a conhecia melhor do que ninguém.

- Pra mim é alguma coisa. O que você chama de “nada” pra mim tem outro nome – interpôs. Samantha abriu a boca três vezes sem ter o que dizer – Isso me diz que você está com ciúmes e se está mesmo, é porque o que a gente tem importa pra você também. Importa como importa pra mim.

- Importa pra mim.... – Samantha repetiu contrariada.

- Importa sim, Samantha. Importa muito – a certeza com que Lica afirmou aquilo pegou a Lambertini de calças curtas. Ela lhe mirou fixamente – Eu não te chamaria pra ser meu par no baile se pra mim não fosse sério. Eu não enfrentaria meu pai e a escola inteira se não fosse sério. Pra mim é e muito. E eu sei que pra você também, então vamos pular essa parte e chegar logo no momento em que a gente define tudo?

- D-define tudo? – Samantha fraquejou nas pernas e ela nunca, jamais fraquejava.

- Eu gosto de você – Lica foi sincera. Respirava acelerado em ansiedade – Eu gosto do seu beijo, do seu cheiro, da forma como você usa o uniforme da escola, eu gosto de cada detalhezinho. E também gosto pra caramba do jeito que você é, da maneira como você trata as pessoas de igual pra igual mesmo sendo quem é.

- Sendo quem eu sou?

- Filha do ministro da Magia e a melhor aluna que essa escola já teve. Não deixa a Ellen e a Benê me ouvirem, mas você é tão fera quanto elas. E isso... isso me conquistou, sabe? Essa sua maneira me prende e eu... cara, eu não consigo olhar pra mais ninguém. Muito menos pra aquele zé ruela do Felipe – aproximou-se um passo – Acredita em mim, vai? Eu seria incapaz de te magoar de alguma forma. Eu... eu gosto de ficar com você e se você me permitir, eu quero poder dar um nome pro que a gente tem.

- D-dar um nome? – Samantha tremia mais do que vara verde.

Lica respirou fundo antes de continuar.

- Samantha Lambertini, voc....

- Heloísa, querida, que bom que eu te encontrei. Ah, olá, Samantha – Dóris brotou do nada, cumprimentando-as. Devia ter aparatado. Não percebeu a tensão instalada ali e já foi logo emendando – O Edgar quer falar com você. Lhe aguarda na sala dele.

- É muito urgente? – Lica só queria terminar sua frase.

- Sim, querida. E eu se fosse você, me apressava.

- Certo, hã... eu já vou. Obrigada.

Dóris assentiu, deixou no ar um convite barra ordem para as duas seguirem para seus afazeres porque teriam aula dentro de alguns minutos, e se retirou na mesma velocidade com que apareceu.

- Vai lá. A gente conversa depois.

- Não, tem que ser agora – Lica quase implorou – Me diz pelo menos que a gente vai ficar bem. Hum?

- Lica... – Samantha suspirou – Uma coisa por vez, tá? Vai lá ver o que seu pai quer e no intervalo do almoço a gente se encontra. Me procura no Salão Principal.

- Certo, é... – sem mais, Lica deixou um beijinho casto nos lábios da menina, ensaiou um sorrisinho e se retirou.

E se achava que seu dia havia começado mal, a sequência de merdas parecia estar só começando. Lica estacou em frente à enorme gárgula de pedra que guardava a torre de Edgar. Falou desanimada a senha de acesso e subiu pelas escadas em espiral que surgiram quando o objeto se moveu.

Heloísa já tinha em mente o que lhe esperava. Sabia que não podia fazer o que fez na noite anterior e ficar por isso mesmo. Entrou no escritório de seu pai suspirando. O espaço era uma grande sala circular com muitas janelas e retratos de diretores e diretoras anteriores. A imagem do fundador do Grupo, sr. Maurício Gutierrez, ficava pendurado atrás da mesa de Edgar. Era a maior pintura do aposento, o que dava um vislumbre da magnitude dos feitos dele na escola e no mundo da magia.

Ao lado da mesa de Edgar ficava o pedestal de ouro da fênix de estimação de Maurício, que hoje, passava mais tempo na sala de Bóris ou voando pelos arredores do castelo do que na sala de seu atual dono. Edgar não era muito afeito a animais. Os armários em madeira se estendiam por quase todos os cantos, assim como as estantes de livros que iam do chão ao teto. A maioria deles escrito pelo fundador do Grupo. Uma luz mais ao canto chamava a atenção vinda de dentro de uma cristaleira. Era a penseira que um dia fora de Maurício. Guardava memórias do patriarca dos Gutierrez, lembranças vivas. Edgar não a usava, tinha a sua própria, mas mantinha o objeto ali como uma homenagem póstuma ao pai.

Lica deu uma olhadinha ao redor mirando o retrato de seu avô muito bem posicionado no centro da parede ao fundo e deu um tchauzinho para o homem, que sorriu em contentamento.

- Tudo certo, seu Maurício? – brincou.  Em seguida, foi passear pelas lombadas dos livros e já estava era pensando em ir embora quando Edgar brotou pela portinha dos fundos.

- Desculpa a demora, eu estava enviando uma carta – informou e tomou seu lugar. Edgar poderia parecer imponente sentado naquela cadeira de carvalho que mais parecia um trono do que outra coisa, a expressão dura e fria. Para Lica, não passava de teatrinho para esconder o homem ligeiramente covarde e medroso que ele era. E essa covardia se fez ver no que ele falou em seguida – Lica... eu queria conversar com você sobre ontem.

Sem dizer nada, ela tomou o lugar que ele apontou e o deixou prosseguir.

- Filha... você está namorando a Samantha?

Ela já devia esperar. Claro que devia, mas mesmo já na expectativa daquilo, a forma como seu pai proferiu as palavras feriu um pouquinho.

- E se eu estiver? Tem algum problema?

- Nenhum – o homem riu erguendo as mãos em rendição – Por mim, você sabe que problema nenhum, eu não sou nenhum puritano. Mas não sou só eu... nós temos os pais dos alunos, Lica. Os investidores. E eu não sei se isso... se esse tipo de comportamento pode ser bem recebido por eles.

- E daí? O senhor acabou de falar que eu estou namorando a Samantha, não os investidores. Eles não têm nada a ver com quem eu me relaciono.

Lica já havia assumido a defensiva e quando ela se defendia, costumava atacar também. Edgar ajeitou a postura.

- Heloísa... veja bem, minha filha. O Grupo é formado por um time de investidores que coloca o dinheiro deles aqui dentro e eles esperam que a escola tenha um ambiente saudável....

- Saudável? Espera, espera – Lica riu em escárnio – Então se por acaso eu estiver namorando com uma menina, não é saudável? Quer dizer, só o que tem é casal se pegando nos corredores dessa escola e não se faça de cego, porque todo mundo sabe. Agora só porque são duas meninas, não é saudável? Olha a hipocrisia, seu Edgar. Pega mal.

- Lica, não me provoca – o homem quis perder a estribeiras – Eu estou preocupado com o que vão pensar da minha escola, é errado? Sou o dono disso aqui e não sei se a minha filha sair por aí se relacionando com mulheres é bom para a imagem do Grupo. Mesmo essa menina sendo a filha do ministro da Magia. Aliás... – Edgar se ajeitou na cadeira – Você não a seduziu não, né? Eu não quero problemas com o ministério aqui dentro.

Lica riu sem acreditar e negou com a cabeça.

- Você é patético – cuspiu com desgosto – Sério, me mata de vergonha dizer que sou sua filha quando você age assim. Problema, seu Edgar, é em pleno 2021 ter gente preconceituosa e mesquinha no mundo. Problema tem é o senhor com essa sua intolerância. Porque, né? Não é puritano desde que não seja com a minha família... pode fazer, desde que não seja sob meu teto... Foda-se o que o senhor pensa! Se eu estiver namorando, pegando, saindo ou seja lá o que for com a Samantha diz respeito só a mim e a ela, beleza? E eu estou pouco me fodendo pra investidor....

- Olha os termos, Heloísa!

- Eu estou pouco me fodendo pro que vão pensar – Lica repetiu pontuando cada palavra em provocação – Que se explodam. Eu não vou deixar de beijar minha mina só porque pode pegar mal ou porque podem não gostar.

- Sua mina? – Edgar parecia ter levado um soco – A Samantha é... sua mina? Meu Merlim, está pior do que eu pensei.

- E se for? Vai achar ruim? – Lica desafiou e não perderia mesmo a oportunidade – O senhor devia era estar feliz, Edgar. Eu posso te dar de norinha a filha do ministro da Magia!

- Para de me provocar, Heloísa! – Edgar limpou a testa com um lenço – E para de agir assim! Feito uma maluca sem pai nem mãe! Você estava tão bem, filha... estava namorando com o Felipe, estava tudo certo.....

- Tudo certo? – Lica riu que gargalhou – Cara, o senhor é muito cego mesmo... Eu só fiquei com o Felipe pra dar um troco na Clara, paizinho. Sabe como é... se a mãe dela pegou o marido da melhor amiga, eu podia fazer o mesmo com ela. E o Felipe até que é bonitinho, mas eu já passei dessa fase. Aliás, aquele cara é um escroto, pode ficar com ele pra você.

- Heloísa!

- E ó, se o senhor não tem mais nada de útil pra me dizer, eu vou voltar pra minha aula. Me chama quando for realmente importante, beleza? – Lica se levantou – Ah, e dá uma reciclada aí nessa cabeça, porque deve estar tudo cheio de mofo aí dentro.

Sem mais, Lica saltou os dois degraus da saída de uma vez e apressou o passo. Estava atrasada para aula de Aritmância e o pior: perdera o horário para nada com coisa nenhuma dentro. Como se pudesse esperar outra coisa de seu pai.

(...)

Conforme haviam combinado, Lica e Samantha se encontraram no horário do almoço. Ela sentiu a Lambertini ainda um tanto reticente, mas não nadaria para morrer na praia. Não mesmo. Pediu licença a Gabriel e se instalou ali à esquerda dela, uma perna de cada lado no banco, de frente para a garota que cortava um assado.

- Oi – deixou um beijinho na bochecha de Samantha, que não esboçou nenhuma reação sequer – A gente pode conversar agora? Eu tenho um assunto pra terminar com você.

- Estou comendo, Lica. Pode ser depois?

- Eu te espero – não, não podia. Adiar mais? Nem pensar!

- Olha só se não é a filha do dono da escola com a filha do ministro! – ouviam a voz de Rafael irromper quase da outra ponta da mesa – Cara... o nível dessa escola realmente tem caído. Primeiro, sabotam o torneio e agora isso. O Grupo já foi melhor, hein? Mais bem frequentado.

Lica respirou fundo e apertou as mãos. Samantha percebeu o gesto dela e franziu o cenho.

- Não entra na pilha dele – pediu sem levantar o olhar de seu prato – É isso que ele quer.

- E vai conseguir – Lica respirou fundo de novo.

- Fala aí, Gutierrez! Não basta ser encrenqueira, tem que desvirtuar as filhas alheias agora? Uma pena a Samantha curtir esse tipo de coisa... sabe, eu acho que poderia resolver essa questão.

O que se seguiu foi em um átimo. Um jato de luz perpassou a cabeça dos demais ocupantes da mesa, indo atingir Rafael no meio do peito. O rapaz foi lançado longe, caiu com um baque surdo e de pernas abertas no meio do Salão Principal, o que arrancou gargalhadas de alguns.

Ao lado de Samantha, Lica estava de pé, varinha na mão e tinha uma expressão colérica no rosto.

- Lica! O que foi que você fez? – Samantha quase gritou e correu para acudir seu colega de Casa na condição de monitora.

- Te defendendo? Esse cara é um idiota, merecia muito mais! – ela alteou a voz – Deu inveja porque a Samantha nunca te quis, seu babaca? Chora mais que está pouco! Agora ofender minha mina, nem a pau! Isso eu não vou permitir!

Samantha estacou quando ouviu o “minha mina” proferido em alto e bom som no meio da salão. Virou-se para Lica em um átimo buscando o olhar dela.

- Meu pai vai saber disso! Você pode ser expulsa!

- Tenta! Vai lá, pode tentar. Me avisa se conseguir. Aí sim a gente conversa. Panguão!

- Lesbicona! – Rafael bradou enquanto se levantava, as pernas quase tendo sido arrancadas do próprio corpo. Keyla, Tina, Ellen e Benê já se aproximavam atordoadas.

- Quer que eu te ensine como é? – Lica devolveu quase gritando. Foi segurada por Keyla e Ellen, que evitaram que ela fosse para cima do rapaz – Quem sabe quando deixar de ser enrustido, você melhore! Ou você acha que ninguém sacou que você também morre de vontade de dar uma voltinha fora do armário?

- Eu te mato, sua... – outro jato de luz voou por cima das cabeças. Só que dessa vez, indo parar na direção de Lica. A Gutierrez voou por alguns metros com o corpo esguio até parar no chão depois de bater com as costas na parede.

- Lica! – Samantha largou Rafael e correu até lá desesperada. Se agachou ao lado da menina, que massageava a cabeça e o braço. O corpo todo latejava – Você está bem? Está....

- De boa – foi o que recebeu de resposta – Precisa mais do que isso pra esse filho da mãe acabar comigo.

E sem mais, Lica apressou o passo até Rafael, a varinha em riste. Teria lançado um feitiço de azaração se uma voz grave e firme feito um trovão não tivesse soado no meio do salão.

- SILÊNCIO! – Bóris, o próprio, aparatou no meio da confusão. Rostos e corpos paralisaram, Lica quase tropeçou nos próprios pés e Rafael foi largado pelos colegas indo parar mais uma vez no chão todo sem jeito – O que está acontecendo aqui?

- Com licença, com licença – Benê fez seu caminho entre os demais, sendo a única voz ouvida no silêncio que havia se instalado – Quem começou a briga foi o Rafael, professor. Ele atacou a Lica e a Samantha porque elas estavam de par no baile. E ofendeu a Samantha. A Heloísa foi defende-la e eles começaram a brigar. Ah, e o Rafael se referiu à Lica como, abre aspas, lesbicona.

Bóris massageou as têmporas e se virou para um Rafael tentando se manter de pé e falhando miseravelmente.

- Eu quero os dois na minha sala agora. E você, Samantha, vem comigo. Vai me ajudar a entender o que foi isso – e sem mais, Bóris seguiu a passos firmes para a saída do Salão. E vendo que ninguém lhe seguia.... – Eu falei agora!

Samantha ajudou Lica a caminhar, enquanto Rafael se livrara do apoio dos amigos com um safanão. E no minuto seguinte lá estavam os três, lado a lado diante de um Bóris Belink visivelmente descontente e contrariado.

- Armar uma briga e quase sair no duelo no meio do salão é inadmissível até para vocês dois! – se dirigiu a Lica e Rafael – O que vocês têm na cabeça? Vento? Vocês poderiam ter atingido outros alunos e, pior! Podiam ter se matado! Duelar nos corredores ou em qualquer lugar desta escola é terminantemente proibido! Confrontos físicos não resolvem nada e violência só gera mais violência!

- Mas a Heloísa provocou, Bóris – Malu irrompeu pela porta da sala acompanhada de Dóris.

- O que a Lica fez, Malu? – a diretora da Grifinória rebateu– É proibido agora os alunos namorarem?

Samantha corou e Lica ficou tão sem jeito que olhou para baixo encabulada.

- Isso não é um namoro, minha querida.

- É sim – Lica mesma foi que respondeu. Samantha olhou-a tão rápido que quase teve uma tontura e se desequilibrou. O que diabos aquela menina estava dizendo? – Quer dizer, só falta a Samantha aceitar, mas se ela quiser, eu também quero.

- Lica...

- Isso é inadmissível, meu Merlim.... Pega muito mal para a imagem da escola duas alunas.... De casinho. O que os pais e os investidores vão pensar? E o ministro? Sabendo que a filha está....

- Meu pai está tranquilo com isso, Malu – Samantha a cortou – Não fale por ele, fale por você.

- Samantha, não me desautorize.

- Chega! – Bóris quase arrancava os cabelos. Jogou os óculos sobre a mesa parecendo exausto e massageou a ponde do nariz – A situação aqui não tem nada de inadmissível, Malu. Inadmissível são os alunos se digladiarem desse jeito como se esta escola fosse uma arena de lutas.

- Mas foi a Heloísa quem começou! – a mulher atacou.

- Porque seu aluno a provocou e ofendeu a namorada dela – Dóris devolveu.

- Não, espera... – Samantha só queria esclarecer umas coisinhas ali, mas foi atropelada.

- Isso não justifica uma agressão, Dóris – Bóris pontuou.

- Eu sei que não, mas veja bem, Bóris: os ataques começaram de uma das partes e confronto nenhum teria acontecido se a ofensa não tivesse sido solta em primeiro lugar. Por isso o que eu proponho é uma notificação para as duas famílias informando do ocorrido e uma detenção para os dois, Heloísa e Rafael.

- O Rafael não pode sofrer detenção! Tem uma prova do torneio daqui a dois dias, precisa se preparar! – Malu tentou intervir

Lica sentiu o chão debaixo dos seus pés cederem. Merlim do céu, a prova do Torneio Tribruxo! O maldito ovo que naquele exato momento estava esquecido no fundo de seu malão como jazia há... quase um mês!

- Ele precisa ser punido de alguma forma, Malu – Dóris insistiu.

- A Heloísa também está em preparação para a prova – Bóris pontuou e pensou ter capturado um resquício de nervosismo na expressão da aluna quando se referiu a ela – O que pode ser feito aqui é os dois alunos levarem advertências, perderem, cada um, cem pontos para suas casas e seguirem um toque de recolher mais rígido até a próxima semana. E as famílias serão notificadas.

Pondo um fim naquela discussão, o diretor liberou todo mundo. Malu, na verdade, saiu da sala dele esbravejando aos quatro cantos o quanto seu aluno tinha sido vítima das maluquices da aluna de Dóris. Claro que ela não perderia uma oportunidade de atingir e culpar a enteada por tudo que houvesse de errado no mundo.

A única que saiu dali ilesa mesmo foi Samantha, que fez o percurso até a sala dos monitores em completo silêncio, escreveu as advertências dos dois, deu para Dóris e Malu assinarem e descontou os pontos das duas casas. Rafael saiu de lá bufando. Dóris e Malu discutindo por alguma coisa que elas ignoravam até só restarem Lica e a Lambertini lá dentro.

- Você está bem? – a Gutierrez buscou o olhar dela.

- Estou sim. Melhor que você, com certeza – Lica mancava um pouquinho por conta do encontrão que dera contra a parede de pedra do salão – Doendo muito?

- Não dá pra morrer – ela brincou e se aproximou um passo – Tem certeza de que está tudo ok?

Samantha, sendo sincera, não tinha mais certeza de nada. Lica lhe pedira em namoro do jeito mais torto e inapropriado que podia, no meio de uma discussão com os diretores de duas casas e do diretor da escola. Ela podia ser assim... um pouquinho mais convencional?

- Tenho sim, e Lica... não precisa me defender, tá? Eu sei fazer isso sozinha.

- Eu sei que sim, mas me deu uma coisa quando ouvi o Rafael falando daquele jeito com você... não quero e nem vou permitir que te ofendam – Lica se aproximou mais um passo e tocou o rosto de Samantha. Ia se inclinando para roubar um beijo, mas a menina desviou e se afastou. Beijou o vento.

- Lica, a gente precisa conversar – Samantha estava inquieta. Começou a andar de um lado para o outro retorcendo os dedos das mãos. Lica percebeu o nervosismo e quem começou a ficar nervosa foi ela.

- Pode falar.

- Por que você disse que eu sou sua namorada? Quer dizer, a gente não conversou sobre isso.

- Ah, é sobre isso... – Lica se aproximou e tirou uma mecha de cabelo do rosto dela – Eu ia te pedir em namoro hoje quando a Dóris apareceu. Na verdade eu já tinha isso em mente tem um tempinho e... bom, achei que era uma boa hora. Quer dizer, você me viu com o Felipe, entendeu tudo errado, eu pensei que seria o momento de te mostrar que eu estou realmente gostando de você e que quero que seja sério.

Samantha estava muda e parecia ter levado um choque.

- Não era pra ser assim no meio da sala dos monitores ou no meio de um corredor... eu estava planejando tudo certinho, mas já que não deu muito certo....

- Lica... – Samantha abriu a boca para falar, mas foram interrompidas por batidinhas na porta. A monitora da Corvinal chamando Samantha, dizendo que algum professor estava procurando por ela. A menina assentiu e disse que já ia – A gente pode conversar depois? Com mais calma, sem ninguém interrompendo?

- Claro – Lica afirmou com a cabeça mas algo dentro de si chacoalhando numa sensação incômoda. É que trabalhara sempre com hipóteses positivas, mas e se Samantha lhe desse uma resposta negativa? Não tinha calculado o que faria com aquela possibilidade – A gente se fala depois. No jantar.

Se despediram com um beijinho rápido, Lica pegou sua advertência e deixou Samantha ali. Um turbilhão de pensamentos perpassando a mente da monitora, que estava difícil se atinar.

Heloísa lhe pedira em namoro. De um jeito meio torto, mas ainda assim um pedido. E sendo sincera, Samantha não sabia muito bem o que fazer nem como reagir àquilo. Quer dizer, estavam bem como estavam. Ela não mentiria que ficou mexida com a proposição da menina, meio que seria o caminho natural para as coisas, mas havia sempre aquele “e se”. Ela tentava não se apegar a eles, mas que estavam ali, estavam.... Vira Lica com Felipe mais cedo e embora a Gutierrez tenha jurado de pés juntos que tinha sido uma armação do rapaz, ela não podia ignorar o fato de que os dois já tiveram uma história. Conhecia a fama de Lica, o quão inconstante ela poderia ser, mas também reconhecia que havia certa estabilidade naquilo que vinham tendo. Investiria naquela sensação de segurança que ela vinha lhe dando, ou se deixaria levar pelos “e se” mais uma vez?

Bom, Lica já lhe dissera em claro e bom som que estava em suas mãos. Era uma declaração, não era? E ela, Samantha, já havia se colocado nas mãos dela sem nem perceber e sem nem titubear. Com toda a certeza havia uma troca ali. Se permitiria leva-la a um outro nível?

(...)

- Eu não acredito, Heloísa! – Keyla deixou um tapa muito do bem dado na cabeça da amiga – A prova é daqui a dois dias. Dois! E você sequer se preocupou em abrir aquele ovo pra saber o que tem dentro?

- Eu esqueci! – não tinha justificativa para aquilo não – E eu sei o que tem dentro dele. Uma luz esquisita e gente berrando. Sério, aquele grito é de deixar um surdo.

- Será que há alguma mensagem oculta nos timbres que saem dele? Cada nota representando uma sílaba? – Benê sugeriu.

- O que tem lá eu não sei, Benê. Mas sei bem o que vai acontecer: a Lica vai passar vergonha na próxima tarefa e se pá, morrer. E vai ser uma morte vergonhosa de qualquer jeito – Ellen.

- Parou? – Lica se revoltou – Eu vou dar um jeito, beleza? Vou passar o dia inteiro chocando aquele ovo e aí vocês vão ver a vergonha que eu vou passar. Eu só preciso... – se levantou vasculhando seus pertences – Encontrar ele primeiro.

Estava perdida. Lascada, morta e mais um pouco, mas ainda lhe custava admitir aquilo. O desespero foi tanto que entre os intervalos das aulas, Lica simplesmente sumia para se trancar na sala precisa abrindo e fechando aquele maldito ovo na tentativa de conseguir entender que mensagem oculta ele bradava aos quatro cantos. Terminou quase surda e, adivinhem só: sem progredir um passo!

Ellen tinha razão: passaria vergonha. E com sorte, talvez sua morte não fosse tão dolorosa assim. Teria só que se concentrar e torcer para aquele zumbido em seu ouvido causado pelos gritos sofridos do ovo não se tornar algo tão grave. O resultado: perdera o jantar, não encontrara com Samantha e a conversa que elas teriam que ter foi mais uma vez adiada.

E quem visse Lica Gutierrez pelos corredores do Grupo no dia que antecedeu a prova deveria ganhar um prêmio. A menina simplesmente sumiu do radar, faltou quase todas as aulas para tentar desvendar o mistério do ovo de ouro, mas não conseguia ir adiante. Não conseguiu nada além de uma bela dor de ouvido. Ao meio dia, o desespero começou a bater. Lica chegou a arremessar o ovo do outro lado na parede, ele abriu, começou a berrar descontrolado e tudo que ela conseguiu foi se irritar ainda mais. Chutou a coisa, mas nada parecia adiantar.

Frustrada, se sentindo um lixo e à beira da morte, Lica deixou a Sala Precisa no final da tarde para procurar o que comer. Mal tinha se alimentado durante os últimos dias. Encontrou com Samantha na porta do Salão Principal guiando alguns alunos. Correu até lá, mas a massa de estudantes foi tanta que a levou na direção contrária e a menina sumiu no meio de tantas cabeças. Hora do jantar era sempre assim.

Bufando e derrotada, Lica seguiu em sentido oposto, cabisbaixa. Se jogou em um banco na parte externa do saguão e bufou em desalento. Quis abrir o ovo, mas ele gritaria desesperado e acabaria atraindo olhares. Deixou o objeto de lado e se deitou no banco de concreto para observar a claridade ceder lugar ao manto escuro aveludado da noite. No dia seguinte, naquele exato momento, poderia estar morta.

- Porque merda pouca é bobagem – disse mais para si do que para ser ouvida. Virou a cabeça para encontrar com o busto de Maurício Gutierrez lá no centro do gramado – Sua neta é um fracasso, seu Maurício. O senhor decididamente merecia uma coisa melhor.

Lica fechou os olhos e se pôs a se concentrar no som ambiente. Ele era permeado por vozes que iam ficando cada vez mais silenciosas, silenciosas... a brisa da noite sapecando seu rosto com um vento gelado e....

- Lica! – a voz de Tina soou do nada em um tom tão alto que fez Lica se sobressaltar e cair do banco – Ai, graças a Merlim a gente te encontrou.

A menina correu até lá acompanhada de Ellen, Keyla e Benê. Assustada, Heloisa se ajoelhou, recolhendo seus pertences que haviam caído junto, e o ovo de ouro do chão. Checou se seus fundos estavam sujos.

- Que merda, Tina! Quer matar quem de susto?

- Cala a boca e me escuta – a menina tomou fôlego – A gente descobriu como te ajudar com o ovo.

Ok, o universo, ele adora pregar peças, mas naquele momento Lica não estava a fim de ser feita de palhaça.

- É alguma pegadinha?

- Não, sua tonta! – Keyla deixou um tapa na cabeça dela. Ela amava fazer aquilo. Passatempo preferido – Ouve a Tina.

- Seguinte – a amiga tomou ar – Eu estava passando pelo corredor do quinto andar pra encontrar o Anderson lá na torre, quando ouvi um som esquisito vindo do banheiro dos monitores. Era tipo uma voz, sabe? Um canto. Aí eu me aproximei, fiquei de espreita e de repente no final da canção, a voz silenciou do nada. Aí eu ouvi passos, corri pra me esconder e adivinha quem saiu de lá?

- Sei lá... O Papai Noel montado num unicórnio? – Lica debochou – Fala logo, Tina!

- O Dogão! O campeão da Escola da Aclimação. Ele saiu do banheiro dos monitores levando o ovo! O ovo de ouro estava com ele, o que me leva a crer que....

- Que...

- A Lica é tapada, gente. Não faz pergunta difícil – Ellen atalhou – A canção que a Tina ouviu era o ovo, sua tonta! – Lica ganhou outro tapa na cabeça. Terminaria com enxaqueca – Provavelmente o Dogão arrumou um jeito do grito do ovo fazer sentido e a coisa funcionou lá no banheiro dos monitores.

- Tem alguma coisa lá que faz o ovo falar – Benê concluiu por fim – O que nos leva a crer que é lá que você tem que ir para tentar desvendar o que esses gritos desesperados dizem. A mensagem oculta.

- O banheiro dos monitores no quinto andar? – Lica repetiu – Eu amo vocês! Sério, vocês são os amores da minha vida! – deixou um beijo em cada bochecha, recolheu suas coisas e saiu correndo desesperada pelo corredor.

- De nada, Heloísa! Sua ingrata! – Tina gritou antes dela virar no corredor. Ainda viu Lica fazendo um coraçãozinho com as mãos antes de sumir de vista – Tomara que dê certo, porque do contrário, a gente vai ter um enterro pra ir amanhã.

(...)

O banheiro dos monitores era um espaço de privilégio e segregação dentro do Grupo. Como o próprio nome já dizia, ele era reservado só e somente só aos monitores das casas. Cada uma tinha dois: um aluno e uma aluna. E havia o chefe dos monitores, que recebia as ordens diretamente da direção e que tratava diretamente com os diretores das quatro casas. Samantha era a chefe dos monitores do Grupo. E como tal, tinha livre acesso a praticamente todas as dependências da escola, inclusive ao banheiro reservado.

A porta de entrada do banheiro dos monitores ficava à esquerda no corredor do quinto andar, imediatamente após a estátua de Bóris, o Pasmo, e que nada tinha a ver com o atual diretor do Grupo. Era um bruxo de um período desconhecido da escola. A porta de carvalho, suntuosa e destoante do restante das construções em pedra do castelo, tinha uma senha para entrar. Isso explicava Lica estar ali parada feito um dois de paus encarando o brasão da escola estampado na porta do aposento. Esquecera daquele pequeno detalhe.

Olhou para um lado... para o outro, mas não havia ninguém por ali que pudesse ajudá-la. Pensou em ir atrás de Samantha, mas como estavam no horário do jantar, além de atrapalhar a refeição dela, ainda teria que dar explicações sobre seu sumiço o dia inteiro e a necessidade de entrar em um espaço que não lhe era autorizado. Fora ter que admitir seu fracasso quanto à segunda tarefa do torneio.

Arriou os ombros e se recostou na parede ali do outro lado se perguntando como diabos Dogão conseguira a senha do banheiro dos monitores.

- Esqueceu as chaves, Gutierrez?

Ah, tinha que ser. A figura esbranquiçada e ligeiramente translúcida apareceu do nada flutuando a alguns centímetros do chão, rindo faceira na direção de Lica. É que além de ser povoada por seres humanos e uma infinidade de outras criaturas mágicas, o Grupo também tinha entre seus habitantes fantasmas. Cada Casa tinha o seu, como se fossem espécies de mascotes: o senhor Nicholas Quase-Sem-Cabeça, na Grifinória. O Frei Gorducho, na Lufa-Lufa, a Dama Cinzenta, na Corvinal e o Barão Sangrento, na Sonserina. E entre os fantasmas, haviam ainda aqueles que só estavam ali vagando pelo Grupo porque deram a má sorte de perderem a vida lá dentro.

Era esse o caso da Murta Que Geme. Aluna da Corvinal, a menina tinha apenas quinze anos quando fora vítima de uma criatura monstruosa que andara assustando os moradores do castelo uns cinquenta anos atrás. Ela morrera, segundo corriam os boatos, no banheiro das meninas no terceiro andar. O resultado: Murta passava a eternidade vagando pelos canos do Grupo. De banheiro em banheiro, na cozinha... você sempre tinha chance de ser surpreendida por ela em alguns momentos privados e, em alguns casos, constrangedores.

Ela atravessou a porta do banheiro dos monitores e se aproximou de Lica. Uma Heloísa jogada de qualquer jeito na parede oposta do corredor, a mochila caída no chão e o ovo de ouro muito bem guardado nela. Não era a primeira vez que se encontravam: a Gutierrez já fora surpreendida por Murta no banho em seu segundo ano e ao que parecia, a criatura tinha desenvolvido alguma espécie esquisita de paixonite por ela.

- Ficou trancada do lado de fora? – Murta se aproximou sorrindo sugestiva e se recostou ombro a ombro em Lica. Era esquisito sentir uma corrente fria lhe tocar o corpo naquela região enquanto um ser transparente flutuava ao seu lado.

- Na verdade eu só queria entrar. Tenho um assunto pra resolver aí dentro.

- No banheiro dos monitores? – a fantasma soltou um gemido agastado – E o que tem de tão interessante aí dentro? Esse banheiro nunca foi tão movimentado.

- Mais gente esteve aqui? – Lica inquiriu desanimada – Ótimo saber que estou ficando pra trás.

- O último que veio aqui era um rapaz esquisito... nunca o tinha visto pelo Grupo.... Mal educado aquele garoto. Odiei ele. Acredita que ele se assustou quando eu apareci na banheira e jogou um ovo em mim? A coisa começou a berrar e eu tive que sair pelo ralo! Foi horrível – e mais gemidos.

- Sério? Era o Dogão. Ele é meio... marrento mesmo – e então algo lhe passou pela mente – Murta... assim... você vive pelos canos... aposto que já viu gente entrando e saindo daqui o tempo todo... se eu te perguntar qual a senha dos monitores, você....

- Eu sei – a fantasma riu toda orgulhosa de si e se recostou em Lica – Toda hora algum monitor vem aqui... e eles sempre repetem a mesma senha. Ela muda de vez em quando, mas a nova é... espera! – Lica já estava em expectativa olhando para a boca de Murta. Exalou frustrada – O que você quer aí dentro?

- Eu tenho uma missão – achou por bem explicar com a verdade – Me enfiaram em um torneio em que toda tarefa testa nossos conhecimentos até a morte e eu preciso decifrar o que tem nesse ovo – mostrou o ovo de ouro. Murta arregalou os olhos – E parece que a coisa só funciona aqui. Você disse que viu o Dogão com um aqui dentro, não foi? Eu... eu só preciso fazer que nem ele fez pra poder passar viva pela prova de amanhã. Me ajuda, vai....

Murta rodopiou no ar, ponderou, gemeu horrores parecendo estar em um embate interno antes de finalmente desistir de lutar contra si mesma e abrir a boca.

- Eu só vou dizer porque é por você, Gutierrez... e eu adoro seu nariz – e toda faceira, a fantasma se aproximou e deixou um beijinho de vento gelado no nariz de Heloísa. Nariz esse que ela coçou e limpou depois – A senha é Eu Nunca Me Esqueço.

Lica a repetiu querendo rir da ironia da frase. Imediatamente o trinco da porta estalou e ela se abriu alguns centímetros.

- Valeu, Murta! Te devo essa! – ela recolheu sua mochila e passou por ali, tratando de trancar a porta novamente. Rezou para que os monitores estivessem ocupados demais com o jantar e não subissem até lá.

Ao passar pela porta, Lica estacou. A visão do local era de espantar. Havia uma grande banheira que mais parecia uma piscina e dezenas de torneiras douradas com entalhes em alto relevo por onde saía água pura com aromas deliciosos, diversos tipos de sabão e espumas coloridas. As torneiras eram dispostas como um gigante pedestal formando uma espécie de labirinto. O gigante vitral no fundo do banheiro dava ao local uma aparência mágica e aconchegante por onde batia a luz natural vinda lá de fora. O vitral tinha a imagem de uma bela sereia que penteava o cabelo distraidamente, vez ou outra lançando um olhar curioso a quem usava os aposentos.

O chão era de marfim, ao contrário do restante do castelo todo construído em pedras e concreto. O assoalho parecia novo de tão branco, brilhando de acordo com a iluminação do banheiro: de dia, a luz do sol entrando pelo vitral e, de noite, a luz das velas bruxuleando no lustre gigantesco pendurado ao centro do aposento. Do outro lado, haviam quatro pias de mármore branco alvíssimo, um espelho que ia de uma ponta a outra da parede, quatro boxes e sete armários, cada um para um monitor, identificados pelas iniciais deles.

Ela teria ficado ali, embasbacada, observando o quão injusto era alguns poucos terem uma arquitetura daquela, enquanto a maioria da escola tinha que usar banheiros comuns com pias comuns e coisas comuns. Nenhuma torneirinha dourada os reles mortais do Grupo tinham. Presa em seus devaneios, ela se assustou quando Murta brotou ao seu lado.

- Esse banheiro é maior do que a casa que eu vivia. É sim.... – e saiu gemendo. Lica relanceou o armário com um “S. N. Lambertini – Sonserina” gravado em dourado e letras cursivas na parede oposta. De longe o maior armário, afinal... chefe dos monitores também tinha seus privilégios.

Largando de mão os detalhes, Lica se pôs a fazer o que realmente interessava. Verificou a tranca da porta, abriu a mochila, tirou o ovo de outro de dentro, o pousou cuidadosamente sobre a pia e... se viu sem saber como prosseguir. Molhar na torneira? Ela tentou e a coisa berrou desesperada quando ela o abriu. Fechou-o com um baque surdo. Molhou-o na água da banheira, abriu-o em seguida: outro berro escandaloso.

- Merda!

- Você devia fazer que nem o menino esquisito fez. Banhar com ele e abrir dentro da água – Murta sugeriu.

Então era isso? Abrir o ovo submerso na água? Como não pensara naquilo antes? E só então Lica foi se dar conta de que a superfície daquela coisa era repleta de desenhos e arabescos em alto relevo exatamente iguais aos que via nas torneiras do banheiro e no vitral. Arte sereiana.

Apressada, tirou a capa do uniforme e já ia tirando a gravata também quando percebeu Murta ali lhe olhando com olhos atentos e gulosos. Eca!

- Hã... Murta... sem querer ser mal educada, mas já sendo... você podia sair? Eu não vou me sentir à vontade de tomar banho aqui com alguém olhando, sabe?

A fantasma gemeu em descontentamento.

- O menino esquisito não se importou.

E Lica duvidava que ele soubesse da existência de um fantasma ali.

- Eu sei, mas é que... eu sou tímida – foi o que arriscou – Sério, eu preciso de privacidade. Uns minutinhos, vai?

Reclamando, bodejando e gemendo, Murta gritou um “aaaaah!”, fez um giro de 360 graus no ar e sumiu por um vaso sanitário espirrando água para os lados. Lica fez uma careta e cuidou no que interessava. Se livrou da gravata, da camisa, jogou o cinto num canto qualquer, as calças, sapatos, meias... para terminar só de calcinha e sutiã entrando com cuidado na banheira barra piscina dos monitores que naquele momento tinha uma espuma cheirosa e espessa na superfície.

A água estava gelada, mas pareceu esquentar automaticamente à medida que ela imergia com o corpo. Cuidadosamente, Lica pegou o ovo, respirou fundo e mergulhou levando-o consigo. Abriu-o e o que ouviu não era nada parecido com gritos desesperados. Se assemelhava mais a uma canção.

 

Onde ouvir da nossa voz o tom

Na superfície não há som

Durante uma hora deve buscar

E o que quer vai encontrar

 

Lica emergiu sacudindo a cabeça para se livrar do excesso de água e procurando ar. Era uma canção sim e ela tinha quase certeza de que eram sereianos cantando. Agora tudo fazia sentido. Era um enigma que ela precisaria decifrar para descobrir do que se tratava a segunda tarefa. E tinha menos de vinte e quatro horas para aquilo. Tomando ar, ela iria mergulhar de novo. Só não o fez, porque ouviu barulho da porta se movendo e por ela passar alguém. Tentou se apressar e recolher suas roupas em um salto na beira da banheira, mas sem muito sucesso.

A figura cacheada estacou com a porta se fechando lá atrás ao perceber que não estava sozinha. Samantha trajava as vestes da escola, o bracelete de cobra reluzindo no braço direito.

- Aaaaaaah! – gritou do susto.

Lica, pega de surpresa, gritou também. Puxou o ovo para si como se se cobrisse com ele.

- Lica? – a Lambertini entoou com a voz esganiçada – O que você está fazendo aqui?

- Eu que pergunto – pior, impossível – Custava ter batido pra saber se estava ocupado?

Samantha mudou o peso de perna e arqueou uma sobrancelha como quem diz “é sério isso?”.

- Esse banheiro é dos monitores, Heloísa. Eu devia estar aqui, não você.

- Pois é, que coincidência... – e só piorava. Lica puxou espuma para mais perto na tentativa de evitar que Samantha visse demais. Mas ela mesma pareceu não se importar.

- Responde. Ou eu tiro duzentos pontos da sua casa sem nem pensar – ela cruzou os braços em desafio e dando-se por vencida, Lica resolveu ceder. Exalou pesado.

- Eu vim tentar decifrar isso – mostrou o ovo dourado em mãos – A prova é amanhã e....

- E você ainda não tinha feito isso? – Samantha se alarmou – Pelas barbas de Merlim, Lica! Você ia chegar na segunda tarefa aleatória sem nem saber o que tinha que fazer? O que você tem na cabeça? Cocô de hipogrifo?

- Pisa mais que está pouco – Lica se ofendeu e se encolheu. Samantha suspirou exausta – Essa coisa só gritava no meu ouvido, eu larguei de mão por um tempo pelo bem da minha saúde.

- E o que meu banheiro tem a ver com isso?

- A Tina viu o Dogão saindo daqui com o ovo e me sugeriu vir também.

- E...?

- Eu abri o ovo na água – Lica explicou – Submerso ele não grita, canta uma canção. Uma poesia, sei lá. Está me mandando procurar alguma coisa.

Samantha caminhou até ela e se agachou. O perfume que ela usava invadiu e inebriou os sentidos de Heloísa.

- Me dá – estendeu a mão para que Lica lhe passasse o ovo. Samantha o analisou atentamente passando os dedos pelos desenhos em alto relevo – É arte sereiana.

- Tem sereianos aqui no Grupo?

- No Lago Negro – Samantha explicou – E o encanamento desse banheiro é ligado com o lago. Faz sentido ser aqui – ela mordeu o lábio e parecia pensar – O que exatamente essa coisa diz?

Lica se pôs a repetir a canção. Teve que mergulhar mais umas duas vezes para poder ouvir e decorar. A água estava começando a ficar fria e a espuma a se dissolver.

- Na superfície não há som.... Definitivamente no Lago Negro. É lá que vai ser a segunda tarefa. Agora o que podem tirar de você pra ‘cê ter que ir procurar lá?

- Algo que eu ame muito, não sei. Que vai me fazer falta.

- Que seria....

- Sei lá, Samantha. Minha vassoura? Eu só consigo pensar nela. O que não faz muito sentido, é só eu comprar outra.

A Lambertini revirou os olhos e se pôs de pé, devolvendo o ovo para Lica.

- Eu posso fazer um feitiço de convocação pra coisa que me tirarem voltar pra mim.

- E vai convocar o quê? O lago inteiro até descobrir o que foi que te tomaram? – Samantha estava de pé diante do espelho tirando o bracelete de cobra. Em seguida afrouxou a gravata e se livrou dela. Tirou a capa e pendurou em um cabide. Lica arregalou os olhos. Ela estava... – Repete pra mim de novo.

- E-eu... é... a-a música, claro – a Gutierrez engoliu em seco, pigarreou e se pôs a recitar novamente os versos que havia ouvido. Samantha agora abria botão por botão da camisa do uniforme. Lica pigarreou ao final e não se furtou – O que você está fazendo?

- Indo tomar banho? – Samantha respondeu o óbvio e então deslizou a camisa social pelos braços revelando as costas nuas exceto pelo fecho de um sutiã verde escuro rendado. Lica engoliu em seco novamente à visão dela, o corpo se aquecendo automaticamente. Começou a respirar acelerado.

E então Samantha se dirigiu para o cós da calça onde abriu o botão e baixou o zíper. Deslizou a peça pelas pernas e quando se agachou.... Lica começou a suar embora estivesse dentro de uma banheira barra piscina com água até o peito. E aí a Lambertini se virou.

Usava só e somente só uma calcinha da mesma cor do sutiã. A barriga não era chapada, mas muito bem desenhada e definida, lisinha a ponto de Lica sentir um ímpeto de tocar e arrastar a mão por ali. Os seios firmes e fartos bem seguros na peça rendada e as pernas... Merlim do céu, as pernas de Samantha eram a oitava maravilha do mundo. Grossas. Grossíssimas. Bem torneadas e lindas. Lica faltou sair da banheira e ir rastejando até ela para se agarrar ali e não soltar mais.

- Não me olha assim, vai – foi tirada do torpor pela voz de Samantha. Sacudiu a cabeça para voltar a si – Você está no meu banheiro e eu preciso tomar banho.

Sem mais, Samantha foi até a beirada da banheira, se sentou e pulou para dentro, mergulhando. Emergiu diante de Lica, os cabelos molhados caindo languidamente pelas costas, minúsculas gotículas de água pingando do queixo para o colo e descendo em direção ao vale dos seios... a Gutierrez fixou o olhar nelas e involuntariamente umedeceu os lábios. Sua boca se encheu de água que quase babou.

- Eu precisava vir checar se o que a Tina disse fazia sentido – Lica achou por bem se explicar – Você vai me dedurar, não vai? Por ter invadido o banheiro dos monitores.

- Eu vou pensar no seu caso – foi o que Samantha respondeu – Posso? – pediu o ovo, Lica o entregou e ela mergulhou com a coisa na mão. Repetiu o gesto umas duas vezes antes de decorar a canção por inteira – Definitivamente é o Lago Negro e definitivamente vão te tirar alguma coisa muito valiosa que você precisa recuperar.

- Ai, que ótimo! E como eu vou simplesmente respirar debaixo d’água por uma hora? Existe algum feitiço de transfiguração que me faça virar sei lá... um peixe?

- Uma piranha? – Samantha debochou com o humor ácido. Lica soltou um “ha-ha-ha” e fechou a cara – Desculpa... mas vai... ri um pouco. No meio da desgraça, é melhor que chorar. E isso com certeza é uma desgraça.

Ela simplesmente soltou isso no ar, devolveu o ovo e se pôs a boiar pela banheira, o corpo esticado e parecendo reluzir à luz que vinha da lua e entrava pelo vitral. Lica largou o ovo de mão no parapeito e foi até lá. Parou ao lado dela, que demorou a sentir sua presença. Mas quando o fez, foi no susto. Samantha quase se afogou do tanto de água que engoliu e que entrou por seu nariz.

- Caralho, Lica! Avisa!

- Desculpa. Eu... você é linda, Sammy – e lá estava o tom entregue, trouxa e completamente jogado aos pés de Samantha que Lica sempre usava quando estava com ela.

- Eu sei, tá? – claro que ela sabia. E vendo o olhar bobo da menina sobre si.... – Que foi?

- Não se faz de desentendida. A gente precisa conversar e eu queria que fosse logo, não aguento mais esperar.

Samantha suspirou e contornou Heloísa, nadando para o outro lado. Ela a acompanhou.

- Eu te esperei no jantar. E durante o dia inteiro, mas você sumiu, então eu achei melhor te deixar na sua.

- Eu sei, me desculpa. Eu estava às voltas com esse troço – apontou para o ovo – Todos os outros campeões já devem ter tudo planejado e eu meio que fiquei pra trás. Esqueci completamente de torneio com o baile e tudo que aconteceu. Eu... – Lica se aproximou de novo – Eu não consigo parar de pensar na gente, Samantha. E queria muito saber se você já tem uma resposta pra aquela minha pergunta. Você... você quer ser minha namorada?

Samantha respirou fundo e a encarou nos olhos. Eles eram tão lindos, tão escuros e tão acolhedores. Da pose de e líder nata, ela via em Heloísa só uma garota tentando se encontrar no meio do caos que vivia. Uma garota linda por fora, mas também por dentro. Que se importava com os outros, que se doava, que se doía quando via uma injustiça e que movia mundos e fundos para consertar o que quer que estivesse de errado. Se via um pouco nela também.

Diante da demora na resposta, Lica tentou mais uma vez. O coração martelava desesperado de encontro ao peito.

- Eu sei que não é o cenário ideal, mas eu não queria mais perder tempo. Eu... eu acho que nós funcionamos bem juntas e que pode dar certo, sabe? E se você quiser tentar também, eu prometo que vou ser melhor do que eu fui nos meus relacionamentos anteriores.

- Lica... – foi o que Samantha conseguiu proferir. Estava com medo, o peito inflando de êxtase pelo pedido que recebera, mas com receio de se jogar.

E Heloísa entendeu aquilo como uma negativa. Engoliu em seco e arriou os ombros. Riu sem humor, um riso que sequer chegou aos olhos.

Sabe aquela negativa que ela sequer tinha cogitado? Bom... talvez ter sido tão otimista quanto aos sentimentos que recebia de Samantha tivesse sido um erro. O que era uma pena. Não sabia como iria lidar com a presença dela ali o tempo todo do seu lado depois de levar um “não”. Sim, porque a ela já tinha ficado claro. Samantha hesitava porque buscava as palavras certas para lhe recusar.

E ser recusada é a pior coisa do mundo. Ser recusada por quem se ama então é cem vezes mais doloroso. Lica não queria e nem saberia lidar com essa dor. Não quando já se sentia total e completamente perdida.

Fez uma careta e se afastou. Samantha demorou demais a responder. Ela que não ficaria ali prolongando o momento. Deu um passo para trás e assentiu com a cabeça. Ao menos a ida até lá não tinha sido em vão. Sabia agora nas mãos do que ela morreria. E sendo sincera: encarar as profundezas do Lago Negro lhe era bem mais aprazível que ficar ali sob a mira hesitante dos olhos da menina que amava.


Notas Finais


Flautinha pra Lica! E aí? Samantha vai dar bola fora mesmo levada pelos medos ou vai se jogar?
Eu amo é que a Lica mesmo sem ter ideia de como vai sobreviver a uma hora no Lagro Negro ainda tá mais preocupada em pedir a Samantha em namoro kkkkkkk. Prioridade, né?
Eu nem vou me prolongar muito aqui, porque vocês são bons em teorias. Samantha diz sim ou não pra doida? kkkkkkk
Se ela disser não, capaz da Lica pedir por favor pra alguém jogar ela no lago só de vergonha kkkkkkkkkkk.

No mais, eu agradeço pela leitura e nos vemos no próximo capítulo!


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