1. Spirit Fanfics >
  2. Angels - Seulrene >
  3. 10:04 - Tempestade de arco-Íris

História Angels - Seulrene - 10:04 - Tempestade de arco-Íris


Escrita por: KimLeah04

Notas do Autor


*adivinhem quem ficou olhando pra lua e esqueceu que tinha de fazer revisão antes de postar? isso mesmo, euzinha🤡

🚨Alerta de capítulo ridiculamente grande à frente.

Capítulo 52 - 10:04 - Tempestade de arco-Íris


[Domingo, 26 de fevereiro.]

Quando Irene acordou, no domingo, ela se sentia uma pilha.

Imaginou que viveria altos e baixos, agora que habitava um corpo artificial, e estava certa. Haviam manhãs em que mal suportava abrir os olhos, porque suas retinas hipersensíveis queimavam e ardiam ao menor indício de luz entrando pelas frestas das persianas. Em compensação, tornaram-se quase naturais situações em que alguém na sala de controle precisava enviar-lhe um pequeno sinal mental, lembrando-a de agir mais como um ser humano quando em público.

À medida que se acostumava com o autômato e com as possibilidades de movimentos e gestos que poderia realizar com ele, sua tensão ao executar tarefas simples decaia. Em dias, estava tão bem adaptada a ele quando ao seu corpo original, que a abrigara por longos vinte e um anos uranianos.

Ajustes seguiam sendo feitos, obviamente. Ao final de cada dia, Yuta e Dami se esgueiravam por seu córtex cerebral, procurando aparentes falhas que pudessem ser corrigidas. Coordenação motora e reflexos iam sendo aprimorados, novos cenários e mapas acrescentados ao seu banco de dados. Sentia-se como um jogo de realidade aumentada, em constante processo de atualização. A diferença era que, ali, era jogadora e avatar. Um passo em falso de seu autômato poderia colocá-la em perigo real, com consequências palpáveis.

Ela tinha uma única vida disponível, e uma longa jornada pela frente.

Não saber o que poderia encontrar ao longo do caminho era um adicional que lhe causava um gosto ruim na boca. Diferentemente de suas missões para a Legião, Irene não tinha como saber o que a aguardava. Batalhas eram, até certo ponto, previsíveis. Depois de estudar o bastante sobre elas, e arriscar a pele em outras tantas, tinha experiência o bastante para saber reconhecer o momento de recuar, e a importância de pensar antes de tomar decisões.

Por isso, tentou não ficar paranóica quando todas as suas movimentações tiveram de cessar, abruptamente.

Também esperava que isso acontecesse, em determinado momento do caminho. Pausas nas atividades de campo serviam para que estratégias mais profundas fossem traçadas, perspectivas trabalhadas e expandidas. Só não imaginou que isso aconteceria tão cedo.

Uma semana inteira se passou, sem que tivesse um mísero contato com Yuta. Ele simplesmente desapareceu, sem deixar nenhum rastro em sua ponte de comunicação. Lee ainda aparecia, mas com uma frequência cada vez menor. Fazia perguntas rápidas relacionadas ao seu bem estar, e tinha a sensação de que se retirava antes que pudesse concluir suas respostas.

Para piorar tudo, Hermes também tinha vaporizado da superfície terrena nas últimas quarenta e oito horas. Não lhe disse aonde ia e o que ia fazer, muito menos quando voltava. Estava sozinha, como não estivera desde que havia chego àquele planeta. Se havia alguma coisa em andamento do outro lado, não tinha como saber.

Era em momentos como esse que odiava o fato de a conexão ser unilateral. Eles poderiam ter acesso à sua memória a qualquer momento do dia, acompanhar sua rotina e ver cada milímetro percorrido por ela, mas Irene estava incapacitada de fazer o mesmo. Tinha cogitado que a Ponte Reversa pudesse promover algum avanço nesse quesito, mas sua necessidade de um comunicado prévio ao Herdeiro antes de adentrá-la colocava uma barreira burocrática que a mantinha afastada de seu objetivo.

Se por um lado a mente vazia de outras vozes que não a sua permitia que tivesse mais privacidade, por outro permitia que pensamentos indesejados tivessem espaço para se formar.

A notícia da partida iminente de Jackson acendeu uma luz vermelha sobre a possibilidade de que houvesse mais ali, do que eles estavam vendo.

- Com certeza, não é uma viagem à passeio. - comentara Wooyoung, analisando as imagens através de seus pensamentos. - Se ele comprou uma passagem só de ida, é porque está planejando ficar por lá. Uma mudança, talvez?

- Verifiquei as imagens do condomínio, para atestar essa possibilidade. As câmeras da portaria e dos corredores não registraram nenhuma grande movimentação no apartamento. - Dami observou. - Apenas Solar, entrando e saindo em horários que combinam com sua alegação de trabalhar como dançarina em uma boate. Sai às onze, volta em torno das seis... passa a maior parte no interior, saindo para fazer compras e coisas assim.

Irene cruzou os braços.

- E quanto ao Jackson?

- Poucos registros. Ele voltou para casa depois da festa, na noite em que Jongin desapareceu, e só voltou a sair três dias depois. A última movimentação notável foi hoje à noite, quando ele saiu em direção ao aeroporto...

- Para comprar a passagem, como nas imagens das câmeras de segurança. - completou Irene. - Mas por que ele se daria ao trabalho de ir até lá para comprar uma passagem, se poderia fazer isso pela internet?

- Tá uma coisa que eu gostaria de saber. - confessou a Lee. - Quase não registros de Jackson no caminho até o aeroporto. A câmera de um caixa eletrônico o pegou, entrando em um táxi na esquina do condomínio, mas depois disso não nada de relevante. Há vários pontos cegos no sistema de vigilância do estacionamento, muitos carros e bagagem sendo transportada, encobrindo o vídeo. Se ele se encontrou com alguém, não como saber.

Irene não queria forçar os fatos a se encaixarem em suas próprias conclusões, mas parecia estranho que Jackson deixasse o país naquele momento. Justo agora, que seu nome transitava da pista de suspeitos para a de inocentes.

- Devemos pensar na possibilidade de isso ser um evento à parte, que em nada tem a ver com a nossa investigação. Mas não devemos descartar as chances de Jackson estar fugindo de alguma coisa... ou de alguém. - Yuta ecoou seus pensamentos, em seu tom ameno rotineiro. - Para quando está agendado o vôo do senhor Wang, Dami?

Dois de maio. Nesse dia, aproximadamente naquele horário, uma das peças mais dúbias de seu quebra-cabeça estaria voando para o outro lado do Pacífico.

Para a sua frustração, não havia muito o que fazer naquele aspecto. Dami havia se comprometido a manter um olho sobre a movimentação de Jackson naquele período e informá-los se um novo fato surgisse. Embora o timing da viagem fosse algo a ser levado em conta, não haviam mais evidências de que Wang pudesse estar ligado à sua investigação. Mesmo a decisão de seguir monitorando-o enquanto estivesse em território sul coreano era arriscada, e passível de resultar em nada.

O que Irene realmente queria era ir à campo, encontrar Jackson e confrontá-lo, mas isso estava totalmente fora das autorizações que recebera do Olimpo. Fora enviada à Terra para procurar pela Caixa de Pandora, e graças à situações imprevistas na época de sua partida, somara-se a esse objetivo a procura por Jongin. Não podia fracionar ainda mais seu tempo, investigando cada humano que entrasse e saísse de seu raio de atuação, por mais tentador que esse pensamento pudesse parecer.

Precisava se lembrar de tempos em tempos que não tinha autonomia para decidir o próximo passo a ser tomado. Estava sob o comando do Magnum, e querendo ou não precisava aguardar por novas determinações. Havia uma lista de prioridades a seguir, e no topo dela estava a visita à Underworld.

Tentou trabalhar sua mente para aquilo que considerava o ato mais ousado em toda a sua campanha, até aqui. Sabia do histórico da região com atividade sobrenatural, e do quão difícil seria transitar em meio à humanos e demônios sem levantar suspeitas, enquanto buscava por alguém que pudesse dar respostas às suas perguntas. Irene respirou fundo, pelos dias que se seguiram, reunindo energia para esse momento.

O grande problema foi que, para lá de uma semana depois, ela estava tão elétrica que não conseguia se manter parada.

Ao que parecia, sua rotina de meditações a havia deixado com uma carga extra de adrenalina, que agora se manifestava das mais diversas formas. Sua pele criptava de eletricidade. Suas horas de sono vinham recaindo consideravelmente em razão da ansiedade e ela deu um choque de estática em si mesma por acidente enquanto tentava calçar suas meias, por volta do quinto dia.

No domingo, Irene sentia-se tão cheia de disposição que lhe doía não ter nada para fazer. No Ginasium, era raro se ver entediada, porque sempre haviam milhões de tarefas a serem realizadas. Desde polir armamento à lavar as arquibancadas, escovar os cavalos nas baias e martelar ferraduras na forja anexa ao prédio principal. E as Arenas ficavam abertas 24 horas por dia, sete dias por semana, todas as semanas do ano.

Sentia falta dos treinos, do cansaço muscular, da areia grudando-se ao suor do corpo e aos fios de seu cabelo, dos sons estridentes que as lâminas faziam ao entrar em contato umas com as outras. Sentia falta de casa, como nunca havia pensado que poderia sentir.

A agonia em seu peito crescia e crescia, e se tornou insuportável. O teto acima de sua cabeça girava, em sintonia com o enjoo em seu estômago. Não conseguia mais ficar parada.

Saltou da cama num pulo, suas mãos se atrapalhando com as portas do armário e com os cabides. Não soube o que procurava, até que as peças surgiram diante de seus olhos. Que os deuses abençoassem Dami por, entre tanta seda e cetim, colocar algumas peças para academia. Duvidava muito que os vestidos e blusas de marca fossem sobreviver ao que estava prestes a fazer.

Passou a blusa de malha pela cabeça, sem se importar com o caos que isso fazia ao seu cabelo. Tropeçou nos próprios pés enquanto ajeitava a calça de corrida, cambaleando num pé só para fora do cômodo.

Limpar a sala foi um desafio maior, e exigiu uma paciência que àquela altura não possuía mais. Pareceu-lhe que se passaram horas, até que conseguisse um espaço minimamente decente para começar, e outra eternidade escolhendo armas que pudesse manejar dentro dele.

Teve a certeza de que valeu à pena, quando o primeiro golpe de espada cortou o ar.

Seu coração falhou uma batida, a respiração parando em sua garganta quando tornou a repetir o movimento, mais energicamente. Sorriu como uma pateta, girando sobre as pontas dos pés em uma sequência de execução mais fina. Sua pele nua deslizou pelo piso de madeira, com mais suavidade do que o faria no chão de terra batida. Não era a mesma coisa que seu treino habitual, mas era muito melhor do que nada.

Em questão de minutos, tinha se soltado completamente. Percorreu a sala de olhos fechados, usando seus outros sentidos para se localizar. Aprendeu a dominar o espaço, calculando cada investida no ar de modo que não aceitasse a mobília ou as paredes, interrompendo suas passadas antes que fosse dar de cara com alguma porta ou janela.

Atacou, recuou, saltou, girou e deu cambalhotas enquanto se esquivava de inimigos imaginários. Trocou a espada por uma lança, e esta por facas e por armamentos menores. Ouvia a voz de seus instrutores de combate em seus ouvidos, os berros de Ares na Arena e as provocações de Kai sempre que errava, ignorando as primeiras pontadas de dor em seus músculos.

O cansaço começava a enviar sinais por seu corpo, mas decidiu que não ia parar.

Os olhos ametista do demônio que havia invadido seu quarto surgiram em seus pensamentos, fazendo-a trincar os dentes. Golpeou o ar com mais força, imaginando que cada investida arrancaria um pedaço do responsável por tudo aquilo. Uma estocada entre as costelas, perfurando o pulmão. Um golpe mais amplo deceparia a orelha, o ombro se tivesse precisão o bastante. Punho contra o rosto, a parte chata da lâmina contra as costas e o fio sobre os tendões dos joelhos. Imaginou seu oponente caído, imobilizado e incapacitado de fazer qualquer outra coisa, quando as mãos dela espremessem a vida para fora de seu corpo.

Era uma bela visão. Fez Irene sorrir, e se distrair o suficiente para não notar o momento em que sua porta se abriu.

- Pelos deuses!

Abriu os olhos num rompante, seu braço estacionando no ar a meio caminho de um golpe definitivo. Virou-se, adotando a posição defensiva por puro instinto. Mas era só Wooyoung, olhando horrorizado para a bagunça que era sua sala de estar naquele momento.

-  Santo pai, Zeus! Isso tá pior que o galpão de armazenamento da Amazon em dia de Black Friday. - resmungou, por sobre o bipe eletrônico da maçaneta. O deus fez uma careta, saltando seu sofá de dois lugares e se contorcendo entre a mesa de canto e a cômoda. - Até parece que a carruagem solar entrou desgovernada pela janela, com Faetonte e tudo.

Irene revirou os olhos, baixando a guarda.

- O que tá fazendo aqui? E não tínhamos combinado de você não arrombar a minha porta e entrar aqui quando eu não estou?

Hermes fechou a cara.

- Sim, nós tínhamos. - bufou. - Mas você não estava respondendo às minhas mensagens e não atendeu quando eu toquei a campainha. Achei que teria que levar seu cadáver de volta para o Olimpo.

Franziu o cenho. Campainha? Eu não escutei nada. Tinha se concentrado tanto em seu treino, que não percebeu que a chamava? Não fazia ideia de há quanto tempo estava treinando. O sol ia alto no céu, e não eram nem nove da manhã quando ela deixou o quarto.

- A que se deve tudo isso? O furacão Irene, ou a carruagem?

- Nenhum dos dois. Eu precisava de espaço para treinar e... - ergueu os braços. Wooyoung deslizou as mãos para dentro dos bolsos, circulando pelo cômodo.

- Entendo... quer dizer que você resolveu desafiar esse cara para um duelo? - ele bateu com a lateral do tênis na base de seu sofá. - Não me leve a mal, mas parece um pouco demais pra você. Olhe só pra elas! - apontou para as almofadas, caídas sobre o estofado. - São duronas. Letais, se quer a minha opinião sincera.

Seus lábios tremeram, enquanto ela lutava contra o sorriso que insistia em se formar em seus lábios. A ponta de sua espada lançou sombras sobre o piso conforme ela se movimentava, alternando o peso do corpo de uma perna para a outra.

- E o que você sugere que eu faça?

- Lute contra um oponente à sua altura. Alguém que não te dê tanto trabalho. Alguém como... - o deus colocou a mão sobre o peito, os olhos brilhando de um jeito estranho. - Eu.

Riu, mas sua risada cessou quando constatou a seriedade em seu semblante. Pigarreou, encarando-o com desconfiança.

- Está brincando. - era mais uma esperança do que uma afirmação. Esperou que Hermes sorrise. Que dissesse peguei você, e tirasse sarro dela, mas nada disso aconteceu.

Ele estava... sério. E isso era assustador.

- Não, não estou. Foi você mesma quem disse que partiria meus dentes. Na Torre, se lembra?

Irene assentiu, vagarosamente.

- Lembro. E lembro que disse que o faria se tentasse me beijar de novo.

Um sorriso malévolo surgiu no rosto dele. Deu um passo adiante.

- Bem, se esta é a sua única condição, creio que podemos entrar em um acordo muito rapidamente.

Impediu que avançasse mais em sua direção, erguendo a espada e pressionando a ponta contra seu peito, sobre o coração. O tecido de sua blusa afundou um pouco, mas ele não pareceu se abalar com a ameaça explícita. Suas íris douradas ainda brilhavam daquele jeito, e deixavam Irene cada vez mais incomodada.

- O que há com você? - franziu o cenho. - Sumiu por uma semana e agora...

- Por favor, Irene. - suspirou, arrastando a pronuncia de seu nome quase com impaciência. - Não faça perguntas complicadas... - pediu, piscando preguiçosamente. - Disse que teria sua chance contra mim, e quero que o faça agora. Posso não ser um Lannister, mas sempre pago minhas dúvidas.

Sua escolha de palavras deixou claro que não tinha opções. Recordava suas palavras na Torre, mas nunca as tinha levado à sério. No entanto, ali estava Wooyoung, praticamente ordenando que lutasse contra ele.

Engoliu a pouca saliva em sua boca, afastando a espada de seu corpo.

- Se quer tanto isso, assim será. Só não reclame se não gostar do resultado, depois.

- Perfeito. - o deus dançou para longe de sua lâmina. Puxou a mão esquerda de dentro do bolso, girando entre os dedos o pequeno cilindro de prata. - Para deixar as coisas mais interessantes. - sorriu, atirando-o para o outro da sala. Caiu sobre o carpete embolado, se perdendo entre suas dobras. - Nada de armas. Mãos nuas, como num combate tradicional. Lutamos até um dos dois se render. O que acha?

Irene arqueou uma sobrancelha.

- Sem truques? Nenhuma pegadinha ou trapaça?

Wooyoung deu de ombros.

- Não acho que precise trapacear para te vencer. - declarou, arrancando um riso baixo dela. Devolveu a espada ao arsenal, fechando o fundo falso na parede antes de se voltar para ele. Colocaram-se frente à frente, mas nenhum deles se moveu por um longo instante. - Faça as honras.

Os músculos das costas de Irene se retesaram. Com prazer.

Fazia muito tempo desde que tivera uma luta corpo à corpo. Elas eram menos comuns em sua rotina e treinos, tão focados em lâminas e manobras com formações. Serviam mais como um passatempo, algo que mal poderia ser contado como oficial. Era a diversão particular dos soldados da legião, em um fim de semana entediante e festins.

A brutalidade do combate com as mãos nuas liberava muito mais energia do que a dança de espadas, escudos e lâminas. E, claro, muito mais sangue. Mas não lhe pareceu que essa fosse a ocasião. Isso porque, durante boa parte da luta, eles mal se tocaram.

Tinha uma ideia boa até demais de contra quem estava indo. Wooyoung não apenas era muito mais experiente do que ela, como era ágil em uma escala absurda. Sua primeira investida nem chegou perto de atingi-lo, como não o fizeram os golpes seguintes. Quase não podia pensar em seu próximo ato, porque os contragolpes vinham na mesma velocidade.

Felizmente para ela, tinha trabalho suas defesas nas semanas antes de deixar Urano, então os movimentos estavam frescor em sua mente. Ainda assim, houveram instantes em que teve a sensação de que toda a instrução que recebera poderia não ser suficiente. Como quando o punho dele acertaram seu ombro, em uma sequência ofensiva

O choque de levar o primeiro golpe deixou-a atordoada por um instante. O suficiente para que ele se deslocasse, pressionando-a até que suas costas tocaram a cômoda.

- Sabe que pode desistir quando quiser, não sabe? - soprou, empurrando o antebraço contra sua garganta. Irene bufou.

- Nunca. - rosnou. E então chutou-o na coxa, empurrando-o para longe. Seu desequilíbrio durou apenas um momento, e logo eles se atracavam novamente.

Apesar da intensidade e da velocidade da troca de golpes, nenhuma gota de sangue ou icor foi derramada. O mais perto que chegaram de um ferimento mais sério aconteceu quando a Bae conseguiu acertar-lhe um novo chute, à altura do rosto. Wooyoung bloqueou o golpe com o antebraço, mas o impacto o lançou sobre a estante de livros. A estante chacoalhou e tremeu, mas permaneceu de pé, juntamente com os livros. 

O deus sorria, a despeito do hematoma que começava a se formar em sua testa.

- Parece que estamos ficando quentes, agora.

Irene franziu o cenho. Não importava o quão satisfatório era poder gastar toda a energia acumulada em seu corpo, precisava terminar com aquilo e logo. Por mais bem preparada que fosse, ainda havia um abismo muito grande entre o potencial de batalha de um anjo e um deus. Prolongar aquela disputa só tornaria as coisas mais difíceis para ela, a partir do momento em que sua adrenalina começasse a baixar.

Tinha de acelerar as coisas, e fazê-lo se render logo.

Pensando nisso, avançou. Apesar da vantagem que Wooyoung tinha sobre ela, não foi difícil identificar um padrão em seus movimentos. Uma esquiva para a esquerda, dois golpes com o braço direito. Direita, e esquerda de novo. Um chute não tão alto e uma tentativa de imobilização que falhou, porque pôde percebê-la em tempo.

Não demorou muito, visualizou uma brecha em sua defesa. Não seria um golpe fácil. Sabia-o, porque já tinha tentado algumas vezes, mas havia a possibilidade de dar certo. Comparado aos seus adversários do Ginasium, Hermes era pequeno e esguio. Viu uma oportunidade, e decidiu arriscar tudo em uma investida final.

Só que, no momento em que seu pé encontrou o encaixe certo na lateral do tronco alheio, o chão desapareceu sob sua outra perna. A surpresa fez o ar se esvair de seus pulmões, o que apenas tornou mais dolorosa sua queda. Mal teve tempo de processar a rasteira que tinha levado, antes que ele se movesse. Sentiu seu braço direito ser puxado para cima, e uma dor horrenda varreu seu antebraço uma fração de tempo depois.

Uma maldita chave. Hermes a tinha pego em uma droga de chave de braço.

A raiva bloqueou a dor por um milissegundo, mas ela voltou logo em seguida. Conseguia sentir a pele e os músculos se esticando, a articulação de seu cotovelo sendo levada ao limite. O próprio osso parecia gritar, enquanto se deslocava em seu ombro.

Tentou executar a manobra de escape, mas tudo o qu conseguiu foi mais dor. Parecia que ele estava arrancando seu braço, ao invés de apenas quebrá-lo.

- Se rende? - cantarolou, divertindo-se diante de sua agonia.

Irene o fuzilou com o olhar.

- Nunca.

Os tornozelos dele pressionaram suas costelas, empurrando seu tronco. Mordeu a língua para impedir a saída de qualquer ruído que denotasse dor. Não lhe daria o gostinho de ouvi-la gritar. Nem Ares tivera esse privilégio, e ele tinha feito coisas piores.

Faltava muito pouco, Irene sabia. Já quebrara braços antes, e não entendia porque ele não acabava logo com aquilo. Mas então ela percebeu.

Lutamos até um dos dois se render. Mesmo que lhe quebrasse um braço e uma perna, só acabaria quando ela se rendesse. Maldito deus trapaceiro.

Um novo pico de dor atingiu seu braço, espalhando-se como fogo por seu corpo.

Depois disso, uma mudança. Tão sutil, que não acreditou que estava de fato acontecendo. Em um instante, ele estivera prestes a quebrar seu braço, e no momento seguinte seu aperto se afrouxou. Quando ergueu os olhos para Wooyoung, percebeu que sua atenção não estava mais sobre ela. Olhava para outro lugar.

Encarava a janela, com o rosto torcido em terror.

- Nem fodendo... - ela o ouviu murmurar, sem de fato prestar atenção. Tudo o que conseguia pensar, era que precisava soltar seu braço.

Tomando vantagem de sua distração, tentou se soltar. Ele não resistiu, o que tornou as coisas mais fáceis do que esperava. O aperto férreo em seu braço desapareceu em um momento, e depois tudo o que ela precisou foi libertar seu punho. Porém, antes que pudesse fazer qualquer coisa além, Hermes saltou para longe dela.

- Mudança de planos. - anunciou, arfando. - Tenho que cair fora daqui.

Irene o observou mover-se nervosamente pela sala, atordoada. O deus se ajoelhou junto ao carpete, tateando em busca do caduceu. Praguejou ao encontrá-lo, devolvendo o pequeno cilindro de prata ao bolso e voltando a se colocar de pé.

- Você... aonde você está... - tentou perguntar, com a respiração ainda instável. Wooyoung se voltou para ela, a palidez de seu rosto fazendo o machucado em sua testa parecer pior.

- Sem tempo para explicações. Eu. Preciso. Cair. Fora. - repetiu, falando cada palavra como se fosse uma frase completa. - Até mais ver, Bae.

Forçou passagem entre seus móveis, em direção à porta. Tinha a mão sobre a maçaneta, quando a campainha soou. Hermes se retraiu como se tivesse levado um choque, recuando até que suas costas tocaram a parede. Teria ido para ainda mais longe, se pudesse, mas a nova disposição dos móveis de Irene o mantinham preso ali.

Fechou os olhos, seus lábios se movendo sem som. Drogadrogadrogadrogadroga...

Seu olhar foi do deus para a porta, e então para a janela que tinha encarado com tanto horror nos olhos instantes antes.Ergueu-se, grunhindo pela dor no braço. Arrastou os pés até as cortinas, erguendo a mão esquerda e afastando as metades um pouco mais. Pela pequena brecha, viu aquilo que lhe causara tanto pânico.

Um arco-íris, estendendo-se de um lado a outro no céu azul.

Uma voz se ergueu do outro lado da porta.

- Entregas Expressas Íris.

O pânico triplicou nos olhos de Wooyoung. Ele se afastou da parede sem uma única palavra, rolando por cima do braço do estofado e aterrissando com um baque surdo no chão. Não havia tempo para tentar processar o que estava em andamento. A campainha ainda soava, cada vez mais insistente.

Irene se pôs em marcha, à passos duros e rápidos, passando pelo deus encolhido ao pé de seu sofá no caminho. Hermes lhe fez um gesto pedindo silêncio, parecendo à beira de um colapso nervoso. Inspirou fundo, tentando suavizar ao máximo sua expressão antes de destravar a maçaneta.

Esperava encontrar qualquer do lado de fora. Um monstro de dez cabeças, uma horda de seres malignos com olhos ardendo em sede de sangue divino, ou apenas um dos vizinhos vindo reclamar do barulho. Qualquer coisa, mesmo.

Menos uma garota de um metro e sessenta dois, de cabelo multicolorido e o uniforme azul dos Correios.

- Entregas Expressas Íris. Fazendo a ponte entre você e os seus desejos. - a moça com roupa de entregadora recitou. Levava uma prancheta em mãos, a qual verificou rapidamente. - Eu tenho uma entrega para... Bae Irene.

Irene piscou.

- Ahn, desculpe...

- Íris. - interrompeu a garota, apontando com o polegar para o crachá preso com um jacaré no bolso de sua camiseta. Íris: deusa do arco-íris, das cores e mensageira dos deuses.

- Irene sou eu. - murmurou. Sentia o olhar da deusa sobre si, e ao encará-la de volta percebeu um detalhe perturbador em sua figura etérea. É que aquilo que havia de maior abundância em sua figura, faltavam em seus olhos. Cor. Os olhos de Íris eram completamente brancos. - D-disse... disse que tem uma entrega para mim.

A deusa abriu um sorriso, tão grande que parecia rasgar suas bochechas. Se percebeu seu calafrio, Irene nunca soube.

- Ah, sim. Uma entrega especial, para um pacote especial. - Íris remexeu em sua grande bolsa de carteiro, também azul. Houve um farfalhar de papel contra papel, metais e outros ruídos que não teve certeza do que eram. Sons estranhos, como o ruflar das asas de um pássaro e o sibilar de serpentes. - Isso é tão empolgante! Faz séculos desde a última vez que saí à campo para fazer uma entrega. A tecnologia tira a graça de algumas coisas... - resmungou, falando consigo mesma. - Aqui está!

Ela lhe estendeu um pacote. Parecia uma caixa comum de papelão, com múltiplos carimbos de "Entrega Expressa" e "Cuidado! Frágil!".

- Assine aqui, por favor. - a voz de Íris chamou sua atenção. - Apenas uma formalidade. Para comprovar que você recebeu o que lhe foi enviado.

A deusa lhe estendeu a prancheta e uma caneta. Ao tomá-los em sua mão, sentiu que alguma coisa fria e levemente úmida por entre seus dedos. Baixou o olhar, apenas para encontrar uma minúscula cobra vermelha deslizando sobre sua pele, faixas vermelhas e pretas cintilando como se tivessem luz própria. Ao lado desta, uma outra farejava o pacote em seus braços, a língua bífida se contorcendo no ar como uma pequena tira de seda vermelha.

A risada de Íris ecoou por seus ouvidos.

- Não precisa ter medo. Elas não fazem mal.

- Estão vivas. - balbuciou, sem conseguir tirar os olhos dos bichos. As cobras se contorciam ao redor da caneta, entrelaçando-se uma à outra. No topo, no lugar onde acabava o tubo dourado, um pequeno prisma filtrava a luz e refletia as cores do arco-íris. - É um caduceu.

- É claro que é. - replicou a deusa, a voz aguda e estridente. - Aquele estrupício te faz acreditar que era o único na face da terra que tinha um. Acertei?

Irene ergueu o olhar, confusa.

- Quem?

Íris deu um passo à frente, esticando o pescoço para dentro da casa.

- Eu posso te ver atrás do sofá, Hermes. Saia. Não pode se esconder de mim como se ainda fosse um garotinho.

A contragosto, Wooyoung se levantou. Tinha o rosto contorcido em uma careta, e o galo em sua testa suavemente arroxeado. E apesar de ter sido pego no flagra tentando se esconder, sua postura manteve-se firme ao falar.

- Que raios você tá fazendo aqui, Íris? - perguntou, praticamente num grunhido. A deusa revirou olhos.

- Não ouviu quando eu disse que tinha uma entrega à fazer? - rebateu, cruzando os braços sob os seios. - Além de covarde, você ficou surdo?

Irene poderia jurar que as orelhas de Hermes ficaram vermelhas. Deu um passo à frente, mas não pôde ir além por causa do sofá entre eles.

- Eu já te disse um milhão de vezes. - vociferou. - Gerenciar o correio de Urano e as entregas é o meu trabalho.

- Eu sei. - Íris rebateu, sem se abalar pela postura ameaçadora do outro deus, ou pelas dezenas de centímetros de diferença entre suas alturas. Ela colocou um dedo sobre o peito alheio, os olhos incolores fervilhando em energia. - Mas acontece que agora é o meu trabalho também. As Entregas Expressas estão sob a minha jurisdição. Você que não se atreva a colocar o nariz onde não é chamado.

Wooyoung riu, sem humor algum, pousando ambas as mãos sobre o quadril e se inclinando para a frente.

- Eu quem deveria dizer isso. Você está sempre se metendo onde não é chamada, Íris-arco-íris. - provocou.

- Vocês dois... - Irene murmurou, atraindo a atenção dos dois deuses para si. - Por acaso vocês dois...

A resposta veio em uníssono.

- Não!

- Não!

Íris e Hermes se entreolharam. A deusa ergueu o queixo, afastando uma mecha de cabelo rosa e roxo de sobre o ombro.

- Não mais. - corrigiu. - Felizmente, eu percebi a tempo que estava cometendo o maior erro da minha vida.

O queixo de Wooyoung caiu.

- Você? Eu estava cometendo o maior erro da minha vida. Sua leva-e-traz obsessiva.

Íris gargalhou.

- Vou considerar isso um elogio, vindo de um cleptomaníaco e irresponsável como você!

- Controladora.

- Idiota.

- Gananciosa.

- Dramático.

- Irritante!

- Crianção!

- Eu ainda tô aqui! - berrou Irene. - Será que dá pra vocês pararem de brigar?!

- Tem razão. Eu não percorri a Ponte Arco-Irís pra me rebaixar ao nível desse inconsequente. - Íris bufou, girando sobre os calcanhares. - Assina isso de uma vez. Me recuso a respirar o mesmo ar que ele por mais um segundo.

Irene fez correr a caneta sobre o papel, deixando a marca de sua assinatura na linha à frente da que continha o seu nome. Entregou a prancheta e a caneta à deusa. Ao entrar em contato com sua mão, o cilindro assumiu sua forma verdadeira: um bastão de ouro com serpentes entrelaçadas. O prisma em seu topo filtrava a luz, lançando uma miríade de cores no ar.

A deusa lhe ofereceu um sorriso brilhante, amistoso. Toda a sua fúria de instantes atrás desvanecera como fumaça.

- Foi um prazer te conhecer, Irene. - ela se virou, encarando Wooyoung por sobre o ombro com uma expressão sombria. - Passar muito mal, Hermes.

- Igualmente, querida. Espero que hajam muitas nuvens de tempestade no seu caminho até Urano.

Íris bufou, o nariz arrebitado e o queixo erguido em uma pose arrogante e desafiadora. Cruzou a porta, sua figura se distorcendo em uma coluna de brilho dourado. Irene conseguiu fechar os olhos à tempo, antes que a deusa revelasse sua verdadeira forma e a explodisse em chamas. Quando suas pálpebras se abriram, Wooyoung a encarava, parado no meio do apartamento bagunçado.

- Podemos ficar num empate? - a Bae arriscou, encolhendo brevemente os ombros. O loiro desviou o olhar, a mandíbula cerrada e os lábios apertados em uma linha fina. Podia sentir, na contração do ar ao seu redor, o quanto ele estava irritado.

A gangorra emocional, mais uma vez...

Irene suspirou. Fechou a porta, deixando a caixa sobre a cômoda. Aproximou-se, sabendo que aquela era a pior hora para fazer perguntas, sentindo que não teria uma segunda oportunidade. Mesmo que estivesse sempre falando na presença dela, Hermes não parecia gostar de falar de si próprio. Aquela era uma chance em um milhão de conseguir abrir nem que fosse uma fissura em sua armadura de sarcasmo e piadas de duplo sentido.

- Hermes... - chamou-o, usando seu verdadeiro nome em dias, desde que o conhecera. Os olhos dourados do deus deslizaram relutantemente até encontraram os seus. - Que tipo de relacionamento havia entre você e Íris?

Ele hesitou, fazendo pressão contra a parte interna da bochecha com a língua.

- Íris é o meu contrapeso. - resmungou. Deve ter ficado óbvio, no olhar ou na expressão de Irene, que ela não entendia bulhufas do que aquilo significava. - Um contrapeso é uma relação criada quando duas divindades compartilham a mesma função, ainda que de maneiras opostas. Em tese, os contrapesos têm o dever de se ajudar mutuamente, e estabelecer uma relação construtiva e que possa gerar harmonia. É o que acontece com Ares e Atena. Ambos são deuses da guerra, mas Ares simboliza a carnificina e a batalha movida pelas emoções, enquanto Atena é a personificação da guerra estratégica, do combate racional e com um propósito bem definido. Acontece que, como Ares e Atena, Íris e eu estamos na panela dos contrapesos que não se dão bem.

Irene se lembrou dos escritos no crachá de Íris.

- Eu entendo que sejam ambos mensageiros, mas não consigo ver um motivo para se detestarem tanto. Nem o que poderia haver de tão diferente entre vocês dois, mesmo porque...

Não chegou a concluir a frase, mas viu no rosto de Wooyoung que ele sabia aonde queria chegar. Mensagens são apenas mensagens.

- Mesmo executando o mesmo papel, é impossível que duas pessoas façam tudo de maneira idêntica. - explicou. - Se colocar dois soldados com o mesmo tempo de treino para guerrearem contra espantalhos, ambos vão vencer, mas a maneira com que chegarão a esse resultado pode não ser a mesma. Cada legionário tem um jeito pessoal de empunhar e manejar a espada, golpes nos quais é mais experimentado e defesas nas quais não é muito bom. O mesmo acontece com os deuses que executam a mesma função. Íris e eu somos mensageiros, mas a forma com que entregamos nossa mensagem é diferente. Eu sempre amei as estradas, as viagens entre um mundo e outro. Gosto de conhecer as cidades pessoalmente, me misturar entre as pessoas que vivem ali e aprender sobre elas. Íris, por outro lado, prefere manter distância, atravessando o universo com seu arco, mas não é muito discreta. Quando ela toca o solo, mortais e imortais sabem que ela está presente, por causa das cores. 

- Mas... se vocês têm consciência do papel um do outro, por que não trabalham juntos?

Os lábios de Hermes se repuxaram num meio sorriso.

- Ah, nós tentamos uma vez. - afirmou. - Estava indo tudo bem, contrariando a Lei de Murphy e as expectativas de, literalmente, todo mundo. Mas um dias nós brigamos e percebemos que não havia como seguir adiante.

- E eu posso saber o motivo da briga?

- Bom, nós estávamos no correio, trabalhando nas entregas, e começamos a discutir o que deveria vir primeiro, o selo ou os carimbos. Ela disse que a prioridade deveriam ser os carimbos. Eu discordei. Nós terminamos.

Irene sentiu seu queixo cair.

- Eu não acredito!

- Eu também não! - Wooyoung exclamou, horrorizado. - Todo mundo sabe que um pacote pode ser entregue sem carimbos, mas não sem um selo!

- Vocês terminaram porque não conseguiram decidir a ordem de processamento de um pacote? - soava ainda mais absurdo quando era ela quem falava. Hermes assentiu, vigorosamente. - Tá de sacanagem comigo!

- Não me olhe com essa cara! - rebateu, na defensiva. - É um assunto importante. Importantíssimo. Vidas estão em jogo por causa de pacotes todos os dias. Os humanos entram em crises existênciais profundas quando seus pedidos atrasam e os deuses enlouquecem quando são taxados na alfândega porque alguém esqueceu de colocar as especificações corretas nos documentos de envio.

Era demais para ela assimilar.

Aquele dia, que havia começado tão cinzento e sem graça, de repente havia se transformado em um caldeirão de emoções e cores vibrantes. Sua cabeça estava doendo, e para piorar tudo um sexto dos seus móveis estava fora do lugar.

Gemeu em frustração, levando ambas as mãos às têmporas e as massageando, tentando expulsar a dor ali. Seu braço machucado pulsou, lembrando-a da disputa travada momentos antes. Parecia que aquilo tinha acontecido em outro dia, outra década. Mas ali estava o hematoma no rosto de Hermes para provar que nada daquilo tinha sido invenção da sua cabeça, e que com certeza não eram memórias distantes.

- Posso tentar dar um jeito nisso aí, se quiser. - ela se ofereceu. Era o mínimo, já que ele tinha batido a cabeça na estante por sua causa. Se bem que teria sido muito pior se tivesse sido acertado por seu chute, ao invés disso.

O loiro tirou sarro de sua preocupação.

- O que? Isso aqui? Não é nada. Vai desaparecer antes que o sol se ponha. - tocou superficialmente o galo na testa. Seu rosto estremeceu em uma careta de dor. - Ou talvez não... - murmurou, com um bico. - De qualquer forma, eu preciso ir agora.

- Ir embora? Pra onde?

O deus colocou as mãos sobre a cintura.

- Ora essa! Pra onde mais eu iria, minha filha? Pra minha casa, né! Esqueceu que eu moro do outro lado do corredor? Vou tomar um banho e me livrar da poeira desse teu chão e sugiro que você faça igual. Está imunda. - aconselhou, com uma careta de nojo. A Bae suspirou, assentando uma vez e outra, entediada. - E nem invente de dar uma de euzinho aqui e entrar pela minha porta, porque eu vou estar no meu sono sagrado.

- Como Vossa Santidade quiser. Alguma coisa mais? - provocou, ao que o deus revirou os olhos.

- Me erra, garota. Me erra...

Ajudou-o a afastar a mobília, auxiliando em sua passagem, e fechou a porta depois que ele se foi. Agora somos eu e vocês, pensou, voltando-se o mar de móveis fora do lugar. Colocá-los em suas posições originais com seu ombro ainda dolorido foi complicado, mas não impossível.

Por mais maluca que a ideia pudesse parecer no início, lutar contra um deus acabou se mostrando um bom teste para Irene. Se antes não haviam reclamações de sua parte, agora ela tinha uma lista de fatores a pontuar, na próxima vez que Yuta entrasse em contato com ela. Começando por músculos mais rígidos e que suportassem melhor a dor.

Como se ele fosse te dar ouvidos, debochou sua consciência. Perguntar não arranca pedaço, replicou, ajeitando as almofadas sobre seu sofá.

Em dado momento, voltou-se para a cômoda, e seus olhos encontraram o pacote sobre ela. Irene limpou as mãos nas laterais da calça, cruzando a sala até chegar ao objeto. Apanhou-o, constatando pela segunda vez o quão leve era. Não pesa quase nada. O que será que tem aqui?

Incapaz de conter a sua curiosidade, resolveu abri-lo logo. Encaminhou-se para a cozinha, em busca de uma faca ou um estilete para romper a fita adesiva que unia as metades do papelão. Ao afastar as abas maiores, um temor súbito a acometeu. E se fosse uma bomba? Não podia duvidar de mais nada, depois das reviravoltas absurdas em sua missão.

Aproximou o ouvido da caixa, apurando sua audição ao máximo, tentando captar algum som. Nada. Nem o mais tênue dos ruídos.

Resolvida, terminou de abri-la, retirando uma quantidade considerável de papel de jornal e plástico bolha que faziam a segurança do item transportado. Seus dedos se fecharam sobre algo frio e metálico. Outra caixa. Menor, retangular e toda preta, com a superfície trabalhada em arabescos em relevo de mesmo tom do restante da peça.

Irene trouxe a caixa para a luz, examinando-a com cuidado. Parecia antiga, mas não tanto quanto algumas das coisas que haviam no Salão dos Heróis ou no Salão dos Desonrados. Havia um pequeno selo em sua abertura, uma fita dupla de algodão cujas pontas haviam sido passadas pelo fecho e grudadas com uma espessa gota de cera, marcada por um selo. Esforçou-se para entender o desenho, mas era tão complexo e pequeno que foi possível identificá-lo.

Movida pela ansiedade e impaciência súbitas, ela rompeu o lacre e afastou a tampa, que pendeu sobre as dobradiças laterais. Encarou o que havia dentro, sentindo seu coração antes acelerado reduzir a frequência dos batimentos, até o ponto de quase parar. Seus dedos correram pela borda aveludada do interior da caixa, avançando timidamente até alcançarem a coisa em seu centro.

A pena prateada era tão comprida quando sua própria mão, e tinha uma suavidade que não poderia ser imitada por nenhum composto fabricado por mãos humanas. Mesmo assim, Irene sabia que se fizesse a menor pressão sobre sua outra extremidade, ela perfuraria sua pele como a mais feroz e letal das armas.

E ela conseguia sentir o poder fluindo, em ondas. O tipo de poder que só podia pertencer a um tipo de anjo: um arcanjo puro.

- Kai...

~~~💖~~~

[Segunda feira, 27 de fevereiro.]

- Tem certeza de que é dele?

Seus olhos se ergueram, de encontro ao rosto do deus. Seu interior fervia, um verdadeiro caldeirão de emoções.

- Que pergunta idiota é essa? É claro que eu tenho certeza. - disparou. A agressividade em seu tom de voz fez com que a atenção de Wooyoung se desviasse, voltando para ela pela primeira vez em longos minutos. Não precisava de ninguém lhe dizer, para que soubesde que que estava cruzando os limites e se arriscando a pisar em um território perigoso, mas não fez nenhuma tentativa de se desculpar.

No estado em que estava, quaisquer palavras de cortesia soariam como verdadeiras blasfêmias.

Ele pareceu compreender isso, porque não fez nenhum comentário, e tampouco ameaçou transformá-la em pó.

- Não sei como pode estar tão segura. - murmurou. - Pra mim, parece apenas uma pena comum.

Bae não se surpreendeu, e tampouco se permitiu ficar ofendida com seu comentário. À primeira vista, tinha plena ciência de que essa era a impressão causada. As penas das asas de um anjo não diferiam muito das de outras espécies do reino animal, quando o quesito era estrutura. A verdadeira distinção estava em seu propósito. As asas de um anjo eram parte de seu corpo, e o corpo era um instrumento de combate.

Quando o choque se dissipou, e seus membros puderam se mover novamente sem lhe causar a sensação de que poderiam se soltar do corpo à cada instante, Irene refletiu sobre o que devia fazer.

Sua primeira reação foi examinar a caixa, em busca de vestígios que tivesse deixado passar. Parecia estúpido, dada a minunciosidade do primeiro exame feito, mas a urgência falava mais alto do que a razão em sua cabeça. Revolveu cada centímetro, afastando a almofada de veludo azul em que a pena estivera acomodada, procurando por ranhuras ou aberturas na parte interna da caixa. Correu os dedos pelo relevo, na esperança de abrir algum compartimento secreto. Colocou todo o plástico bolha e papel jornal para fora da caixa do Expresso, revirando cada centímetro. Reuniu as duas metades do selo, bem como o cordão que ele fechava até o momento de sua ruptura.

Todos esses itens estavam agora espalhados sobre sua mesa de centro, derramando-se pelo chão e tomando conta do carpete. Debruçados sobre ela, quatro mentes tentavam desvendar o mistério que se acendera desde a metade da tarde anterior.

- Íris não pode mesmo nos ajudar a encontrar o remetente? - perguntou, a voz aguda em pura incredulidade.

Wooyoung negou, pacientemente. Entre seus dedos, a pena prateada girava suavemente, de um lado para o outro, dançando sob a luz.

Seu segundo maior desafio na longa madrugada que se sucedera, além de tentar encontrar pistas que levassem ao responsável por lhe enviar aquele pacote, fora resistir à tentação de cruzar o corredor e ir bater em sua porta.

Ainda naquele momento não conseguia encontrar uma justificativa para não tê-lo feito. Só o que podia alegar era que mal sentiu a passagem das horas, enquanto se dedicava ao escrutínio de ambas as caixas. Minutos se passavam, sem que movesse um único músculo, seus olhos indo e vindo por cada ínfimo detalhe dos objetos. Quando deu por si, era dia. O sol se levantava no horizonte, uma carruagem de fogo cruzando o céu e espantando a noite.

- Infelizmente, não. - lamentou o deus. - Deixamos a identificação como opção e não como requisito obrigatório, para tentar acelerar o processo de despacho. Milhões de pacotes precisam ser processados todos os dias em Urano e também na Terra. Levaria uma eternidade para entregar tudo se tivéssemos de seguir o protocolo burocrático para cada um dos pacotes. O Expresso faz entregas rápidas para tentar diminuir a pressão nos sistemas, cobrando uma taxa menor de envio, e exigindo apenas os dados do destinatário. Qualquer um em qualquer lugar pode usar o serviço, basta ir até um posto dos Correios.

- Inacreditável... - murmurou, deixando o pescoço pender para trás e o ar escoar para fora de seus pulmões.  - Não me diga que você também não pode fazer nada.

- Eu receio que não. - a confirmação veio em seus pensamentos. - Sem uma informação precisa da origem do pacote, nossa única chance seria um exame biológico...

- Que também não é possível. - resmungou, entredentes.

Desde seu retorno silencioso e oportuno, Yuta vinha se mostrando tão útil quanto um número um em uma multiplicação.

- Lamento Irene, mas no momento em que abriu a caixa você contaminou qualquer material que pudéssemos utilizar para fazer uma análise. - continuou, ignorando a clara insatisfação da Bae com sua resposta. - Poderíamos tentar um sequenciamento baseado no padrão genético das espécies, e determinar ao menos a classe do indivíduo que fez o envio. Com sua manipulação, e agora a de Wooyoung, isso seria inviável. O resultado não seria preciso.

- Então estamos parados. De novo. - bufou. Quantas vezes mais isso teria que acontecer? Quer dizer, deveria haver um limite para quantas complicações podem ocorrer em uma única missão, certo?

É claro que não há um limite, retrucava sua consciência. Não se importam com o que aconteça no caminho, desde que eu cumpra meu objetivo.

Irene não era ingênua a ponto de acreditar que os deuses facilitariam sua vida, mas esperava que eles não a dificultassem ainda mais. Para variar, tinha feito suas apostas no cavalo errado.

Em Urano, costumava-se dizer que quatro entidades tinham por característica central não obedecer nenhuma das leis do Universo, fossem aquelas impostas por Kaos ou pelos deuses. Suas existências desafiavam os padrões traçados por mortais e imortais, e subjugavam tudo o que existia à sua vontade.

Destino. Morte. Amor. Tempo.

Quatro divinidades inconstantes, inconsequentes e incontroláveis, que jamais se dobravam perante nada nem ninguém, exceto os próprios caprichos. O preço por tentar barganhar contra essas forças era alto, e raras eram as ocasiões em que alguma coisa meramente positiva advinha desses acordos. Vender a alma a Hades seria um negócio mais sólido, mais previsível do que apostar contra qualquer membro desse grupo.

Moros, Tanathos, Eros e Cronos não estavam diretamente ligados nem ao Céu e nem à Terra, e tampouco possuíam laços estreitos com o Inferno. Na qualidade de neutros, simplesmente se aliavam ao lado que considerassem mais vantajoso, embora seu apoio não fosse garantia certa de vitória, menos ainda de derrota.

Claro. Sempre havia a possibilidade de o quarteto se juntar, e assistir enquanto o caos tomava conta de tudo.

- Posso colocar tudo a perder por dizer isso em voz alta, mas não ficamos com as mãos abanando dessa vez.

Dami fisgou sua atenção. O leve sotaque em sua voz estava um pouco mais acentuado do que de costume, tornando as sílabas mais arrastadas do que o usual.

- O que está tentando dizer, Lee?

- Enquanto vocês falavam, eu peguei as imagens em sua memória recente do selo intacto e fiz uma cópia na impressora em 3D da Divisão de Projetos Arquitetônicos, aqui do lado. - explicou ela. No olho de sua mente, a imagem de um pequeno círculo de silicone surgiu, flutuando em um pequeno holograma. - Notei que o símbolo gravado nele não me parecia estranho, e depois tive a certeza do porquê. É um tetragrammaton.

- Um símbolo bruxo?

- Também. O uso varia muito de acordo com a pessoa e com as intenções, mas costuma ser muito popular entre os magos.

Irene franziu o cenho. Era completamente leiga quando o assunto eram as classificações de espécies de Urano.

- Há uma diferença entre bruxos e magos?

Dami refletiu por um momento.

- Os magos eram menos populares nas fogueiras da Inquisição. E também não foram banidos, depois da Traição. - concluiu. - Mas isso não é relevante agora. Acontece que quem fez esse selo não teve muito no cuidado na hora da preparação, ou omitiu de propósito alguns símbolos importantes do amuleto. Eu não consegui localizar nenhum número ou letra, e a marcação do caduceu também não está presente.

- Um claro sinal de falta de atenção. - concordou Hermes. - De toda forma, sabemos que a pessoa ou entidade que achou de bom tom nos enviar um pedaço do General Kim tem conhecimento de magia, ou quer nos fazer acreditar que sim.

- Acho que esse não é o nosso maior problema, nesse momento. - Irene passou a língua pelos lábios, sentindo-os ásperos e pouco ressecados. - Quem enviou isso esteve com Jongin... ou ainda está com ele.

O silêncio que se abateu sobre o cômodo foi mais doloroso do que a constatação, embora já a tivesse consigo desde antes do raiar daquele novo dia.

- Não há nenhuma chance de, sei lá, ele tê-la deixado cair? - questionou o deus, com uma vaga expectativa. - Eu sempre pensei que anjos fossem como gatos. Que penas fossem como pelos.

- Penas não se soltam com essa facilidade. Não é como se um simples bater de asas pudesse fazê-las cair. - argumentou a Bae. - Poderia ser uma possibilidade, mas é improvável. - estendeu a mão, apontando a base da pena. - Vê? As ramificações estão irregulares nessa região. Se tivesse se soltado naturalmente, essa parte estaria intacta. Ela foi arrancada.

Wooyoung baixou a pena, depositando-a gentilmente no interior da caixa.

- Precisamos nos apressar. - murmurou. Sabia que não falava com ela, mas com o duo do outro lado da ponte. - Já decidiu como e quando vai nos mandar para Underworld?

- Passei a semana estudando a planta do prédio e projetando cenários possíveis nos quais vocês podem esbarrar. Na projeção mais favorável, pode haver um demônio a cada 0,3 quilômetros.

Se esse era seu melhor cenário, Irene nem queria perguntar o que Yuta esperava para o pior.

- Mas um meio de mantê-los seguros, apesar dos riscos serem altos. - continuou. - Um grupo. Uma quantidade considerável de pessoas, humanos preferencialmente, deve bastar para atenuar as suspeitas.

- E vocês não vão ter que se preocupar em atuar como casal de novo. - Dami interveio. Irene sentiu seu rosto esquentar.

Eles sabiam.

Ficou quieta, sabendo que qualquer coisa que saísse de sua boca poderia ser usado contra ela, mais cedo ou mais tarde. Wooyoung, por outro lado, não parecia nem um pouco surpreso ou constrangido. Típico dele.

- Eu poderia falar com alguns contatos. - propôs. - Tenho certeza que Dionísio não se importaria de nos ceder seu séquito por uma noite. Eles adoram um novo ambiente. Novas pessoas. Um cardápio novinho em folha de bebidas...

- Parece promissor, mas não acho que temos que envolver as bacantes nisso.

Tinham de concordar com Dami. Aquilo não precisava ficar mais caótico do que já estava.

- Irene?

- O que foi, Yuta?

- Digamos que você pegue o telefone, ligue para Kang Seulgi e a convide para sair. Acha que ela aceitaria?

Irene engasgou com a própria saliva.

Tossiu, puxando oxigênio com afinco para seus pulmões. Falhou nas três primeiras tentativas, concentrando-se na quarta e finalmente conseguindo respirar devidamente.

- Que brincadeira é essa? - cada sílaba arranhou sua garganta, como se uma pequena criatura cravasse as garras em sua carne.

- Sim ou não, Irene? - Yuta a pressionou. - Pense bem e responda com sinceridade.

Seus lábios se partiram, mas nenhum som os deixou. Irene caiu em um silêncio profundo, quebrado apenas pelo cadenciado ritmo de seu coração martelando contra as costelas. O sangue rugia em seus ouvidos.

- Eu... eu não sei. - confessou. - Nós nem temos nos falando, recentemente.

Tinha feito o seu melhor, fingindo que não se importava com o gelo que vinha levando. Mais do que isso, fez de conta que não sabia exatamente porque se incomodava com aquela situação.

Irene era uma pessoa mais prática do que sentimental. A objetividade sempre fora uma habilidade que buscara aprimorar, ao longo de sua vida, algo que se intensificou com sua entrada no Ginasium. Não havia tempo para desperdiçar com falatório despropositado, em sua rotina. Recebia ordens, dava instruções e passava adiante recados.

Rápido e prático, dizia a si mesma. Todo esse discurso mecânico, bem como as retóricas automáticas, haviam drenado parte de sua destreza em conduzir conversas com outras pessoas. Fora de sua bolha militar, ela não era exatamente conhecia por ser sociável.

Não saberia precisar exatamente quando, mas em dado momento percebeu que suas mensagens não recebiam respostas. Depois disso, elas deixaram de ser vistas. Irene mergulhou em uma espiral de teorias da conspiração, enumerando todas as coisas que poderia ter feito de errado para que aquilo acontecesse.

Pior do que aquele silêncio, era a incerteza. Na falta de algo mais para fazer, conformou-se em sentar e esperar. Esperar. O maldito verbo estava aí de novo, infernizando sua existência.

Esperar até quando? Para sempre, ou bem perto disso. Como anjo, o tempo se estendia indefinidamente diante de seus olhos. Dezenas, centenas... conhecia histórias de anjos que viveram milhares de anos, que presenciaram a ascensão e a queda de impérios, testemunharam a história de dois mundos ser escrita, em paralelo um ao outro. Irene poderia esperar para sempre!

Mas Seulgi não tinha essa opção.

Para ela, cada momento era único, decisivo. Ser consciente disso não ajudava em suas paranoias, nem um pouquinho.

Queria que respondesse, nem que fosse para mandá-la parar com a perturbação em que sua insistência ocasionalmente havia transformado suas tentativas pacíficas de aproximação. Ao mesmo tempo, não queria pensar em uma interrupção definitiva daquele contato. Naquele momento, suas mensagens ao menos estavam chegando até o outro lado.O que faria se elas nunca mais chegassem?

- Compreendo... nesse caso, deixe-me explanar a cena que projeto nesse plano imaginário. - propôs Yuta. - Você liga para Kang Seulgi, nesse exato momento. Considerando que não têm mantido contato recentemente, há a possibilidade de ela apenas decidir ignorar a ligação, mas eu prefiro pensar no potencial apelativo que uma chamada de voz possui, sobre um par ou meia dúzia de mensagens na caixa postal. Imagino que haja em torno de 80% de chances de você ser atendida.

- Hipoteticamente falando?

- Claro. - concordou Yuta. - E ainda no campo das hipóteses, imagino que queira justificar a razão de seu telefonema tão súbito, em plena segunda-feira. "Você não tem respondido às minhas mensagens. Achei que devia fazer uma última tentativa antes de desistir." - recitou, numa imitação tão perfeita de sua voz que Irene ficou perturbada. - Estou certo de que poderia improvisar. Sua conversa com a adorável senhorita Solar deixou isso bem claro.

As mãos de Irene se fecharam sobre o solo, as unhas afundando suavemente nas palmas.

- O que mais há nesse seu cenário... puramente hipotético?

- Um convite seria interessante. Feito da maneira correta, resultaria em uma aceitação quase imediata. Combinam-se horários e locais, a areia escorre na ampulheta, e aqui estamos estamos...

- Na Underworld. - murmurou. - Está propondo que eu a convide para ir até lá.

- Não. Estou propondo um primeiro encontro tão horrível, que você se sinta na obrigação de refazê-lo. - corrigiu. Se antes sua voz parecia apenas indiferente e apática, agora a ouvia fria, calculista.

- Você desapareceu por sete dias. Sete. Dias. - enfatizou. - Por favor, não me diga que durante esse tempo todo esteve pensando em me propor... isso.

- Sua reação me diverte, Irene. Assim como a forma com que você me subestima. - replicou. - Considerei todas as abordagens possíveis, baseado nas informações que temos até agora. Se estou expondo minha proposta, é porque tenho certeza de que é o melhor caminho a se seguir. Parece que você esqueceu as duas regras fundamentais sobre mim.

- Eu não esqueci. - vociferou. Apenas um fio de controle a impedia de alcançar uma ruptura completa, e explodir em gritos. - O que está me pedindo para fazer não é certo. Usar pessoas como peças para alcançar objetivos vai contra os meus princípios.

E isso não era tudo. Envolver Seulgi em sua investigação era o mesmo que colocar um alvo em sua testa, e outro nas costas. Se Kai, que possuía décadas de treinamento militar especial, que mais de uma vez fora reconhecido pelo Olimpo e por Urano como um dos mais talentosos guerreiros e estrategistas, que ascendera ao posto de Legado como um dos mais jovens de toda a história... se Kai, que estava física e mentalmente preparado havia sucumbido, que destino esperava uma mortal envolvida naquela teia?

Irene tinha estado por triz, e as coisas só não terminaram piores para o seu lado porque Wooyoung se materializara, no momento em que estava incapacitada e surpresa demais para reagir.

- Se quer envolver Seulgi nisso, saiba que eu não vou cooperar. Não vou arriscar uma vida inocente apenas porque esse é o melhor caminho a seguir.

- Então eu acho que é hora te lembrar que está onde está como subordinada do Magnum, e por consequência minha subordinada. No Ginasium, você pode resolver os seus problemas à moda de Ares, com seus lemas pessoais e suas espadas em punho, mas entre essas paredes e nos assuntos que estão sob a bandeira desta instituição, minha palavra é a decisão final. Não estou te fazendo um pedido, senhorita Bae, para que você decida se recusa ou aceita. Isso é uma ordem. Estou certo de que sabe a diferença.

Ah, ela sabia...

Como tinha certeza de que adoraria deixar uma bela marca no rosto do Herdeiro com seu punho.

A imagem era tão vívida, tão nítida e irresistível, que logo preencheu sua mente. Seus punhos se tornaram ainda mais apertados, os nós proeminentes. Não se importava que ele visse seus pensamentos. Queria que soubesse... que soubesse exatamente quais eram as suas intenções.

Irene havia sido moldada para obedecer, e cumprira cada uma das determinações de seus superiores por muitos e intermináveis anos. Mas, naquele momento, ela não se importava em manchar sua carreira com um ato de rebeldia.

Sua resposta para aquela ordem era um grande e redondo NÃO!

- Irene. - Hermes chamou-a suavemente, surpreendendo-a. - Se acalme. - pediu.

A mão dele deslizou sobre seu punho cerrado. Seu polegar fez uma carícia singela nas costas de sua mão, e seus dedos relaxaram um pouco.

- Posso sentir sua preocupação e compreendo a repulsa que sente do que está sendo cobrado de você. Mas peço que veja o outro lado. - fez um maneio de cabeça, apontando a caixa aberta sobre a mesa. - Não é fácil levar uma missão adiante, quando há um conflito entre aquilo se acredita ser o certo e o que é preciso fazer para cumprir o dever que lhe foi atribuído. Mas você precisa pensar no Jongin...

- E você acha que eu não estou pensando? - cortou-o, áspera. - Que eu não tenho medo de todas as coisas que podem ter acontecido com ele entre aquela noite e o segundo em que essa caixa chegou às minhas mãos? Eu tenho. Eu estou apavorada, e estou furiosa por estar sendo uma inútil.

- Você não é inútil. Está fazendo o seu melhor, e está se saindo muito bem. Mas haverão momentos, momentos como este, em que terá de fazer coisas que não quer, para um bem maior. Conhece o lema das Legiões. Se quiser paz, precisa se preparar para a guerra.

- Se vis pacem, para bellum. - murmurou. Ela e todos os soldados de Urano eram instruídos não apenas a decorar as palavras, mas a vivê-las em todos os dias de suas vidas a partir de sua iniciação.

Hermes tinha razão. Nem todas as guerras envolviam combates. Haviam disputas tão importantes quanto, que precisaria travar em seu interior, contra si mesma.

- Não posso permitir que ela fique exposta, por minha causa. - insistiu. - Se estão me vigiando, não posso me arriscar a colocá-la em perigo, também.

- Leve uma faca com você, se isso a dizer se sentir mais segura. Tem uma parede cheia delas, e sabe usá-las. Mas, se quer a minha opinião sincera, não acho que precisará usá-la. - propôs o deus. O dourado de seus olhos parecia ainda mais intenso, cintilando em expectativa. Ele estendeu-lhe a mão. - Podemos contar com você, Irene?

Puxou o ar devagar, encarando-o por um momento. Ainda quente de irritação e com os órgãos revirados em ansiedade, aceitou sua destra. Seus dedos envolveram o antebraço alheio, em um aperto firme.

- Vamos fazer isso. - suspirou, e teve a sensação de que uma tonelada deixava seus ombros. - Mas que fique bem claro que vou traçar meus próprios limites, daqui em diante. Se eu sentir que eles estão sendo ultrapassados, considere essa missão abortada. E nada do que disserem vai me fazer voltar atrás, não me importa que eu tenha de enfrentar uma punição.

- Que assim seja. - o tom de Yuta era morno, novamente. - Se for para deixá-la em paz com sua consciência, aja como desejar. Apenas se assegure de criar uma situação proveitosa para um segundo convite. Precisamos colocá-los dentro da Underworld o mais rapidamente possível...

- Entendi, entendi... - resmungou. - Me dá a droga do telefone. Vamos terminar com isso logo.

- Sim, senhora. - Wooyoung prestou-lhe continência, entregando seu celular. Irene revirou os olhos, desbloqueando a tela e discando o número da Kang.

Disse a si mesma que não o tinha decorado de propósito. Que era apenas a sua memória fotográfica atuando mais uma vez. Que não havia motivo para se sentir ansiosa.

Mas não deu em outra. Enquanto o telefone chamava, ecoando um bipe irritante, tornou-se impossível ignorar as borboletas que davam vôos rasantes em seu estômago.

- A-alô? Irene?

A voz dela estava trêmula, mas isso não diminuiu em nada o impacto que causou sobre seu sistema nervoso. Depois de tantos dias de silêncio, apenas ouvi-la dizer seu nome com aquela entonação vacilante, com uma cautela e uma ansiedade tão transparentes... despertava algo em si que não conseguia nomear.

- Você não tem respondido às minhas mensagens. - ditou, obrigando sua voz a soar calma e compassada. - Achei que devia fazer uma última tentativa antes de desistir.

Julgou-se patética enquanto repetia as palavras de Yuta, mas não havia nada mais em sua mente para ser dito. Seus pensamentos estavam em branco, mesmo que ela não estivesse sozinha. Wooyoung diante de si parecia de esforçar para não ceder ao riso e arruinar as preliminares daquele plano.

Espere. O quê?

- Eu estou interrompendo? Desculpe ligar assim, tão de repente. - continuou, lutando para de concentrar no que estava dizendo.

- Não! Não... tudo bem. - Seulgi replicou. - Eu não estava... eu não estava fazendo nada realmente importante. -  sussurrou a última parte, e passou pela mente da Bae que ela poderia estar em um ambiente inadequado para aquela conversa.

- Eu posso te ligar mais tarde, se quiser...

- Não, é sério. Você não me incomoda. Nunca. Eu só... não estava esperando que você ligasse. - confessou.

- Esperava que eu me desse por vencida, depois dos últimos dias? - questionou, sentindo uma fagulha de coragem se acender em seu peito. - Lamento te decepcionar. Minha determinação agora está três vezes mais forte, agora.

Não obteve resposta por um longo tempo. Uma onda de insegurança a atingiu, em instantes. Preocupou-se, que seu tom fosse ousado demais, e que tivesse causado uma má impressão.

Ao seu lado, Wooyoung seguia em sua árdua jornada tentando impedir um acesso de riso. Quando se virou para intimidá-lo com o olhar, tudo o que ele fez foi debochar ainda mais. Cruzou os tornozelos, fazendo a mimica do balde de pipoca, assistindo ao desenrolar da cena.

- Você desapareceu. - murmurou, sem nenhum resquício de humor. - Eu fiquei me perguntando se foi algo que eu fiz ou disse.

- Hmm... então... sobre isso...

Houve um barulho do outro lado da linha, seguido por um ruído agudo. Uma voz que Irene não conhecia berrou do outro lado da linha.

- Então é você a tal Irene?! Puta que pariu, eu achei que a Joy tava brincando!

Afastou o aparelho da orelha, quando duas vozes distintas explodiram em gritos e gargalhadas. Sua mente trabalhou no ritmo de pistões, tentando entender o que estava acontecendo.

Sabia que Joy era Park Sooyoung, amiga de Seulgi. Fora graças à ela que conseguira seu número, em primeiro lugar.

- Retiro tudo o que eu disse. Lisa, pode mandar descer a garrafa de champanhe. A Seulgi finalmente sair da se...

- Cala a boca, Amber! - gritou a Kang, retornando o controle do aparelho. Houve mais um chiado, e um barulho como de uma porta sendo trancada. - Desculpe por isso. - ela sussurrrou, após um momento de silêncio. - Amber não tem filtro e fala todas as coisas que lhe vem à cabeça. Nãoouvidos à ele.

- Não se preocupe com isso. - Irene lançou um olhar breve para Wooyoung. - Acredite. Eu sei como é ter um amigo irritante.

- Ei! - o loiro protestou, aos sussurros.

- Foi bom você ter ligado. Eu estava tentando reunir coragem para fazer isso dias, mas as coisas que eu pensava em dizer nunca pareciam suficientes. - confessou a Kang. - Não faz diferença agora, faz? Você me pegou sem um discurso pronto.

Ela riu, com uma pontada de amargura. Mesmo assim, era um dos sons mais bonitos que já ouvira na vida.

- Desculpe por ter te dado um gelo. Eu estava confusa e não sabia o que pensar... não devia ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi infantil da minha parte, e muito grosseiro. Lamento muito.

Conseguia sentir a culpa e o receio na voz de Seulgi. Havia algo de peculiar na forma com que ela falava, como se estivesse habituada a pedir perdão, com uma frequência maior do que os humanos normalmente fariam.

Não era do feitio mortal ser tão humilde. Até onde havia visto ser noticiado, os homens eram criaturas arrogantes, orgulhosas e prepotentes - cópias menores e mais frágeis dos próprios deuses. O único diferencial era que conseguiam fingir suportar uns aos com maior habilidade. Os imortais não eram tão pacientes, como não eram tolerantes com insultos que julgassem intencionais.

Não costumava acabar bem, para o lado mais vulnerável.

- Desculpas aceitas. - ouviu um suspiro aliviado, do outro lado da linha. Aquela era a sua oportunidade de colocar o plano em curso. - E eu tenho uma ideia de como podemos colocar um ponto final nisso e virar a página. - acrescentou.

Pôde sentir a tensão crescer, no silêncio que recebeu como resposta.

- Que seria...? - a voz dela transbordava de desconfiança. A própria Irene não tinha muita certeza do que estava fazendo, quando pronunciou as palavras.

- O que acha de irmos ao cinema, qualquer dia desses?

Soou calmo, tão calmo que duvidou que Seulgi pudesse imaginar que estava à beira de um ataque nervoso.

- Cinema. - repetiu, vacilante. - Só nós duas?

- Um programa entre amigas. - se apressou em dizer, sentindo-se uma idiota completa. - Podemos conversar. E pode me dizer o que esteve pensando, todo esse tempo que não nos falamos. Se quiser falar, claro.

Novo momento de silêncio. A angústia escalou por seus ombros, rindo baixinho de sua tensão.

- Você não vai desistir, mesmo se eu disser não, né? - o sussurro gelou sua coluna. - Tudo bem. Acho que... vai ser legal.

A sensação que inundou Irene não poderia ser descrita. Ia além do simples alívio. Era uma satisfação tão grande que a fez sorrir, como uma adolescente boba de livros juvenis.

- Pode escolher o dia que for melhor para você. Mas... se importa se formos à noite? Meus dias andam um pouco caóticos, desde que eu... me mudei. - concluiu, na falta de um termo melhor. Citar sua queda envolveria toda uma gama de explicações que ela não poderia e nem queria dar.

- É um horario bom para mim também. Minha chefe não vai querer saber de mais folgas, até o final do mês. À noite é perfeito. - divagou. - Você tem um título em mente?

Irene não tinha pensado tão longe.

- Preciso confessar que não.

Seulgi emitiu um murmúrio de concordância.

- Posso ver o que está em cartaz e te mandar algumas sugestões. Eu não ando fazendo muita coisa da minha vida, ultimamente. Garanto que meu repertório é digno de confiança.

- Eu seria eternamente grata por isso. - achou graça do fato de ela não fazer ideia do quão literal essa promessa poderia ser.

- Então estamos combinadas. - novo ruído ao fundo, nova rodada de risos. Irene pôde ouvir seu nome sendo pronunciado, apesar da onda de chiados que acometeu a ligação. - Eu preciso desligar agora. Tenho que voltar e me certificar de que Amber não está contando à Deus e ao mundo sobre você. - argumentou. Quis dizer a ela que não se importava que os deuses e o mundo soubessem, mas a realidade não era bem essa. O silêncio, por mais indesejado que fosse, era necessário para mantê-la protegida. - Nos falamos mais tarde.

- Estarei aguardando. Contarei cada segundo. - ela voltou a rir, baixinho. Foi como se o sim acariciasse sua pele, de tão suave. Irene baixou ainda mais o tom de voz. - Está duvidando? Vou começar agora, então. Um. Dois...

Seulgi desligou, quinze segundos depois. As borboletas ainda batiam asas em seu estômago, mas o que sentia não era mais apenas ansiedade.

Irene estava... feliz.

~~~🖤~~~



Notas Finais


Oie💜 se vc chegou até aqui, tem um espaço pra vc reservado no Elísio🤗😅

Gente do céu, eu juro que não era a minha intenção trazer uma bíblia hoje😶antes da revisão, esse capítulo tinha uns 7k de palavras. mas conforme eu fui lendo, ideias foram surgindo e quando eu vi...🙈*quando todos os capítulos estiverem postados, é provável q eu venha aqui e faça uma reorganização, só os deuses dirão...

Sobre esse capítulo monstro, espero que tenham gostado e conseguido acompanhar todos os pequenos focos de incêndio🔥quem me acompanha há algum tempo sabe que eu gosto de tretas, tretas e... refrescos no final Demorou, mas o date Seulrene está aí, e Yuta q lute.

(- qualquer coisa me dá uma puniçããuuwwwn...)

*k

Eu não vou me alongar muito aqui pq né, caractere pra cinco vidas só hoje😶🤡💜 vou deixar as discussões, as teorias e as expectativas com vcs. Se cuidem, durmam e bebam água. Usem máscara e tomem vacina quem tiver nos grupos que já podem vacinar, e nos lemos numa próxima.

Magá~💜


Ps.: Nova York, pra q te quero?


Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...