[Sábado, 04 de março.]
Irene ainda estava atordoada, quando sua mente voltou ao próprio corpo. Manteve os olhos fechados, deixando a cabeça pender de encontro à madeira, tentando equilibrar sua respiração. Um zumbido irritante tomava conta de seus ouvidos.
Tarde demais, percebeu que se tratava do celular, esquecido sobre a mesa de cabeceira. Esticou o braço, tateando até encontrar o aparelho. Baixou o volume até o barulho cessar, apreciando do fundo de sua alma o silêncio que reinou no apartamento após isso. Mas o apreço durou pouco. A quietude do Capitólio, enquanto os Olimpianos falavam, era uma lembrança incômoda.
Mudou de ideia, tomando o objeto em mãos. Desbloqueou a tela, digitando com a canhota na barra de pesquisa. Alguns segundos depois, música preencheu o apartamento. Os ecos pelos cômodos, das caixas do sistema de som, criaram a linda ilusão de que não estava sozinha. Irene se permitiu mergulhar na fantasia, ignorando, a princípio, quão cruel ela era.
Antes de entrarem no galpão, ela estava com um mal pressentimento. Ou nem isso. Há uma diferença sutil, quando se tem um conhecimento prévio da situação. E por pior e mais estranho que fosse soar, Yuta estava errado. E ele estava certo em prever o quão ruim isso seria.
Às vezes odiava o Destino. Depois, sentia remorso. Afinal, nem tudo que compunha essa coisa intangível e impossível que chamava de futuro era da incumbência de Moros. Havia mais, por trás da sucessão de pequenas tragédias das últimas semanas.
Talvez o dedo de Éris, a deusa da discórdia. Ou um abandono repentino da Fortuna. Irene não era exatamente uma religiosa, apesar de tudo. Ela não conseguia pensar no que poderia ter feito para ofender os deuses, nos últimos doze meses, e quem sabe? Os deuses não precisavam exatamente de um motivo, para se aborrecerem com quem quer que seja, e muito menos entre eles mesmos.
Estava surpresa que as trocas de farpas na reunião do Conselho não tivessem evoluído para algo maior. Era cedo para ter certeza, porém. Nem sempre as consequências das querelas divinas eram imediatas, ou rapidamente relacionadas ao evento gerador.
Levou um século para que a verdadeira responsável pelo estopim da Guerra de Tróia fosse identificada. E, surpresa das surpresas! Não era Afrodite, muito menos a deusa da discórdia. Mas quem haveria de pensar na generosa fatia de culpa de Tétis, quando ela vagava por aí debulhando-se em lágrimas pela morte do filho único? Infinitas vezes mais prático olhar para uma dupla de desafetos, cada qual à sua maneira. A esposa infiel e a semeadora do caos, haveria uma dupla mais perversa?
O passado ensina. Graças a ele, Irene foi impedida de acolher totalmente a hipótese sinalizada por Poseidon. Era tentador visualizar Hades como responsável. A própria força-tarefa tinha trabalhado com essa possibilidade, por um tempo considerável, e Irene meio que desejava que fossem os demônios, porque um adversário conhecido é infinitas vezes preferível do que um cuja existência se ignora. Porém, depois das últimas horas, não estava mais tão convicta de absolutamente nada.
Com um grunhido e um suspiro, ela se moveu. Seus membros estavam dormentes, depois do período de imobilidade. Suas pernas quase não responderam, quando tentou passá-las para o outro lado da cama. Foi uma luta se colocar de pé, e uma tortura se arrastar até o espelho de corpo inteiro, próximo ao guarda-roupa.
Avaliou seu reflexo, sua atenção se prendendo nas ataduras em seu braço. Irene estava tão atordoada que tinha esquecido da dor, e não foi sem uma careta de desgosto que percebeu as pontadas se subiram por seu antebraço. Uma mancha vermelha começava a se formar, e pensou que fosse uma boa ideia relaxar o punho, antes de romper os pontos.
Depois, imaginou se as cicatrizes permaneceriam apenas no autômato, ou se migrariam, junto com sua alma, quando retornasse ao seu corpo.
Seu corpo. Onde ele estava? Em algum lugar dentro do Magnum, provavelmente. Tinha tentado se lembrar de perguntar a Dami ou a Yuta, mas havia sempre algo atravessando sua mente de supetão, roubando espaço na sua lista e se tornando prioridade. Contudo, teve a impressão de que, muito em breve, descobriria.
Afinal, com a missão paralisada, Irene teria de voltar para Urano.
Voltando, sua alma seria devolvida ao seu corpo original.
Seria como se nada daquilo tivesse acontecido. Seria, se as marcas das últimas semanas não fossem muito além do físico. Nada seria igual. Era como Taeil havia dito. Nada nunca mais seria igual.
— Coisas ruins acontecem, quando o Conselho é invocado. E o Conselho só é invocado quando coisas ruins acontecem. — A voz, à essa altura uma extensão de seus próprios pensamentos, saudou-a, num tom triste. — Sinto muito, Irene.
O pedido de desculpas de Dami reverberou por seu interior. Por que ela está se desculpando?, quis perguntar. As palavras não saíram, mas a Lee era esperta o bastante para entender o contexto.
— Podíamos ter feito mais. Eu poderia ter feito mais. Tínhamos todos os recursos para isso. Insistido mais, convencer Ares... não permitir que fossem enviados separados... Eu... eu não sei... — Um arquejo. Um par de inspirações pesadas, tão pesadas, que nem mesmo a distância triliométrica entre elas pôde atenuar o som. Irene conhecia aquele procedimento, porque o tinha executado uma centena de vezes. Sabia que Dami estava a um passo de começar a chorar. — Não devíamos ter deixado Jongin ir sozinho. Falhamos com você, eu sinto muito...
— Yuta mandou falar isso? — Não eram as palavras mais gentis, para se usar com alguém numa posição como a da bruxa. Irene sabia. Só que ela tinha represado sua tristeza por tempo demais, e agora a ouvia se dobrar em rispidez. — Ele é orgulhoso demais para aceitar os próprios erros, por isso mandou você?
— Ele nem sabe que eu estou aqui. — Fez-se um instante de silêncio, e imaginou que Lee balançava a cabeça, apenas para se lembrar de que não podiam se ver. — Ainda não... mas ele vai saber em breve... quando voltar.
— O Olimpo o chamou para uma reunião particular. — Irene disse, recordando os minutos antes de deixar a Ponte Reversa. — Querem discutir até onde vai a responsabilidade dele, no que aconteceu.
— Vão querer a cabeça dele. Não literalmente, é claro... mas eu acho que sabe o que isso significa.
Irene sabia. E embora ficasse dividida, com uma parte sua procurando desesperadamente por culpados pelo acontecido, seus conhecimentos militares a puxavam de volta.
— Yuta não é responsável pelo que aconteceu. Não completamente... não foi ele quem... — Suas cordas vocais a traíram. Precisou engolir o desconforto, antes de continuar. — Não foi ele quem o torturou. Não podem responsabilizá-lo por isso.
— Para as leis dos deuses, não existe culpa parcial. Ou você é culpado, ou inocente. Nunca os dois. — Dami soava triste, em cada sílaba que proferia. Ela suspirou, e o ruído abafado era uma imagem melhor de seu cansaço e abatimento emocional do que qualquer descrição que pudesse ser feita. — Eu nem devia estar aqui. Se tudo der errado, vou lamentar não ter usado esse tempo para arrumar as minhas malas.
Irene viu, no espelho, suas sobrancelhas se curvarem.
— Você vai embora?
— Se o Conselho responsabilizar Yuta pelo que aconteceu ao Jongin, ele deixa de ser o diretor do Magnum. E se ele deixar o cargo, Atena vai perder qualquer controle que tenha em decidir sobre quem fica e quem sai da equipe. — Explicou, como se ligasse pontos. — Há muita gente louca para me colocar para fora desta cidade, desde que eu coloquei os pés aqui. Há muita gente aqui dentro... — Irene soube que ela se referia ao Magnum. — Eles acham que eu não sei. Mas eu nasci nas sombras, Irene. Elas se tornaram uma extensão de mim. Elas não mentem, e não escondem nada. Elas me contam coisas...
Pensou na quantidade de vezes que tinha visto Dami atravessar paredes, e nas ocasiões em que atravessou junto com ela. Pensou na sensação pegajosa da escuridão se agarrando ao seu corpo, e em como nunca tinha imaginado que houvesse algo além acontecendo, naqueles segundos.
— Estão loucos por uma oportunidade de me deportar há mais de meia década. Essa é a melhor que eles têm, desde então.
— Eu nunca soube por que você deixou a Passagem. E nunca perguntei. — Irene mal percebeu as palavras, escapando de seus lábios. Um pouco da sua decência deve ter ressuscitado com elas, porque se apressou em adicionar: — Não precisa me dizer, se não quiser.
A risada baixa da Lee ecoou em seus pensamentos.
— Qual seria o propósito em perguntar, senão para obter uma resposta? — Depois de passar a última hora ouvindo os timbres mórbidos na consciência de Yuta, escutar a pitada de humor ácido foi um alívio e ao mesmo tempo muito estranho. — Você quer saber. Não deveria ter vergonha em me questionar. Não me incomodo em responder. É melhor do que sair por aí inventando coisas, como muitos fazem...
— Isso acontece mesmo?
— Você não imagina. Tem gente que diz que eu fui intoxicada pela névoa... — O riso de Dami morreu, quando notou que Irene não compreendia. — Oh, você não sabe. À noite, a Passagem fica coberta de névoa venenosa. Bem, é o que vocês, que nunca viveram lá, acham. Há bastante neblina, sim, mas ela não faz nada além de cócegas na gente. É só uma coisa que acontece, num lugar onde a luz dos Sóis quase não chega.
— Me ensinaram que as bruxas foram condenadas à Passagem Sombria. Que foram exiladas, como punição por serem cúmplices de Hades na Grande Traição. — Irene parou. A pergunta seguinte era delicada, mas ela acreditava que Dami optaria por não responder, se a considerasse invasiva demais. — Vocês eram? Culpadas, eu digo...
— Me conforta que tenha perguntado. O resto do Universo não teve o mesmo cuidado. Mas, sim, é verdade. Nós ajudamos Hades a abrir os portões do Submundo. Nós o guiamos pela noite, com nossas tochas, iluminando seu caminho sob a Lua Cheia, enquanto ele marchava com seu exército de gigantes sobre casas de camponeses indefesos. — Dami suspirou, seu tom se tornando zombeteiro. — Ou foi o que o tribunal dos deuses concluiu, por unanimidade, depois que Hécate não conseguiu provar nossa inocência.
Irene se remexeu, repentinamente incomodada.
— Na época, o princípio básico era o da presunção de culpa. Hoje em dia é o contrário... Inocente até que se prove o contrário. Uma coisa boa, de tudo o que houve.
— E o restante de vocês não poderia ter tentado? — perguntou, ansiosa. — Vocês não foram chamadas, como testemunhas?
— A acusação foi feita sobre nossa deusa. O coven se baseia no conceito de que todos os membros são parte de um todo, ainda que tenham experiências individuais. Quando Hécate foi considerada culpada, a sentença foi estendida à nossa raça como um todo.
Um instante de silêncio, preenchido com a música que ainda ecoava pelo apartamento. Tentou conceber a imagem de todo um povo, uma raça, sendo exilada, amaldiçoada ao ódio eterno, através de um julgamento torto.
— Imagine — Dami falou — : um grupo de mulheres, saindo todas as noites para se embrenhar na floresta, retornando antes do amanhecer, com os braços cheios de ervas. Agora, imagine essas mesmas mulheres, fazendo brotar flores e trigo da terra estéril, curando ferimentos, trazendo crianças ao mundo. Mulheres em comunhão com outras mulheres, em paz. Você precisa admitir que nós somos perigosas.
— Deve ter sido... horrível. — Estava resumindo. Condensando, reduzindo milênios da história de milhares a uma palavra tão pequena, e tão vaga. Irene se arrependeu imediatamente.
— Eu cresci ouvindo das minhas mães que deveria ser grata, por ter nascido na Passagem. Foi muito pior para aquelas de nós que foram arrastadas da Terra, do seio da nossa Mãe.
— Não consigo acreditar que todos tenham simplesmente concordado com isso — desabafou. — Deve ter tido alguém... deveria ter tido alguém para se impor. Alguém para dizer que isso era uma loucura. Alguém que... que se importasse com a injustiça que vocês sofreram.
Dami riu o riso sem graça e cansado de quem tinha pensado a mesma coisa, em algum momento do passado.
— Os deuses não se importam. É o que os torna deuses. — Dami parou, e algo em seu silêncio a fez pensar que visitava memórias dolorosas. Uma visita ao seu Limbo, ao passado que podia se tornar futuro com a mesma facilidade que o sopro de vento apaga uma vela. — Eu queria mais. Mais do que me disseram que eu poderia ter. Eu quis ver o céu azul detrás da neblina, e os campos verdes depois das rochas. Olhar para as pessoas que nos condenaram àquele lugar e tentar extrair respostas de seus rostos. Mostrar que as sombras não são tão terríveis, se você souber pedir a elas um favor, com jeitinho. E eu consegui. Por um tempo. Não estou tão triste quanto achei que ficaria. Mas eu podia ter feito mais.
Irene encarou o reflexo no espelho, enquanto absorvia o que ela tinha dito. E, mais uma vez — ou a última, quem poderia saber? —, inundou-se de admiração e do sutil desconforto que a assaltavam, sempre em par. Tudo ali era familiar, e ao mesmo tempo diferente. Podia ver seus traços, dentre tantos outros que haviam sido criados para mascarar suas feições. Seus olhos tinham a mesma cor. Sua pele tinha a mesma cor. Mas não era ela.
Seria assim com Kai, dali em diante? Um rosto familiar, em um corpo inerte, estranho? Um fantasma encarnado de uma época que jamais voltaria?
— Acha que ele vai ficar bem? — Pergunta idiota. Tinha ouvido o relatório de Taeil, sabia do quadro clínico. Mas esperança é uma droga viciante, e Irene não conseguia se livrar da tentação dela.
— Taeil é o melhor neurocirurgião de Urano, e Moon Byul a melhor cardio, ortopedista e fisioterapeuta que você alguma vez vai conhecer. E eles são filhos de Asclépio, deus da medicina. Eu não poderia pensar em dois médicos melhores para cuidar do Kai. — Dami foi tão firme em sua resposta quanto sua voz apertada permitiu, mas Irene ainda estava angustiada.
— Você não respondeu — apontou, ignorando todos os floreios. — Jongin é bem mais que o meu melhor amigo — confessou, entre sussurros. — Ele é a pessoa que mais me apoiou, desde que eu me juntei à Legião. Eu não teria durado duas semanas se não fosse por ele. Provavelmente seria expulsa, por perder a cabeça com Ares.
— Isso seria uma cena interessante de se ver.
— Não tenho ideia do que vou fazer se ele não melhorar — suspirou, colocando para fora suas inseguranças. — Taeil disse que não há a menor chance de ele voltar a ser soldado.
— Ele pode estar enganado — Dami rebateu. — E, antes que você diga qualquer coisa, aí vai algo que pode não ter notado ainda: Taeil é igualzinho ao Yuta. Os dois são orgulhosos, lógicos incontroláveis e são conhecidos por nunca estarem errados. E sabe o que? Yuta cometeu uma série de erros, desde que essa investigação começou. O que impede que Taeil também esteja equivocado?
— Seria muito bom, para ser verdade... — Irene sorriu, triste. Deu meia volta, sentando-se na ponta da cama, voltada para o espelho. — Na verdade, isso seria...
— Impossível? — Dami riu, e o som alegre fez uma curiosa e súbita energia se espalhar por Irene. — E se for? Quantas coisas impossíveis você já não viu acontecerem, desde que deixou Urano? Uma a mais não me parece tão difícil assim... — Nova pausa. Pôde imaginá-la torcendo as mãos, escolhendo as palavras. — Fora que... ainda que ele não volte para o Ginasium... não significa o fim. Tenho certeza de que Jongin conseguirá se reinventar.
— Isso seria ótimo — Irene concordou, animada. Mas, então, a realidade fluiu para dentro dela. Seria ótimo. Só que, para isso, Kai precisava acordar.
Dami deve ter sentido, ou visto, quando o medo estendeu as mãos de volta em sua direção.
— Uma mulher sábia me disse uma vez... — falou, num tom sutil — ...que não vale a pena se afligir com o futuro. Ele é uma abstração, no final das contas. É a soma de todas as pequenas escolhas que fazemos, com um empurrãozinho do Destino.
— Sempre achei que Destino e futuro eram a mesma coisa.
— Eu também achava. Até o dia em que cruzei a fronteira, e não voltei mais. Meu destino era ser uma bruxa, mas meu futuro não estava ali.
— Vou sentir sua falta, Dami. — Irene se ouviu dizer, sem nenhum choque. A frase era tão verdadeira, e soou tão natural. Havia apenas uma pontinha de tristeza, pairando no ar e no infinito calculado entre elas.
— Estou certo de que o sentimento é recíproco.
Irene sentiu-se enrijecer. Ela não tinha notado a presença de Yuta. Há quanto tempo ele estava ali?
— Cheguei a tempo de te dizer, Lee, que não é dessa vez que você vai se livrar de mim.
— Isso significa... — A frase foi cortada por um arquejo de compreensão, mas Irene ainda não tinha entendido.
— O que houve? O que o Olimpo decidiu?
— Poseidon conseguiu convencer mais da metade dos doze que eu não tenho... Como ela disse? — Yuta suspirou, e Irene sabia que era teatro. De jeito nenhum ele poderia ter esquecido ou deixado de ouvir. — "As qualidades necessárias para conduzir uma operação tão delicada e com potencial tão destrutivo". E que eu demonstrei isso com minha "total irresponsabilidade em não comunicar ao Conselho os obstáculos que surgiram", e com todo o meu histórico de "péssimas decisões baseadas em nada além da minha vontade".
— Traduzindo...
— Estou fora das investigações. Todos nós estamos, Dami, o Magnum. Você, principalmente. — Irene viu a ruga se formar entre seus olhos, no reflexo. A confusão dela pareceu abalar Yuta por um milissegundo. — Você esqueceu.
Ela ia abrir a boca e perguntar: "Esqueci do que?". A lembrança da voz de Taeil chegou primeiro. Irene sentiu seu corpo gelar.
— Ares pode te convocar de volta a qualquer momento. Você é a Tribuna, Irene. A segunda na hierarquia. Com Jongin afastado por tempo indeterminado, a Legião é sua para comandar.
Irene fechou os punhos. A mancha em seu braço cresceu, a dor viajou por seu sistema. Apreciou ambas as coisas. Elas faziam parte de sua vida. Sangue e dor, aos montes, era o que a esperava no Ginasium. A Legião era sua para comandar.
Sua.
— Dami já deve ter lhe dito, mas eu vou reafirmar: os gêmeos Moon são os melhores médicos de Urano. — Irene teve a impressão de que a voz dele se tornava suave. Não, não era isso. Yuta realmente estava usando um tom menos impessoal. Suas mãos caíram paralelas ao corpo, tão desconcertante era a percepção. Os pontos agradeceram silenciosamente. — Taeil pode ter todos os defeitos que você quiser enumerar, mas ele sabe o que faz na mesa de cirurgia. — E depois, como se quisesse se certificar de tê-la convencido: — Ele vai ficar bem.
— E quanto a você? Vai ficar bem? — falou, rápido demais. Soube que deu um baita susto nele, porque sua voz voltou a ser indiferente, em absoluto.
— Você me subestima, Bae Joohyun.
Um pequeno sorriso ganhou seus lábios, ao ouvir seu nome. Precisava se acostumar a ser chamada por ele, de novo.
— Tenho uma notícia que você vai adorar. — Yuta parou, criando um segundo de suspense. — Vou desativar a ponte de comunicação em breve.
Irene não respondeu. Por um lado, estava aliviada. Compartilhar seus pensamentos tinha se provado mais desafiador do que havia imaginado. Contudo, aquele comunicado era como a última placa de aviso, antes do fim da linha. Era a confirmação de que o que vivia não era apenas um sonho ou delírio.
— Pense que serão duas vozes a menos, na sua cabeça.
— Eu meio que me acostumei. Vai ser estranho.
— A capacidade de se adaptar a mudanças é a coisa que nós, deuses, invejamos dos humanos. Por hora, você ainda é uma deles. Use isso ao seu favor. — Sobre a mesa de cabeceira, o celular de Irene, esquecido naquela conversa mental, apitou. — Por falar em mortais...
Tentou não permitir que seu coração acelerasse, ao ver o nome de Seulgi no topo da barra de notificações. Falhou. Seus batimentos ficaram tão altos, em seus ouvidos, que não seria uma surpresa que o resto do prédio pudesse escutar.
Um ano havia se passado. Um ano uraniano, que tinha a duração de três translações inteiras da Terra. Irene havia mudado, desde o começo daquele dia, radicalmente. Sua vida havia mudado, sem pedir permissão. Ela simplesmente chegou em casa, e descobriu que todos os seus móveis tinham sido levados, sem nenhum bilhete indicando para onde. E, no entanto, Seulgi prosseguia alheia à tudo.
Não tinha como ela imaginar as mudanças que aconteceram em seu mundo, naquele curto intervalo, apenas algumas horas, entre a última mensagem trocada e aquele instante.
Irene sabia qual seria o conteúdo, antes de correr os olhos pelo texto. Tinha evitado entrar em contato, temendo acordá-la, mas agora a noite se aproximava, a galope, e não havia para onde correr. Seulgi devia estar preocupada. Ela estaria, se estivesse em seu lugar.
— Se me permite... — Yuta arrastou as sílabas, de uma maneira que não era usual. Só por isso, deveria ter adivinhado o que veio a seguir: — Eu sugiro que não desperdice seu pouco tempo na Terra, ponderando sobre aquilo que você sabe que vai fazer.
— E eu sugiro que você experimente dormir, só para variar um pouco.
O riso que chegou até ela era distante, como uma gravação antiga. Era apenas a terceira vez que o ouvia rir, mas não lembrava em nada o som horripilante das outras ocasiões. Era a coisa mais próxima de um som descontraído que poderia se atribuir ao Herdeiro.
Ela ficou chocada ao perceber que sentiria falta dele.
— Vamos nos ver de novo, quando você voltar. — A frase de Dami não tinha nenhuma inflexão, e percebeu que estava praticamente sendo intimada — o que, nem em pesadelos, Irene teria a audácia de ignorar, principalmente vindo de quem vinha. — Pense sobre o que eu te falei, sobre o futuro.
— Eu vou. — Irene deslizou o polegar pela tela do celular, que se apagou por pouco. — Obrigada. Os dois.
— Foi um prazer trabalhar com você, senhorita Bae.
A música parou de tocar. Provavelmente, porque o albúm que ela havia selecionado chegava ao fim. A coincidência, a justaposição daqueles dois silêncios, fez o vazio mais real.
Só que a quietude durou pouco. Aquelas quatro batidas ritmadas na porta eram familiares demais, para Irene as ignorar. Não adiantaria, ele entraria de qualquer forma. E ela preferia manter sua maçaneta intacta, embora muito em breve não fosse fazer diferença.
Wooyoung, parado do outro lado, ofereceu-lhe o esboço de um sorriso de canto, e ergueu uma sacola suspensa em dois dedos.
— Voltamos para o começo, não voltamos?
— Eu estava pensando nisso, agora mesmo. — Ela se afastou. — Entra.
Diferente da primeira vez, agora foi Irene que se acomodou primeiro. Suas pernas estavam pesadas, e provavelmente era melhor permanecer de pé, mas ela não pensou nisso na hora. Hermes deixou a sacola — uma ecobag, na verdade —, com o emblema de alguma loja que a anjo desconhecia, sobre a mesinha de centro. O tilintar de vidro contra vidro provou sua suspeita de que estava diante de algo bem mais forte do que café.
— Como... — pigarreou. — Como foi lá?
Hermes a encarou, e teve certeza de que ele era capaz de ver o caos em seu interior.
— Ele está na sala de cirurgia. Eu fui até lá, quando a reunião acabou, mas não me deixaram entrar. — O deus desviou o olhar para as sacolas. Brincou com a alça de tecido, torcendo-a entre os dedos. — Jennie foi hospitalizada, com uma crise nervosa. Ela estava na equipe que o socorreu. Deve receber alta pela manhã. Taeil, que está cuidando do caso dos dois junto com a irmã, disse que precisa mantê-la em observação por mais algumas horas, para se certificar de que as consequências não foram além do grau temporário.
— E a reunião?
— Está perguntando porque quer saber se Yuta te disse tudo, ou porque ele não disse nada? — Wooyoung relaxou contra o estofado, as mãos unidas sobre o colo, o rosto voltado para ela.
— Não sei — admitiu. — Ele me disse que estamos fora.
— Isso é só a pontinha do iceberg. Essa situação sempre foi maior do que vocês. E acaba de ficar pior. Poseidon conseguiu uma vitória e tanto, lá em cima, convencendo a maioria de que colocar essa responsabilidade nas mãos de alguém tão jovem foi um erro. Simbólica, mas uma vitória. Atena está furiosa.
Irene arqueou uma sobrancelha.
— Deixa eu adivinhar. Isso é péssimo.
— Se estivéssemos falando de qualquer outro deus, seria. Mas é Atena. Péssimo é eufemismo. — Hermes suspirou, revirando os olhos. O deus passou a mão pelo cabelo loiro. Os fios pareciam maiores do que Irene se lembrava, embora apenas algumas horas houvessem se passado. E aqueles sumiços de dias, que para ele eram apenas minutos... Parecia tão óbvio, agora. Como não tinha notado antes que o Tempo estava tão instável? — Ela vai dar um jeito de contornar isso, e depois vai esfregar nos nossos narizes que estávamos errados. É o jeito dela de se vingar: reassumindo o controle da razão.
— Mais cedo... — Irene parou. Wooyoung não sabia sobre a Ponte Reversa, nem poderia. Felizmente, por respeito ao momento ou falta de vontade, ele não parecia estar lendo sua mente. Contornar a verdade era o caminho mais seguro para continuar, agora que tinha começado. — Yuta me disse que o Conselho colocou a continuidade da missão em votação.
Hermes estreitou os olhos.
— Estanho ele ter te dito. O conteúdo das reuniões do Conselho é sigiloso. — Irene sentiu uma gota de suor brotar, e deslizar por sua pele, arrepiando suas costas. — Mas, agora que meu sobrinho está suspenso, não faz muita diferença...
Aquilo era novo. Yuta não tinha mencionado nenhuma punição, além da perda do comando da missão. Que outras coisas ele pode estar escondendo de mim? Mas havia outra coisa que queria saber, sua prioridade do momento.
— Posso saber qual foi o seu voto?
Uma sombra turvou os olhos dele, fazendo do ouro um amarelo-mostarda. Quando falou, sua voz era baixa. Irene nunca tinha trago, para os seus momentos com o deus, o peso da idade dele daquela forma. Além do abismo de poder, ela pôde perceber a lacuna de tempo que havia entre eles.
— Quero encontrar essa Caixa, Irene. Mais do que qualquer um dos meus irmãos, qualquer outro deus.
Irene gostaria de ter perguntado por quê. Dias depois, ela desejaria retornar àquele momento e verbalizar o pensamento, ao invés de jogá-lo para baixo do tapete felpudo da sala e substituí-lo por um infantil e quase aflito:
— O que tem na sacola?
A mudança de foco brusca o surpreendeu — como constatou pela linha que surgiu em sua testa —, e era exatamente o tipo de coisa que ele adorava fazer.
— Alguém está cheia de perguntas, hoje. — Hermes disse, num tom que beirava à malícia. — Sorte que eu conheço a maneira perfeita de extravasar toda essa curiosidade...
Irene observou-o se inclinar e apanhar a sacola. A logomarca, que não tinha conseguido identificar à primeira vista, agora se tornava menos abstrata. Era um ramo de videira.
— Tive tempo para um dedo ou dois de prosa com meu irmãozinho caçula, antes de vir embora. — Hermes disse, retirando uma garrafa e um conjunto de taças do pacote. — Dionísio e eu concordamos que você precisa de uma bebida. E de uma rodada de "Responda se se atrever".
Irene conseguiu dar uma risada meio amarga, afundando a bochecha na palma da mão.
— Eu já disse que te odeio?
— Hoje, ainda não...
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