[Terça-feira, 07 de março.]
Era noite de terça-feira, quando sua mãe recebeu um telefonema avisando que sua avó tinha morrido. Ataque cardíaco.
Seulgi levou um susto. Achou que tivesse escutado errado, ou que estivessem brincando com ela, mas ninguém riu. Nem mesmo a sombra, em sua visão periférica.
Por três dias, ensaiou em sua cabeça como contaria a novidade. A cada ocasião, o discurso se modificava, mas também ia adquirindo contornos mais definidos. Na noite de segunda, ele estava mais ou menos assim:
— Então, eu peguei o copo de outra pessoa na balada e bebi, e quando eu acordei essas coisas estavam por todo o lado, ao meu redor e... Isso não é louco?!
Não era o melhor discurso, obviamente. Mas como proceder, frente a algo completamente desconhecido? Não havia manual, não que ela conhecesse. E só o seu provedor de internet sabia o quanto Seulgi tinha tentado procurar orientações.
Numa prova incontestável de que a Terra não gira, mas capota, Seulgi se viu sentada na pontinha da cama, celular em mãos, e duzentas guias de pesquisa abertas. Sentindo-se a protagonista adolescente do seu filme indie menos favorito, digitando frases que não faziam sentido fora de sua cabeça, cada qual mais constrangedora do que a anterior, foi conduzida à conclusão mais simples e aterrorizante que poderia chegar: ninguém sabia o que fazer.
Havia relatos, claro. Depoimentos em fóruns online, threads do período das creepypastas (meus deuses, isso tinha acontecido, mesmo?) e duas centenas de perfis com ícones de personagens de anime de pessoas relatando experiências sobrenaturais. Porém, mesmo que cada um daqueles desconhecidos de tempos diferentes estivessem falando a verdade (o que ela duvidava muito), não havia muito em comum com o que Seulgi tinha visto e continuava vendo. A exceção mais notável era a sombra, que nesta e naquela história era mencionada, mas somente como um vulto — e não a coisa semi-sólida parada atrás da cadeira de sua irmã, naquele sábado de manhã.
Ninguém mais tinha sentido e escutado, como ela. Nem visto as cores do céu, como se fosse a primeira aurora de todos os tempos. Ou, se tinham, não apareciam para dizer. Seulgi logo decidiu que não seria a pioneira.
Assim, não disse uma palavra durante o sábado. Mas o verdadeiro desafio se deu no domingo, no trabalho, quando Amber notou suas olhadelas indiscretas em um determinado ponto da loja.
— O que é que tu tanto olha pra esses manequins, criatura? — perguntou ele, colocando o queixo sobre seu ombro. Era um gesto natural, depois de anos, mas Seulgi sempre se assustava. Não daquela vez. Não quando podia ouvir as respirações do amigo, do outro lado do cômodo, sem se esforçar nem um pouquinho. Contudo, foi incapaz de impedir que seu coração disparasse.
Não por Liu, mas pelos bonecos, que a encaravam. Eles sabiam que ela podia vê-los, vê-los de verdade.
— Nada. — Respondeu, engolindo em seco. Do outro lado da loja, uma mão de plástico se ergueu, acenando sem mover o pulso. E outra. E outra. — Só acho que não tem porque ter tantos.
Os manequins não gostaram do comentário, nem de ela não ter acenado de volta. Pelas caretas que fizeram, lábios desenhados curvados para baixo, Seulgi deduziu que a tinham julgado antipática. Viraram-se uns para os outros, conversando sem mover as bocas, inclinando-se e afastando-se, caminhando entre as araras como espectros com pernas. Ela, que sempre pensou que havia algo de errado com eles, ficou feliz em descobrir que, felizmente, não era nada tão horrível.
Essa foi uma grande surpresa. Até ali, as criaturas que tinha avistado não eram agressivas. A maioria apenas virava a cabeça (ou cabeças, como aconteceu mais de uma vez), e a observava com curiosidade. Não deviam estar acostumadas a ter um humano boquiaberto as encarando e depois desviando o rosto rapidamente, e nisso empatavam com Seulgi. A sombra, sempre ela, era um caso à parte.
Não falava, não com ela. Seulgi a via sempre, dobrando corredores, se esgueirando pelos cantos como um rato. Mais de uma vez, a encontrou empoleirada na cabeceira de seu irmão, como um papagaio, esticada em direção ao teto como se pudesse perfurá-lo. Não gostava de pensar o que isso poderia significar. Se, por um lado, Jin não esboçava nenhuma reação que pudesse levá-la a acreditar que via a coisa, não encontrou motivos pelos quais ele o faria. Seulgi não estava gritando, mas estava com medo. Por mais que tentasse ler Seokjin, não conseguia extrair nada dele.
A multiplicidade de "nadas" a inquietava.
— Tudo no devido tempo — disse a voz em sua mente. De todas as coisas absurdas, essa foi, de longe, a mais fácil de aceitar. Em partes, porque Seulgi sentia que a conhecia.
— Quem é você? — perguntou. A conhecia, tinha certeza. A voz riu.
— Quem mais eu poderia ser? Eu. Você. Alguma coisa no meio disso.
Calou-se. Isso foi no domingo. Seulgi passou dois dias sem escutá-la, até aquela terça-feira.
— Não pode ser...
Na sua cabeça, o que a mãe estava dizendo era impossível. Vovó Kang era dessas velhas senhoras que se orgulhavam de ter uma saúde de ferro, do tipo que podia passar uma tarde inteira debaixo de uma nevasca sem sentir cócegas. Seulgi tinha se conformado, ainda criança, que viveria muito menos do que ela. Uma mera estupidez infantil, era obrigada a reconhecer.
Tão claro como água, de igual forma, foi a realização de que ela não estava, nem de longe, tão abalada quanto pensou que estaria.
Houve um tempo em que ela e a avó eram, acreditem se quiser, unha e carne. Quando pequena, não havia um final de semana em que não estivessem juntas, mesmo que essa fosse uma viagem de quase quatro horas, ida e volta — a senhora nunca saía, dizia não gostar de deixar suas plantas sem supervisão, mas suas portas estavam sempre abertas e o portão destrancado. Não havia muito o que fazer lá. A vovó era viúva, e sua casa era um museu de memórias do casamento que ela não estava disposta a enterrar tão cedo. Justamente por isso — e por Seulgi ser sua neta favorita, nas palavras dela mesma —, seus domingos juntas eram regados de causos e contos. Sua avó era uma contadora de histórias e tanto, e entristecia a perspectiva de não ouvir mais sua voz, enquanto narrava alguma façanha cabulosa.
Só que esse era um dos únicos pesares. O vazio, que outrora seria gigantesco, mal chegou a fazer um arranhão nas partes mais profundas de seu interior. Acontece que aquela, como tantas outras relações, se perdera com o passar da última década.
Não foi um afastamento planejado. De sua parte, Seulgi jamais teria deixado de comparecer a um de seus encontros semi-oficiais. A avó sabia disso. Podia apenas imaginar a expressão da mulher idosa quando, de um momento para o outro, sua vida se tornou ainda mais solitária. Os pais de Seulgi diziam que era "para não matar vovó de desgosto". No fim, tinha sido o coração, mas não da forma que esperavam.
— O enterro vai ser amanhã. — Sua mãe informou, uma meia hora depois. Seulgi estava diante da pia, gastando mais sabão do que o necessário em um mísero copo, concentrada em não olhar para cima.
Sua falta de emoção era um incômodo. Mas, a grosso modo, pensou que era compreensível. Estava ouvindo o obituário de alguém que, para ela, estava morto há tempos.
— Eu não vou.
Ninguém protestou. Reparou, tardiamente, que não tinham se incomodado em perguntar, a princípio. Duvidava que fossem permanecer em silêncio, se seu comentário fosse outro.
Tentou buscar na memória qual foi a última vez que sua família esteve reunida, por qualquer propósito. Natal, pensou. Deve ter sido no Natal. O dia universal da hipocrisia. Duas dúzias de pessoas que mal se suportavam, sentadas numa mesa longa, usando verde, vermelho e prateado, rindo e brindando como se não vivessem para destruir umas às outras. No último Natal de Seulgi, ela se lembrou. No ano seguinte, não se deu ao trabalho nem de fingir interesse. Logo, pararam de convidá-la. Foi melhor assim.
Agora, cinco anos depois, eles se reuniriam de novo, ao redor de um caixão e coroa de flores.
Da conversa de Yangmi com Junsu, ali mesmo, na cozinha, conseguiu mais alguns detalhes. O velório seria no dia seguinte, e o enterro pela tarde, mas seus pais ficariam na casa que fora de sua avó até a tarde de domingo, pelo menos. Alguma coisa a ver com o testamento, Seulgi não se deu ao trabalho de entender tudo. Era bizarro que estivessem falando de números e dinheiro, quando o corpo mal tinha esfriado. Mesmo ela, que não esteve perto da velha senhora em momento algum de seus anos finais, achava aquilo errado.
Deixou o cômodo antes de fazer ou dizer algo do qual pudesse se arrepender. Não olhou para a sombra, mas sentiu seus olhos de ametista sobre ela, enquanto saia.
O rangido dos degraus continuava o mesmo. Era um alento, agora que seus ouvidos tinham desenvolvido essa sensibilidade irritante. Há três dias, qualquer coisa era motivo para uma dor de cabeça: uma virada mais brusca, o brilho alto de uma tela, o som de algo raspando contra uma superfície. Seulgi, que nunca tinha tido enxaqueca. O pior, é que não havia remédio que fizesse aquilo parar, definitivamente. Nem mesmo os tais comprimidos dados por Irene, que redescobrira nos bolsos de seu casaco, um dia depois de ela tê-los dado com recomendações explícitas:
— Beba um, em até treze horas. Depois, beba outro, na mesma janela de tempo.
Seulgi sentiu- se mal em mentir, quando a Bae perguntou se tinha seguido suas instruções. Mas o que mais ela poderia fazer? A verdade estava fora de cogitação. De todas as pessoas, o estranhamento de Irene doeria mais.
Não correu a mão pela tapeçaria, como fazia de costume. Desde o sábado de manhã, o desenho, tão familiar quanto as linhas em sua palma, virara uma fonte de aflição. As folhas não paravam quietas. Dançavam, para lá e pra cá, sopradas por uma brisa que só deveria existir na imaginação da pessoa que a tecera. Os nomes acompanhavam essa valsa, desenrolando-se como fios de um novelo, embaralhando-se feito cartas. Seulgi não conseguia mais lê-los, passando rapidamente. Era preciso parar, mas parar significava arrumar tempo, e se arriscar a olhar para cima, para o grande Sol no topo.
Não gostava dele antes. Agora, ele a punha nervosa.
Tinha deixado o celular sobre a cama. Aproximando-se dele, notou que haviam notificações pendentes. Como se tornou costume, correu primeiro para as de Irene.
Ainda no sábado, ainda entorpecida pela explosão de formas e vidas que testemunhara do lado de fora, Seulgi correu para Irene. Seus dedos estavam trêmulos, e ela nem saberia dizer quantas vezes pressionou a tecla "delete", antes de enviar um simples "oi". A mensagem não chegou. Falta de internet, ou algo mais? Enviou uma outra, um singelo ponto final. Nada. Foram precisos somente alguns segundos para sua mente começar a viajar, e ela entrar numa espiral de insegurança.
E se Irene não respondesse? E se, como tinha acontecido com Seulgi, alguma coisa tivesse acontecido com ela durante a noite? E se Irene, também, tivesse mudado?
Uma dezena de vezes mais, Seulgi checou a tela, naquela tarde. À medida que o número de mensagens não enviadas aumentava, os espaços entre uma tentativa e outra se alargavam, proporcionalmente. O vazio crescia. A tarde passou, com o sol cedendo espaço para as nuvens carregadas. A noite começou a cair, e a chuva caia com ela. Seu celular apitou, lá pelas nove ou dez, quase matando-a de susto.
Era Irene. Um áudio curto, que passou tão rápido que precisou colocá-lo em loop. As palavras estavam aceleradas, emboladas. Com um pouquinho de dificuldade, e o dobro disso de choque, Seulgi constatou que Irene estava bêbada.
— Desculp' o vá'uo invol'tário. 'conteceram uma' co'sas...
Três dias depois, Seulgi ainda não sabia bem o que tinha acontecido. Irene não parecia disposta a falar e, como naquele momento compartilhava do sentimento, resolveu não pressioná-la. Os áudios em sequência se tornaram uma chamada. Ouviu o que ela tinha para dizer, falou o que tinha vontade de falar. Que, embora tivessem se passado algumas horas, não podia esperar para vê-la de novo.
Uma parte sua estava contando que Irene esqueceria tudo, quando sua ressaca passasse. A outra não. Por falar em ressaca, inclui-se nesse momento a sua mentira. O silêncio que veio do outro lado foi como um trompete, anunciando que a Bae não tinha engolido completamente a sua réplica apressada. Felizmente, antes que tudo se complicasse para o seu lado, e num movimento que Seulgi nunca teria imaginado, Wooyoung tomou o telefone.
— Sinto muito por essa vergonha alheia. — Ele disse. Sua voz estava um pouco arrastada, mas longe do que era a fala de Irene. — Estou filmando tudo para usar contra ela, no futuro, aliás...
— Vocês estão juntos?
Um suspiro, pesado e ligeiramente impaciente.
— Não surta. Estamos ambos completamente vestidos. Bem, por enquanto...
— Não era o que eu estava pensando. — Se apressou em dizer. Era verdade, constatou, chocada. Sua conversa com Amber, mais cedo, ecoava em seus ouvidos. — Mas, já que está aí, cuide dela. Por mim. Irene disse... ela não tem uma boa relação com a bebida.
— Sim, senhora. — E desligou.
A mensagem dessa vez, do presente, era um emoji. Dois corações dançando em volta um do outro. A resposta para uma piada infantil, que se arrependia parcialmente de ter feito. Seus batimentos dispararam.
Considerou contar à ela sobre sua avó, mas declinou da possibilidade no derradeiro momento. Irene ofereceria suporte, não duvidava, mas Seulgi não sabia o que poderia vir depois. Queria absorver isso, sozinha, primeiro. Ter certeza de que não se sentia culpada por seus sentimentos, por sua falta de luto. Devolveu os corações, e passou para a próxima conversa.
Seulgi era uma pessoa simples. Havia apenas três outras criaturas sobre a Terra que se dariam ao trabalho de mandar-lhe uma mensagem depois das dez, quando era sabido que se encontraria em casa. Como acabava de se despedir de uma delas, restavam apenas outras duas alternativas. Cinquenta por cento de chances de acerto. Apesar disso, não foi sem uma sutil surpresa que descobriu se tratar de Sooyoung, e a explicação era breve.
Seulgi não conseguiu se lembrar de quando tinha falado com ela, pela última vez. Tanto na segunda, como naquela terça, sua caminhada para o ponto de ônibus fora estranhamente silenciosa e solitária. Joy não apareceu, nem forneceu justificativa alguma para sua ausência. Somando-se estes ao final de semana, lá se iam quatro dias sem nem um sinal de fumaça vindo da Park.
Percebendo o lapso de tempo, sentiu-se mal. Sooyoung morava a poucas quadras de distância. O que ela estava fazendo, que não tinha ido até lá? Nem mesmo os pais da Park que a viam somente como mais uma alma a ser convertida para sua fé, iam se recusar a dar-lhe notícias da melhor amiga.
Seulgi abriu a mensagem, meio que esperando uma acusação de abandono carregada de drama, ou uma explicação para aquele sumiço repentino. Nem uma coisa, nem outra. O que fez Joy quebrar o silêncio de dias entre elas foi um convite.
Joy😇
Oi Seul!!!!!! Tudo bem? Então, vai ter um evento na igreja, nessa quarta. Queria saber, você pode ir comigo?
|22:34|
Sooyoung era a única pessoa que Seulgi conhecia, que usava múltiplos pontos de exclamação quando escrevia. Ela dizia que eles serviam, e muito bem, para traduzir sua empolgação, muito mais do que vogais repetidos no fim das palavras. Contudo, mesmo sabendo disso, alguma coisa pareceu fora de eixo. Uma certa... frieza.
Não era do feitio de Joy passar dias sem dar notícias, e ainda por cima ressurgir como se nada tivesse acontecido.
Você
oie. tá tudo bem?
Joy😇
Tudo sim! E aí? Você vai, ou não?
Seulgi franziu o nariz, desconfiada. Sem pensar duas vezes, arrastou o dedo sobre o ícone de chamada. Tocou duas vezes, somente.
— O que aconteceu? — Seulgi disparou, não dando a chance de a amiga dizer nada antes disso. Explicações, primeiro, Sooyoung.
A outra riu. Na superfície, era um riso como todos os outros, mas conforme o momento se estendia, os ouvidos subitamente sensíveis de Seulgi não puderam deixar de escutar um leve tom ofegante, no pano de fundo.
— Como assim? Nada, ué.
— Você some por dias e não é nada?
— Tive um mal estar, Seulgi. Não fui pra faculdade nem ontem, nem hoje. — A justificativa deixou-a mais inquieta. Joy não faltava, nunca. Nem quando, raríssimas eram as vezes que viu isso acontecer, adoecia. A Park tinha sangue do estudante meritocrático nas veias. Seu histórico, excluindo-se as trapalhadas a que se sujeitava para defender a amiga, era impecável. — O médico disse que pode ter sido uma intoxicação alimentar. Enfim, não foi nada. Você vai, ou não?
A velocidade da mudança de tema deixou Seulgi assombrada. Novamente, não era algo que a Sooyoung que conhecia desde criança faria, mas não visualizava uma abertura para insistir.
— Eu... hum... não acho que seja uma boa ideia, Soo.
— É um evento aberto, Seul — insistiu, uma oitava mais alto. — Quase não temos desses. Qualquer um pode vir. É o jeito da Igreja de atrair novos fiéis. Já tem tão pouca gente por aqui...
A Kang conteve um suspiro, andando para um lado e para o outro.
— E o que eu preciso fazer?
— Vir. De mente aberta. Ah, e, de preferência, vestindo alguma coisa preta.
Seulgi estremeceu. Ela estava tentando fugir de um velório, e caminhando na direção de algo assustadoramente parecido. Engolindo o pouco de saliva que tinha na boca, lançou mão de sua última carta.
— Não tenho certeza se vou saber chegar lá...
Mas Joy tinha uma resposta pronta para isso, também.
— Esteja no ponto de ônibus às dez. Eu te guio.
✵✵✵
Amber não gostou nada de saber dos planos de Seulgi. Eles tinham acabado de voltar do horário de almoço — numa guinada de 360°, tinham escolhido caminhar duas ruas até o restaurante mais próximo, ao invés de atravessar a avenida para o McDonalds, como vinham fazendo religiosamente há meses —, quando juntou coragem para lhe dizer.
A reação dele não foi nada além do que ela já esperava, mas o nervosismo foi inevitável. E isso nada tinha a ver com os manequins, com os quais, àquela altura, estava começando a se acostumar.
— Ai, Seulgi, não tinha nada melhor pra você fazer, não? Ir se meter logo no meio de um bando de gente doida...
— Amber... — chamou sua atenção. O loiro rolou os olhos, devolvendo para a prateleira o objeto que tinha tirado de lá. Com o avental amarrado na cintura e o espanador, ele estava longe de parecer ameaçador, mas a emoção que passou por seus olhos insinuava algo completamente diferente.
— Não tô contando nenhuma mentira. Sooyoung é uma baita de uma exceção, você sabe. Aquelas pessoas são malucas. E pior: elas se orgulham disso.
Seulgi baixou os olhos para as mãos, cutucando as cutículas.
— Eles têm uma visão diferente das coisas. Nem por isso são maus.
— Acham que todo mundo que não acredita no mesmo que eles vai passar a eternidade cozinhando num caldeirão, ou pior. Andam por aí enchendo o saco, usando a régua deles pra medir gente na rua. Como isso pode não ser maluquice? E desde quando você virou a fada da sensatez? Resolveu advogar pra quem milita errado, ou o quê?
Ergueu o rosto. Uma mecha solta de cabelo fez cócegas em sua pele, e tratou de afastá-la.
— Não é nada disso. Não tô tentando defender ninguém. É só que... — Abriu e fechou as mãos, deixando-as cair sobre a madeira. — Não sei. Eu já aceitei. Acho que tô tentando me convencer de que não vai ser tão ruim assim...
Amber apontou-lhe o espanador, o rosto sério.
— Sabe que você pode me chamar, né? Se alguém te incomodar. Ainda tenho meu réu primário. Ele é todo seu, só precisa chamar.
— Você que é doido, Amber.
O loiro deu uma piscadinha, que mais pareceu uma careta divertida.
— É uma das minhas muitas qualidades, chuchu.
O tempo voou. Num momento, estava com seu amigo, rindo e mudando de assunto, entediados com a falta de movimento na loja. No outro, se despediam. Sem que pudesse se preparar devidamente, Seulgi se viu de frente para o espelho do banheiro, banho tomado, roupas postas, dando os últimos retoques em seu cabelo.
Ninguém poderia dizer que ela não tinha tentado. Alisando a frente da calça preta, a única dessa cor própria para inverno em seu guarda-roupa, desceu as escadas.
Sua casa estava mortalmente vazia, sem seus pais e seus irmãos. Os Kang, em peso, tinham embarcado na velha perua de Junsu, Mina mais empacotada do que uma pamonha, com trocentas roupinhas, uma por cima da outra. As manhãs estavam ficando cada vez mais frias.
Da soleira, Seulgi acompanhou a organização das malas, braços cruzados.
— Tente não parecer tão decepcionada. — Jin sussurrou, às suas costas. Seulgi, que sentira sua aproximação, não esboçou reação. — Estaremos de volta no domingo.
— É uma pena que você não possa ficar lá para sempre.
— Não sonhe tão alto, irmãzinha. As quedas, quando acompanhadas de decepção, são muito mais dolorosas. — Seulgi revirou os olhos. Era tudo o que faltava, Seokjin atacando de filósofo. A buzina da perua chamou seu irmão, cortando o palavrão que poderia ter dito. Enquanto passava por ela, no entanto, Jin teve tempo de comentar, mal escondendo o riso: — Soube que vai à Igreja da sua amiga, hoje. Cuidado para não pegar fogo.
Saindo pela mesma porta, Seulgi se perguntava como ele tivera acesso à essa informação, se ela não tinha falado com ninguém. A resposta que encontrou, ao fechar o portão, era a mais detestável de todas: a sombra. Felizmente, desde que os contornos da família, e de seu irmão, tinham desaparecido além da esquina, Seulgi não voltara a vê-la. Nem por isso se julgava completamente segura ou sozinha naquele sobrado.
Mudando de uma calçada para a outra, refletiu, pela enésima vez, sobre o que estava fazendo. Puxou as mangas da segunda pele, e depois as lapelas da jaqueta pesada. Adam, de Amantes Eternos, não chegava aos pés daquela goticidade. As chances de estar cometendo um erro, não podia deixar de notar, eram tão vastas quanto os anos do vampiro fictício.
As ruas, esvaziadas pelo frio que a obrigava a colocar as mãos em luvas nos bolsos, para aquecê-las melhor, estavam cinzentas. Parada sob o círculo amarelo-manteiga da luz de um poste, na esquina onde se encontravam todas as manhãs, Sooyoung poderia ser a mocinha de um filme trash de terror, se seu modelito não estivesse completamente errado.
Seu cabelo vermelho parecia fogo, e o preto que era tão morto quanto fúnebre em Seulgi, nela ganhava uma elegância digna da Era de Ouro do Cinema. Com seus babados e suas rendas contrastando com a pele pálida, parecia uma boneca sombria de porcelana recém-fugida da estante. Encontrando-a com os olhos, seus lábios, que traziam a mesma cor de seu cabelo, se abriram em um sorriso largo. Joy estendeu a mão e, quando estava perto o bastante para fazê-lo, Seulgi a aceitou.
— Obrigada por vir.
Entrelaçaram os braços, caminhando num ritmo mais calmo até o ponto. Tinham tempo, Sooyoung informou, depois de consultar o celular, que trazia dentro de uma bolsa a tiracolo.
— Não tem porque se preocupar. — Joy deu dois tapinhas em seu braço, o sorriso audível em sua voz. — É só a abertura de uma festividade. Kramreeman. O Festival de Inverno, o fim de um ciclo...
Sooyoung continuou falando, sobre como a festa se estenderia até o final da estação, e de como ela esperava que a neve não fosse tão intensa quanto a do ano passado, porque do contrário teriam de cancelar as atividades ao ar livre, que eram sua parte favorita. De como ela tinha se voluntariado para ajudar as crianças, e quão animadas elas estavam, muitas das quais nunca tinham participado antes. E como, novamente, Seulgi não precisava se preocupar com nada. Gradativamente, ela deixou de ouvir.
As palavras da amiga foram se afastando, turvas como as águas de um rio barrento. Sua visão desfocou, primeiro nos cantos, depois no centro. Conhecia e encontrava pela primeira vez esse cenário. O escuro, quando se abateu sobre ela, estava diferente dos seus apagões anteriores. Muito porque não continuou como breu por mais do que uns segundos. Seulgi piscou, e a luz fez com que suas pálpebras fecharem, em reflexo, seu rosto contraído em uma careta. Ergueu as mãos, não encontrando mais o braço de Joy ao redor do seu. Seus pulsos, quando os viu, estavam nus. Olhando para baixo, viu que usava roupas que não eram suas, e nunca poderiam ser.
Não tinha um mísero vestido longo em seu guarda-roupa. Muito menos um que parecesse um figurino roubado de alguma peça de teatro clássica.
— Seulgi.
O som de seu nome a pegou desprevenida. Assombrada, encarou a figura à sua frente... uma mulher... Ela não estava ali um instante antes, ou estava?
— Quem?... — começou a perguntar, mas parou, levando a mão à garganta. Aquela voz... era a voz que ouvia em sua mente. Quem é você? Ora, quem. Você. Eu. Algo no meio disso...
— Uma mensageira. — Ela encolheu os ombros. Seu cabelo, um conjunto de longas mechas coloridas, caía pouco abaixo de seus quadris largos. — O meu nome é Íris. Faz um tempinho que eu estou tentando falar com você.
Seulgi piscou. Ao redor, tudo era uma sala em branco. Até onde seus olhos podiam ver. Para cima, para baixo e em todos os ângulos. Não parecia haver uma porta e, do que sabia de suas experiências anteriores, bem poderia estar morrendo, e não sabia. Ou, pensou, talvez eu já esteja morta. Isso explicaria esse lugar, e essa pessoa. Pelo menos, era o que pensava.
— Como chegou aqui? — disparou, e então balançou a cabeça. — Onde estou?
Íris deixou a cabeça pender. Um detalhe chamou a atenção da garota, perfurando a bolha de entorpecimento ao seu redor. Os olhos dela, curiosa e assustadoramente, não tinham cor, para além de um branco leitoso e uniforme.
— Chegar? Eu? — Íris sorriu. — Tolinha. Ele não te disse nada, não é? Bom, não importa, resolvo isso depois... — A mulher fez um gesto com a mão, como se afastasse um inseto irritante. — Eu tenho uma mensagem pra você.
— Uma mensagem?
— Você é mesmo um papagaio, né? Sim. Uma mensagem. E vê se grava isso, porque eu não sei se vou conseguir voltar. — Íris fechou seus olhos incolores, seu cabelo colorido flutuando ao redor dela como se estivesse dentro d'água. Quando falou, trazia um tom solene, que arrepiaria até os últimos fios do corpo de Seulgi, se estivesse ocupando-o naquele segundo: — É chegada a hora, herdeira do Sol. O deus exige a sua presença.
✵✵✵
Seulgi meio que esperava explodir em chamas, no momento em que cruzou a soleira da igreja, mas isso não aconteceu. Ela intensificou seu aperto ao redor do braço de Sooyoung, como se, no toque, pudesse se assegurar de que não estava sonhando.
No momento em que desembarcaram do ônibus, cerca de trinta minutos depois de entrarem no número 966 de Seoul, teve certeza de que tinham descido na parada errada. As mãos de Seulgi estavam úmidas de suor, sua nuca arrepiada, e a mente à mil depois da visão (o termo era difícil de pronunciar, até em pensamento). As palavras da estranha mulher, Íris, giravam em sua cabeça como um carrossel. Mas tudo desapareceu quando colocou os olhos sobre a Igreja.
Não era nenhuma construção amigável, de cores claras e letreiros com mensagens convidativas que se erguia diante delas. O que ela via era uma catedral gótica, do tipo que se encontrava nos livros de história e na internet com uma pesquisa simples no navegador. Não era o tipo de edificação que pensaria encontrar no coração da capital da Coréia do Sul. A Igreja se destacava dos prédios ao redor dela, esticando-se em direção ao céu com sua fachada afiada e um pináculo que perfurava o manto da noite estrelada. Duas gárgulas estavam empoleiradas na entrada, recepcionando os recém chegados com seus olhos de pedra e suas feições apavorantes.
A mão de Sooyoung, novamente sobre seu antebraço, a impeliu a continuar andando. Se aproximaram da entrada, e pelas grandes portas duplas escancaradas, onde uma dupla, um casal de preto, recepcionava os recém chegados, teve seus primeiros vislumbres do interior. Paredes de pedra, nuas. Um tapete vermelho que se estendia até onde seus olhos podiam alcançar. Aquele lugar, pensou quando entraram, poderia ter saído de ambos: um pesadelo psicodélico, ou o sonho de arquitetura neogótica de seus dias de aspirante à arquiteta. Com suas janelas em arcos, o teto alto e as velas semi derretidas pendendo de castiçais de ferro e lustres cheios de espelhos, a igreja estava mais perto do que ela descreveria como sendo um castelo assombrado, do que um antro religioso. Mas o que ela entendia de religiões, não é mesmo?
No fundo, pairando sobre algo que parecia um altar, voltado para a entrada, uma imensa tapeçaria. Nela, uma figura que era meio homem, e meio animal, espreitava uma jovem que colhia maçãs de uma árvore. Os chifres não deixavam dúvidas de quem, ou do que se tratava.
Lembrando-se repentinamente das palavras de seu irmão, percebeu, um pouco admirada e tardiamente, que não tinha entrado em combustão.
Era um bom começo.
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