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História Anseios - A semente plantada por inimigos


Escrita por: aeikin

Capítulo 2 - A semente plantada por inimigos


ANSEIOS

So I open my door to my enemies

and I ask could we

wipe the slate clean?

Lost for words - Pink Floyd

 

Não havia ninguém em minha cabeça em três meses. Apenas ela. De todas as formas possíveis, o foco de meu pensamento estava apenas em Riven. Eu sempre me lembrava da essência do ódio na tentativa de refutar meus atos, na tentativa de controlar meus sentimentos e aumentar meu rancor.

Mas estava estagnado. Aqueles sentimentos não eram reais, eu os havia forjado na tentativa de me proteger. Me proteger do que? Todos os meus atos beiravam a autodestruição, então porque? Por que eu insistia em vê-la com ódio quando ele não deixava mais algum resquício?

Todo aquele sentimento morto não mudava nada, eu repetia isso tentando reafirmá-lo. Tentando trazê-lo novamente à vida.

— Eu conheço essa bebedeira. Problemas com mulheres? — Okave me falou em uma antiga provocação.

— Você sabe que não. — Respondi, demonstrando indiferença. Mas minha respiração pareceu ofegante com a mentira, então me obriguei a virar o resto da garrafa de saquê para controlar o pensamento solto.

— Você deveria voltar logo, Yasuo. Nem você mesmo está caindo em suas mentiras.

— E o que eu vou fazer lá? Dar uma dúzia de sementes de bordô beirando ao patético? — Tateei o balcão a procura de outra garrafa. Okave atendeu o meu pedido. — O único que me resta é meu orgulho. E o álcool.

— Então dessa vez realmente há alguém. — Olhei Okave tentando entender o que ele dizia. Minha visão não o focava.

— Não existe ninguém. — A imagem de Riven me dando um dos sacos voltou para minha cabeça. Minha imaginação acrescentou um sorriso na memória, rasgando a sua veracidade.

— Não tinha dado a semente de bordô para sua aprendiz? Está apaixonado por aquela criança? Yasuo você--

— Claro que não. Não é ela. — Respondi rapidamente. — Taliyah voltou para Shurima.

— Então é outra. — Meus olhos o miraram incrédulos. Maldita conversa de bar. Maldito álcool.

— Essa mulher está em minha cabeça. — Cedi à vontade de falar dela, não aguentava-a apenas em meus pensamentos. Falar dela em voz alta a fazia ser real e não um fantasma. — A assassina de meu mestre. — Fiz questão de dizer aquela palavra para reforçar o ódio inexistente.

— Então os boatos são verdadeiros. — Levei a garrafa a boca, mas não tomei.

— Que boatos?

— Que o assassinato do ancião Souma foi solucionado. — Okave finalmente bebeu um pouco de sua própria bebida. — Quando você entrou pela porta achei novamente que era um fugitivo. — Não o respondi. Ele não estava de todo errado. — Me diga então. Por que não a matou?

Essa era a pergunta que eu mais havia respondido.

— Eu a admirei. — E aquilo havia me sentenciado. — Ela aceitou a culpa de uma forma… limpa. De uma forma que eu nunca conseguiria. E também, ela não o assassinou. — Bebi a pequena garrafa inteira em um só gole, o líquido gelado escorria por meu pescoço enquanto sentia o olhar de Okave sobre mim. Aquelas palavras eram difíceis de serem ditas. — Ela pediu para que ele quebrasse uma espada mágica, mas quando ela se quebrou um pedaço o atingiu.

— Um acidente…? Tanto sofrimento por causa de um acidente? — Deixei a pergunta no ar, aquilo não me torturaria mais.

 

 

Já estava debaixo de água por meia hora. Era uma chuva rebelde de primavera, daquelas que se rebelam sem ao menos avisar. Se eu soubesse, esperaria um pouco mais para voltar, mas agora eu já estava perto demais para parar. E também, estava vindo pela direção contrária. Havia apenas um enorme campo aberto e eu já via a conhecida plantação. Eu quis vir por aqui justamente por isso.

Contornava a plantação já chegando debaixo dos pinheiros dourados quando senti o pequeno tremor sobre a terra. Aumentava rapidamente e virei em direção ao som com a mão na bainha, esperando pelo impacto. Um cavalo marrom apareceu em meu campo de visão e levantei minhas mãos na tentativa de acalmá-lo. Observei a sela e consegui puxá-la, enquanto ele se acalmava com o som que eu emitia com minha boca.

Passei a mão em sua cabeça na altura em cima dos olhos indo em direção a crina preta. Olhei dentro de seus olhos.

— Com esses olhos, a vida de um cavalo selvagem não é para você. — Eu o falei como se ele pudesse me entender.

Ouvi o som de passos apressados vindo pela plantação, virei meu corpo em direção a pessoa mesmo com a dificuldade em vê-la. Eu já sabia que era ela mesmo antes de aparecer. Mas o que eu vi me surpreendeu e minha feição nitidamente não soube esconder. Riven corria se arrastando, de uma forma que beirava ao desespero.

Rapidamente peguei a sela do cavalo, o amarrei no tronco de um dos pinheiros e corri em direção a ela.

— Yasuo! — Ela chamou meu nome e seus olhos correram em direção ao cavalo amarrado. — Que alívio.

Olhei também para o cavalo e voltei o olhar sobre ela. No mesmo momento, ela se jogou na grama.

— Riven... — Sussurrei seu nome.

— Eu acabei não vendo o tronco por causa da chuva... — Ela retirou a bota encharcada do pé direito e o colocou de lado. — O resultado foi esse.

Observei bem o pé torcido e a feição cansada em seu rosto. Naquele momento, nenhum pingo de ódio passou pela minha cabeça. Agachei em sua direção e passei meus braços ao redor de suas costas, pegando-a no colo.

— O que você tá fazendo?! — Como um gato, no mesmo momento em que falou ela se desvinculou de meus braços e caiu no chão. Mas ela se apoiou justamente com o pé torcido e colidiu totalmente ao chão.

Eu a olhei desacreditado no que via.

— Não seja teimosa. — Eu estendi minha mão para que ela se levantasse.

O seu olhar me respondeu em um brilho furioso. Balancei minha mão na frente dela e ela finalmente a pegou. Puxei seu corpo e passei o seu braço esquerdo ao meu redor. Guiei nossos corpos até debaixo do pinheiro onde amarrei o cavalo, ali a chuva caía com menos intensidade.

No momento em que ela se sentou eu me sentei ao seu lado. Limpei minhas mãos em minha roupa, fiquei de frente para ela e coloquei seu tornozelo em minha coxa.

— Você já sabe o que eu vou fazer. — Seus olhos queimavam em baixo de sua franja e sua respiração arqueava. Dei o meu braço que não tinha a ombreira para que ela pudesse segurar e no mesmo momento ela afundou seu rosto ali.

Em um movimento ágil girei o tornozelo no sentido contrário. Ouvi o grito abafado em minha própria roupa, exalando todo o calor de sua dor. Sem pensar, virei seu rosto com minha mão e o fiz encarar o meu. Olhei para dentro daqueles olhos atentamente procurando por algo. O que eu esperava com aquele ato? Me deliciar com todo o sofrimento ou absorver toda a dor dela?

Não sei dizer o que ela pensou de meu ato precipitado, sei dizer apenas que ela ficou em silêncio, me deixando carregá-la e colocá-la em cima do cavalo.

 

 

 Asa Konte estava parado em frente a varanda de sua casa. A chuva escorria entre o telhado e me impedia de ver sua face. Quando conseguiu me reconhecer, ele pegou um casaco e veio até Riven. Apenas peguei o casaco de suas mãos e coloquei tampando-a. Novamente carreguei seu corpo.

Ele abriu a porta de sua casa e o ambiente alaranjado se projetou em minha visão. Riven resmungou algumas coisas das quais eu não prestei atenção. Asa voltou correndo para fora para guardar o cavalo no celeiro.

Vi um sofá verde musgo e retirei as almofadas de cima. Insinuei em colocá-la ali, mas a sua mão que estava em meu ombro me apertou com mais força.

— Eu vou molha--

Eu a interrompi com o olhar. Ela não relutou mais e a fiz sentar.

— O que aconteceu? — Asa Konte apareceu e perguntou diretamente a mim ao me olhar nos olhos. Seu rosto transbordava preocupação.

— Ela torceu o pé, tive que colocá-lo no lugar. Você tem algo para o inchaço? Ela também pode--

— Ter febre. — Riven me completou. Olhei-a por cima dos ombros, seus olhos continuavam irados.

Houve uma longa pausa enquanto nos olhávamos.

— Irei preparar um chá com o que temos. — Ao dizer isso, Asa Konte sumiu em outro cômodo.

— Eu teria distorcido. — Ela me disse como se precisasse falar. — Fui treinada pra isso.

— Eu sei.

— Não se esqueça de quem eu fui.

— Nunca esqueço. — Falei pelo canto do olho, me virando para olhar pela janela. Nada passava pela minha cabeça, havia apenas a sensação de algo entalado na garganta. Eu não me sentia mentindo.

Riven bufou. A olhei novamente pelo canto do olho.

— Eu não deveria ser tão orgulhosa... — Ela disse baixo. Esticando sua perna e logo deitando, ela tampou os olhos com o braço. — Isso só acontece com você. Porque é você. Porque eu não posso te dever mais nada.

Voltei a olhar a chuva que escorria pelo vidro.

— Não fiz porque era você.

— Eu sei. De novo. — Sua voz saía abafada. — Isso é o destino?

— Talvez.

— Nunca acreditei nele.

— Você tá bem falante hoje. — Tive que comentar.

— Você salvou o meu cavalo. Ele teria fugido se você não tivesse aparecido... Eu não conseguiria pegá-lo. — Me virei para vê-la, mas ela continuou com os olhos cobertos.

— Então não era seu cavalo.

Seus lábios formaram um sorriso fraco, um sorriso de uma singela derrota.

— Sim, não era. — Andei até o braço do sofá e me encostei ali. Meu corpo inteiro estava de acordo em guardar aquele momento.

 

 

 Deitado novamente no chão da sala de minha antiga casa, eu parecia beirar ao patético. Me lembrava das últimas palavras daquele homem velho e elas ressoavam a noite inteira.

— Ainda a odeia? — Naquele momento eu não esperava por aquele tipo de pergunta. Refleti que Asa Konte sabia ser direto quando queria.

— Não sei. — Respondi com sinceridade. Aquela pergunta exigia sinceridade.

— Você está com medo?

— O quê? Medo do que? — Na hora pareceu uma ofensa. Eu não entendia e não sabia aonde ele queria chegar.

— Tem medo de perder esse sentimento? De que se você perdê-lo, nada te sobrará?

Asa Konte colocou o dedo em uma ferida da qual eu sempre tentava ignorar a existência. Achar um novo meio de recomeçar a vida era, sem dúvida, algo que eu não planejava. Andava de vilarejo em vilarejo, cidade a cidade, até a capital em busca de nada. Nada. Ajudava e fazia a minha presença ser necessária para pessoas que não sabiam nada sobre mim. E mesmo assim eu ia embora, nunca mais conseguiria ficar em apenas um lugar.

Antes quando nada estava resolvido e o meu único objetivo era restaurar minha honra, ainda me metia em brigas a procura de alguém que eu não fazia ideia de quem era. Ansiava com a incerteza e o ódio era meu único alimento. Meu único sentimento.

Então do nada tudo se fez claro como uma superfície de um lago, e sem nenhum esforço partindo de mim. Todo o meu ódio se tornou culpa, uma antiga culpa adormecida em medo.  

Mas era um sentimento que nasceu fadado. Ele voltou a se dissipar sem que eu percebesse, sumindo a cada ato que minha mente insistia em guardar. Mesmo assim, ainda me agarrei aquele fio de sentimento. Fugi novamente, como sempre. Eu tentava me esconder atrás do ódio, pois sim Asa Konte, ele é a única coisa que ainda me resta.

Era.

Toda aquela autodestruição tinha um porquê. Se o meu ódio não era direcionado para Riven, só me sobrava uma única pessoa a odiar.

O sorriso que brincava nos lábios de Riven horas atrás voltou em minha cabeça. Em uma projeção lunática, eu tentava absorver o máximo que conseguia daquele simples gesto. O sorriso não era pra mim, apenas para si mesma. Então como um flash de consciência, perguntei-me se eu deveria deixá-lo entrar. Não. Ele me traria um novo tipo de nova ruína, uma ruína a qual eu ainda desconhecia.

A grande diferença entre nós dois era aceitação. Aquele sorriso demonstrava bem. Se invertêssemos os papéis e o cavalo fosse meu, não aceitaria tão fácil o que eu mesmo disse. E essa aceitação pacífica de Riven não aparentava ser bem construída assim quanto eu achava que fosse. Eu havia captado antigos vestígios de algo que ela já tinha sido, de algo que ela nunca voltaria a ser.

Beirava o cômico. Essa mulher sentia que devia sua vida a mim e ainda assim seu orgulho parecia de ferro. E minha admiração brilhava fraco como se fosse proibida. Esse orgulho me fez perceber que talvez ela já não estivesse tão quebrada assim. Me fez finalmente ver todas as semelhanças.

Algo começou a ferver dentro de mim, uma antiga excitação. Esperança.

Eu odiava aquele tipo de sentimento. Um sentimento progressivo e incerto. Então, eu acabei por fazer o que eu não deveria fazer. Levantei meu corpo e corri a porta do quarto de Yone. Nas palavras de Riven, eu ia me quebrar.  

 

 

 Eu sabia que meus olhos estavam inchados quando apareci na frente da casa de Esuoto Oru. E eu também sabia que Riven não iria aparecer por causa de seu tornozelo. Shava Konte havia dito para seu marido que o telhado do quarto principal estava gotejando e que mandaria Riven para consertar.

Não houve nenhum pedido mas parecia que todos ali sabiam que eu acabaria por consertar o telhado. Talvez apenas Riven ansiava por isso, pois tinha ficado mais agitada ao perceber que não conseguiria ajudar. Ainda lembro de como seus olhos lutavam para esconder um pouco de súplica.

Mas foi somente aquele singelo brilho que me fez vir aqui.

Estávamos na estação das chuvas, era óbvio que o dono da casa precisava consertar o telhado o mais rápido possível. Algumas partes do bambu não estavam perfeitamente alinhadas e acabava por molhar o quarto. Olhando de cima do telhado, analisei qual era a área a ser trocada e quanto de bambu precisaria cortar.

Foi quando me peguei pensando em Riven. Perguntei a mim mesmo como seriam os telhados noxianos e se ela saberia colocar as canoas de bambu corretamente. Dentro de mim sabia que sim. A imaginei observando atentamente o universo que era a nossa arquitetura até que ela entendesse como fazer.

Enquanto cortava o bambu, ainda sentia o cheiro do mofo em meu corpo. Talvez fosse alucinação. Ou talvez não. Ainda conseguia lembrar da sensação de deitar sobre o colchão de onde Yone dormia e de olhar para o teto. E aquele mesmo teto me fez chorar. Quando éramos crianças compartilhávamos o quarto e passávamos a noite contando histórias. Eu gostava de ouvir sobre guerreiros e lutas, mas Yone gostava de contar de terror.

Olhava para o bambu recém cortado e lembrava da sensação de quando cavava sua cova. Naquele tempo, minhas próprias lágrimas me impediam de ver a terra e meu sangue fervia em injustiça. Ontem a noite eu havia derrubado as primeiras de culpa.

No entanto, eu estava errado. Entrei naquele quarto essencialmente para matar minhas esperanças e voltar ao chão, mas retornei com um sentimento intermediário. Talvez pelas minhas expectativas serem baixas nada parecia ter mudado. Aquele fio de sentimento continuava e parecia se fortalecer cada vez mais quando eu encontrava as minhas coisas no quarto de Yone.

Se ele acreditava em minha inocência ou em minha culpa como guerreiro, eu não sei. Mas me pareceu acreditar em mim como irmão.

 

 

Eu terminava de cortar alguns legumes quando escutei o bater na porta. Algo fisgou dentro de mim, a ansiedade tomou conta de minha garganta. Olhei atentamente para a cenoura recém cortada, tentando controlar os meus anseios. Podia ser apenas uma pessoa e parte de mim realmente queria que fosse.

Andei até a porta e olhei para a espada encostada ao lado, corri a madeira e vi a face que ansiava em ver.

— Oi. — Ela me disse. Era a primeira vez que ela mesma vinha ao meu encontro.

— Oi.

Corri a porta insinuando para que ela entrasse. Ela não trazia nada além de si mesma, o que não era tão comum assim. Mas visto que seu tornozelo não estava totalmente recuperado, era de se esperar que não fizesse esforço.

— O cheiro está bom. — Vi Riven indo até a cozinha enquanto fechava a porta. Espreitei os olhos com aquela estranha familiaridade.

— O gosto está melhor ainda. — Encostei na parede e a observei explorando o ambiente. — Já comeu?

— Sim. — Ela começou mexer com a colher na panela onde o caldo fervia. — Mas não vou fazer essa desfeita.

— É sempre tão educada assim? — Debochei em sua cara.

— Só quando a pessoa merece. — Levou a colher até a boca, experimentando um pouco. — Hmmm...

— Sem objeções?

— Adoraria poder fazer alguma, mas eu desconheço essa mistura de temperos. Sei apenas que é feijão. E que tem cenoura.

— Se me deixar terminar poderá conhecer melhor.

Riven se virou para mim. Em seu olhar havia uma singela provocação da qual eu desconhecia até aquele momento. E que eu também não esperava. A luz alaranjada que saía da lamparina presa no teto iluminava a parte onde ela estava da cozinha, enquanto eu permanecia quase obscurecido em uma fraca luz. Ela andou até onde eu me encontrava e me deu a mesma colher. Não consegui decifrar o modo como seus olhos brilhavam.

Quebrei o contato visual e voltei para a panela, colocando as cenouras ali.

— E o tornozelo?

— Tem sido um inferno. — Ela quis dizer baixo, mas eu ouvi mesmo assim.

— Veio aqui porque estava entediada?

— Sim. — Ergui as sobrancelhas com a sinceridade. — Não tinha mais para onde ir. — Eu não disse nada por algum tempo, continuava focado no que fazia, mas ainda absorvia suas palavras. — Esse lugar parece um pouco mais diferente de quando eu vim.

— Eu vou vender a casa.

— Hm... — Não precisava olhar para ela para saber que ela estava sendo cuidadosa com o que falava, diferente de antes. — Não significa mais nada para você?

— Significa. — Respondi com sinceridade.

— Então? — Não consegui dizer nada e o anseio por uma resposta fez meu coração bater mais rápido. Mas eu mesmo não sabia como responder aquela pergunta. Apenas sentia a vontade de vendê-la. De queimá-la.

— A pele de carneiro já está seca. — Mudei de assunto. — Aquele dia não consegui te devolver.

Riven se projetou ao meu lado, seus ombros tocando em meus braços. Olhei sério para ela e vi a maneira como seus cabelos ficavam com uma tonalidade loira naquela luz. Os olhos dourados pareciam brilhar cada vez mais parecendo ouro derretido.

— Eu perguntei para Shava o que a semente de bordô significava. — Voltei a erguer a sobrancelha, escutando atentamente o que ela iria dizer. — E durante todo esse tempo, isso não saiu da minha cabeça...

— Riven, não comece com catequização.

— Não vou. — Ela me olhou firme enquanto retirava duas sementes de seu bolso. — Quero que isso também tenha significado para nós.

— Nós? — Franzi o cenho, não prevendo onde ela queria chegar.

— Precisamos nos odiar? Não podemos... — Seus olhos iam de um lado para o outro, percorrendo o cômodo inteiro como se procurassem algo. — cultivar algo que não seja ódio? — Em um ato beirando o cômico, ela tampou seu rosto com suas duas mãos. — Ahhh, isso parecia era melhor na minha cabeça!

Ri involuntariamente.

— Eu não te odeio. — Senti a risada virando um sorriso ao falar. No mesmo momento, ela me espiou entre seus dedos. — Eu odiava alguém que eu mesmo criei.

— Isso é bom. — Ela sorriu de uma maneira quente que poderia derreter o gelo.

O caldo que fervia sofreu expansão e escorreu pela panela, caindo em minha mão direita.

— Merda. — Praguejei.

Quase imediatamente, a minha mão foi puxada de mim e a torneira foi aberta. Senti a água fria escorrendo contra a ardência. Olhei para aquela região avermelhada como se fosse a coisa mais complexa que via. Vendo aquilo, só conseguia pensar nela.

— Que desastre você é. — Eu sabia que minha boca estava um pouco aberta quando a olhei. Uma antiga sensação adormecida correu por minhas veias quando eu via sua expressão de deboche, me fazendo observar tudo nela. O seu cabelo estava diferente do que antes e brilhava na mesma intensidade de seus olhos.

— Você cortou o cabelo. — Falei o óbvio em voz alta como se fosse algo que apenas eu não tivesse notado.

Ela passou a mão entre os fios e colocou uma mecha por de trás da orelha.

— Você percebeu? — Depois voltou o seu olhar a panela. — Cortei assim que você partiu. Só cresceu um pouco.

Aquela sensação era como um monstro crescendo atrás de mim pelas minhas costas e que parecia querer me engolir. Franzi o cenho tentando entender o que tudo aquilo significava.

Riven mexeu a cabeça curiosa em seu olhar.

— Tem algo de errado?

— Não. — Menti. — É melhor eu pegar seu manto antes que eu o esqueça de novo.

— É melhor mesmo! — Escutei-a dizer enquanto corria a porta do pequeno quintal.

A lua minguante pendia no céu junto com a noite estrelada. Passei a mão para ver se a pele já estava seca, e minha resposta foi o olhar que dei para minha mão. Senti novamente a pelagem fofa contra a pele sensível que eu acabara de queimar. De um jeito ou de outro, aquelas sensações só me foram atribuídas por causa de Riven.

— Uau. — Ouvi sua voz atrás de mim. — Pra que me esconder essa vista? Que egoísta.

Tratei de dobrar o manto da forma qual ela conseguia levar e a entreguei.

— Quer comer aqui fora? — Ela assentiu com a cabeça.

— Posso fazer uma fogueira? — Estava quase chegando a porta quando tive que virar para encará-la.

— Isso é um acampamento? — Falei em displicência.

Com um sorriso infantil nos seus lábios, eu escutei um distante “agora é”.

 

 

 Estávamos sentados em cima da pele recém lavada. Riven fez uma pequena fogueira com pedaços de madeira que antes eram utilizados para isso mesmo ou para o fogão. Tinha trazido a pequena mesa de chão e a comida estava disposta em nossa frente. Eu observava a brasa dançando em direção a lua.

— Isso está realmente bom. Muito bom. Parece algo comum mas os temperos ionianos fazem parecer outra coisa. — Riven levava a tigela vermelha a boca. — Qual é o nome?

— Não tem nome. — Seu rosto pareceu frustrado.

— Como assim não tem nome?

— Minha mãe fazia esse prato mas nunca tive a curiosidade de saber o nome.

— Parece… — Ela levou um pouco mais do caldo de feijão a sua boca e logo depois pegou o frango. — Não dá pra chamar de um só nome! Caldo de feijão com frango? Frango na couve com feijão?

— Não se esqueça dos palmitos.

— Achei que eram aperitivos! — Ela apenas me ouviu suspirar.

— Maldita noxiana, você nunca vai aprender. — Só depois percebi o que disse, mas seu rosto não pareceu se abalar.

— Claro que não vou aprender, você nem me fala o nome disso.

— É porque não tem.

— Não tem ou você não sabe? — Ela ergueu as sobrancelhas.

Tudo o que eu fiz foi levar a garrafa de álcool em meus lábios e apreciar aquele gosto doce. Era uma boa mistura. Olhei para Riven pelo cantos dos olhos e sua feição parecia a de um cachorro que pedia comida.

Estendi a garrafa de vidro amarelo para ela.

Seus olhos foram receosos, mas ela pegou a garrafa de bom grado. Ela era da mesma cor de sua íris. Âmbar. Bebeu um gole e seus lábios ficaram com a tonalidade roxo da pinga. Vi o momento em que ela passou apenas um pouco sua língua no lábio superior a fim de lamber o resto do líquido.

Meus olhos tragavam sua boca.

Quando percebi o que eu estava fazendo, voltei a ver a lua mas ela continuava a mesma. Fechei meus olhos, na tentativa de assumir o controle e afastar os futuros pensamento. Sentia que Riven me olhava, mas permaneci de olhos fechados.

— Que delícia. — Escutei o som do vidro sendo colocado em cima da madeira. — Isso é do que?

— Jaboticaba. É estrangeira. Eu achei numa taberna mais ao norte. — Olhei para a garrafa em cima da mesinha, o volume quase intocado. — Pode beber mais, se quiser.

— Melhor deixar para ocasiões importantes. — Engoli seco quando ela me respondeu isso, o motivo não sei.

— Eu logo vou voltar para lá. Então, pode beber. — Ela insinuou levar a garrafa a boca quando comecei a falar, mas parou quando estava na altura do queixo.

— Vai partir de novo? — Dito isso, bebeu mais um pouco.

Peguei a garrafa de sua mão e também bebi antes que voltasse a ver seus lábios.

— Sim. Não tenho nada para fazer aqui.

— Lá você tem? — Olhei para ela ao meu canto. A resposta parecia ríspida mas seu olhar era de curiosidade.

— Não também.

— Você arrumou o telhado de Oru essa semana. Não me diga que é isso nada. — Encostei o cotovelo na mesa e me virei totalmente para o lado dela.

— Fiz por você. — Vi seus olhos tremendo ao olhar os meus, e depois disso eles fugiram de mim.

Riven jogou seu corpo ao chão, a pele de carneiro tampava a grama que eu havia capinado. Os cabelos curtos se espalharam pela penugem branca quase se misturando.

— Você realmente não me odeia mais. — Ela concluiu, voltando seu rosto para cima a me olhar. — Então o que sente por mim?

— Sinceramente eu não sei. — Respondi olhando o céu. — E você?

— Estou me acostumando a ignorar meus sentimentos.

— Bem vinda ao clube.

 

 

 — Pode deixar a mesa aí, não vai chover. Amanhã eu coloco aqui dentro.

— E a louça?

— Eu realmente não quero acender as lamparinas.

— Preguiçoso. — Eu sorri, mas ela não conseguia ver pela escuridão de minha casa.

Coloquei a mão em cima de seu ombro e a guiei até a entrada. Corri a porta e pude ver seu rosto com a iluminação da rua.

— Asa Konte está te alimentando bem? Você comeu bastante.

— Ninguém manda fazer uma comida gostosa. — Agora que pude notar como ela falava enrolado e como seu rosto estava levemente corado. — Você percebeu. — Ela fechou a cara. — Não sou muito resistente ao álcool.

Tive que rir.

— Consegue voltar? Eu te levo se quiser. — Ela sorriu pela minha preocupação.

— Não vou bater em ninguém no caminho, se é com o que está preocupado. — Riven olhou para o manto dobrado em suas mãos e depois para mim. Seu sorriso morreu no processo. — Não vamos mais fazer esse tipo de coisa.

— Que tipo de coisa? — Franzi o cenho. Vi o modo como ela cerrou seus lábios e imaginei o que ela falaria a seguir. Não parecia fácil.

— Eu realmente me diverti hoje. — Ela disse em bom tom. — Mas eu não mereço isso.

Não consegui chamar o seu nome enquanto a via se afastar.



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