O tempo que Katsuki passou longe de Eijiro poderia ser descrito como um intervalo vazio e perturbador. A sensação de incompletude o estava deixando angustiado, roubando-lhe o sono e a fome. Já não havia atividade capaz de distrair sua atenção ou fazê-lo se sentir melhor e ele se pegou tentado a simplesmente correr para junto dele, mesmo que fosse escorraçado.
Durante esse período ele refletiu sobre o que havia acontecido. Não se martirizava por ter feito o que era certo, mas se sentia tolo por acreditar que haveria justiça. Logo ele que sempre fora maduro tinha sido ingênuo ao não cogitar que algo maior que pudesse impedir o ômega de se libertar daquela situação.
Eijiro não era estúpido, droga. Tampouco passivo, apenas aceitara a inevitabilidade da situação por saber que a rá inútil protestar.
E agora não queria Katsuki por perto e apenas lembrar de seu semblante revoltado fazia o coração do alfa queimar.
A saudade estava deixando-o maluco e ele não conseguia se concentrar em mais nada que não fosse se culpar por sua atitude e lamentar a falta que a presença de Eijiro lhe fazia. A miséria que sentia era quase palpável de tão incômoda e angustiante.
Depois de três dias, não foi mais capaz de conter o desejo de estar com ele e resolveu voltar a sorveteria. Não era certo que o ômega estaria lá depois de tudo o que aconteceu, mesmo assim era melhor do que continuar a não fazer nada sobre aquilo. Katsuki se contentaria apenas de vê-lo de longe se isso acalmasse seu coração.
Se arrumou, garantindo que estaria em sua melhor aparência. Até mesmo tentou disfarçar as olheiras e palidez da pele com um pouco de maquiagem, assombrado pelo receio do que aconteceria quando se reencontrassem. A ideia de ser rejeitado por Eijiro fazia seu estômago revirar de nervosismo, ao mesmo tempo a possibilidade de ouvir sua voz ou presenciar aquele sorriso o fez seguir em frente.
Chegou ao local e, um tanto robótico por causa da tensão nos nervos, empurrou a porta. O coração quase parou ao ver o sorriso amplo de Eijiro enquanto servia um cliente com aquele avental estampado de margaridas simplesmente pavoroso que era de sua tia avó.
Tudo parecia comum, como antes, exceto o fato de ele estar usando um boné vermelho sobre a cabeça. Durante as conversas ele sempre deixou claro que não gostava de usar nada que cobrisse a cabeça por não querer amassar o cabelo.
Ao perceber as laterais da cabeça dele exibindo um corte de cabelo mais curto, o coração de Katsuki caiu. Eijiro amava manter os cabelos longos, presos em um rabo de cavalo ou soltos sobre os ombros, sempre bonitos e em vermelho, orgulhoso de o manter sempre hidratado. Os fios pareciam ter sido reduzidos a poucos milímetros e estavam pretos. As marcas da pintura recente ainda eram visíveis em sua nuca.
Quando seus olhos se encontraram o sorriso de Eijiro desmanchou e ele tocou a aba do boné com a ponta dos dedos, reajustando-o na cabeça ainda que não houvesse necessidade por já estar bem posicionado. Talvez acreditasse que isso pudesse esconder de Katsuki seu novo corte de cabelo. Sua postura otimista mudou para o mais absoluto e perceptível constrangimento.
Katsuki escolheu respeitar a vontade de Eijiro de não o querer por perto e se adiantou para uma das mesas, sentando sem o perturbar. Não tinha sido ignorado ou rejeitado com o olhar indignado que imaginou, o que não significava necessariamente ser bem quisto.
Tinha visto Eijiro e isso lhe bastava.
A tia avó dele quem o atendeu, uma senhorinha agradável, mas já um tanto lenta e cega por causa da idade avançada. Segundo Eijiro, a família dela não se importava com sua vulnerabilidade e sequer se esforçava para ajudá-la a se aposentar. Raras eram as visitas e sempre muito curtas e desinteressadas. Acreditava que esse era um dos motivos que a faziam não desistir da sorveteria, o trabalho a mantinha entretida e afastava suas dores e preocupações.
Assim como Eijiro.
Enquanto esperava pelo pedido, foi impossível não pensar em como aquela situação era ridícula. Katsuki queria se certificar de que Eijiro estava bem, entender o motivo dele ter cortado o cabelo para deixar de fomentar ódio ao cogitar que tinha sido culpa do pai dele, apesar de parecer óbvio. Não podia tirar conclusões precipitadas.
Também queria escutar sua voz. Que ele sentasse no banco da frente e enchesse o seu ouvido com seu falatório ininterrupto, sugerindo, rindo e fazendo caretas enquanto comentava sobre algo. Os olhos chegavam a encher de lágrimas que ele rapidamente segurou só de relembrar.
— Um milk-shake de baunilha. — o som da voz dele fez o coração de Katsuki palpitar, enquanto virava o rosto para o encarar. Eijiro parecia estar tentando manter o profissionalismo, muito embora houvesse certa ansiedade em seu tom de voz — E um sorvete de chocolate com pimenta, cortesia da casa.
Os olhos de Katsuki vagaram para a mesa, suas sobrancelhas contraindo em curiosidade ao ver o item que não tinha pedido. A postura irriquieta dele e os olhares vacilantes e ombros tensos deixavam claro a expectativa que o fazia morder a parte interna das bochechas, como se fosse infartar a qualquer instante.
— Não sabia que tinham esse tipo de sabor exótico. — comentou, sem jeito, e provou uma colherada. Bastou pouco mais de alguns segundos para resmungar em apreciação — É muito gostoso.
Parte da tensão dele pareceu esvair ante a aprovação de Katsuki e seus ombros relaxaram, caindo um pouco.
— Realmente não temos, eu comprei de um outro fornecedor, apenas um pote. Foi difícil, tive que ir até o outro lado da cidade, pegar uma viagem longa e andar mais um pouco para negociar esse sabor.
Katsuki sentiu o coração pulsar de felicidade só de ouvir a voz de Eijiro novamente. Por todos aqueles dias ele temeu nunca mais poder estar com ele, e minutos antes de sair de casa estava tenso, pensando que seria desprezado, mas ali estava o ômega, conversando novamente, ainda que de modo mais contido e envergonhado.
— E porquê se deu a esse trabalho todo?
Por um minuto inteiro, Eijiro apenas se calou, tomando coragem. Então inspirou e sentou no banco à frente de Katsuki como fazia antes.
— Porque eu queria me desculpar com você. — a voz soava baixa, arrependida — Não foi justo o modo como te tratei naquela noite. Você só queria me proteger e fez o que achava ser o correto, e eu o tratei mal, gritei com você, te xinguei e empurrei. Não foi nada másculo ofendê-lo por tentar me ajudar.
— Você estava certo.
Eijiro parou, erguendo os olhos para Katsuki. Tantos sentimentos brigavam dentro dele que era quase difícil catalogar a todos.
— Não, eu não estava.
Katsuki se empertigou diante da negativa dele. Não fazia ideia do que se passava na cabeça de Eijiro, mas não o deixaria se culpar por isso.
— Estava sim. Eu deveria ter desconfiado que havia mais do que me contava, mas eu só concluí que você era submisso e te tratei como idiota.
— Ainda assim, é culpa minha. Acabei te envolvendo nisso quando te contei sobre o meu pai. Me desculpe.
— Dá para parar de se desculpar? — repreendeu-o, irritado — Você não tem culpa de passar por isso, é só um garoto de quatorze anos vítima de agressão de um pai merda que tem apoio do governo para te bater. Não pode se desculpar por desabafar.
Novamente o silêncio permaneceu entre eles, denso, enquanto Eijiro pensava no que dizer. Era óbvia a sua consternação e ele olhou por cima do ombro algumas vezes como que para garantir que a tia avó não tinha escutado sobre a acusação de Katsuki acerca de seu pai.
O esmero e tensão dele deixou o alfa empertigado.
— Ela sabe?
— O quê? — o olhou confuso, um tanto aéreo antes de entender ao que Katsuki se referia — Não, ela não sabe e nem pode saber, é hipertensa, não quero que sofra um colapso por causa disso. Sem contar que está quase surda e não consegue mais guardar muita memória. Melhor deixar do jeito que está, ela já muito com o que lidar. — apoiou o cotovelo na mesa, suspirando — Antes de você, ela era a minha única amiga de verdade, sempre me tratou bem. Sem vocês eu não tenho ao que me apegar, entende?Por isso eu cuido dela, porque faz bem a nós dois. Ambos sabemos o que é ser destratado pela família.
O coração de Katsuki inchou de orgulho e amor ao descobrir ser ainda referência para o ômega. No entanto, parecia errado aceitar aquele grau de importância depois de tê-lo feito passar por uma situação de mais violência.
— Mesmo depois de tudo, você ainda quer falar comigo?
— Claro que quero! — reafirmou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo — Eu gosto muito de você, Bakugou.
O jovem alfa tentou de tudo para não revelar o quão feliz estava com o fato de Eijiro ainda querer sua companhia depois de tudo o que aconteceu. Mesmo não se sentindo merecedor, era óbvio que isso o deixou em êxtase.
Ainda assim precisava confirmar.
— Mas foi por minha causa que o seu pai...
— Não, por favor, eu não quero falar sobre isso. Já passou. — cortou-o apressadamente e ofereceu um de seus famosos sorrisos para potencializar sua suposta superação — Está tudo bem agora, vamos apenas deixar isso de lado.
Aquilo magoou Katsuki. Não por achar que o ômega lhe devia explicações, mas por saber que ele se fechava num gesto de autodefesa.
Eijiro agia sempre assim quando tentava sair de uma conversa que despertava seus gatilhos: sorria e acenava como se nada estivesse acontecendo. Era sua maneira de ignorar a dor. Não estava certo, afinal as pessoas tem um limite para suportar abusos. Contudo, Katsuki não o forçaria nem iria julgar sua conduta dessa vez.
Ao invés disso, resolveu trocar de assunto.
— O que aconteceu com o seu cabelo?
Eijiro engoliu em seco, subitamente envergonhado e pálido ao lembrar do cabelo e Katsuki se arrependeu da pergunta ao ver ele pousar a palma da mão sobre o boné. Os dedos vacilaram um pouco, tremendo e os olhos tremularam, inquietos sem conseguir decidir o que deveriam focar.
— Você reparou? — o sorriso falso estava de volta.
— Como não ia reparar? Você tinha um cabelo longo e ruivo e agora está assim.
Lentamente, Eijiro removeu o bone, tentando ocultar o constrangimento ao forçar o sorriso. Seus olhos brilhavam com lágrimas contidas.
— As vezes uma mudança de visual ajuda a superar certas coisas.
— Não foi você quem fez isso. — afirmou, convicto. Eijiro queria que ele acreditasse que tinha sido sua escolha, mas sua atitude triste e vacilante não convenceu Katsuki.
Novamente o silêncio e os olhos nervosos a encarar tudo ao redor, sem rumo certo. Eijiro parecia travar uma luta interna sobre se valia a pena ou não contar, então Katsuki o ajudou a se decidir, tocando suas mãos por sobre a mesa num gesto suave que indicava companheirismo. Nem mesmo ele sabia de onde tinha vindo a ideia de fazer algo assim, apenas soou certo em sua mente. Dar à ele o suporte que precisava para ser honesto consigo mesmo e com os outros. Eijiro suspirou e se forçou a encará-lo, olhos nos olhos.
— O meu pai achou que a minha rebeldia precisava de correção e disse que perder algo que gosto ia me ensinar a ficar na linha. — ele sorria tentando disfarçar a mágoa, porém as lágrimas correndo por seu rosto já davam a pista — Então ele raspou o meu cabelo na máquina e pintou de preto para me dar uma lição — mordeu o lábio inferior, virando o rosto enquanto lutava para forçar o sorriso e indiferença — Mas tá tudo bem, eu não ligo, é só cabelo, vai crescer de novo, só preciso ter paciência.
Tomado por uma coragem única, Katsuki se levantou de onde estava e sentou ao lado dele, o abraçando na tentativa de confortá-lo. Eijiro tentou escapar, rindo e brincando enquanto alegava estar bem, que não era tanta coisa, mas o alfa o fez se calar o apertando com ainda mais força. Sorrisos falsos não seriam suficiente para convencê-lo dessa vez. Ele finalmente cedeu, chorando contido com o rosto escondido no ombro de Katsuki.
Havia um bolo na garganta de Katsuki e ele também chorava de raiva, indignação, revolta e por se sentir incapaz de resgatar Eijiro daquele inferno ao qual era submetido todos os dias. Por isso ele prometeu a si mesmo que seria um porto seguro para ele, construiria um espaço seguro onde Eijiro pudesse se sentir acolhido e feliz e um dia o tiraria das garras daquele idiota abusivo.
— Eu vou te ajudar a superar essa merda, Eiji. — prometeu com a voz em um tom sinistro.
— Por favor, não tente interferir de novo. Eu só preciso de tempo antes de conseguir sair daquela casa.
—Sim, eu sei. Dessa vez vamos fazer do seu jeito.
Eijiro se afastou limpando o rosto com o antebraço. Estava uma bagunça, bochechas coradas e molhadas, nariz entupido de choro e olhos vermelhos de tanto chorar e Katsuki sentiu desejo que o abraçar e levar para um lugar seguro, longe daquele animal abusivo que se considerava pai.
— Promete?
— Prometo. — beijou-o na testa, um gesto carinhoso realizado e espontâneo.
Os olhos de Eijiro se arregalaram em segundos e suas bochechas coraram enquanto tentava pronunciar uma palavra decente para descrever o que sentia. Somente então a compreensão caiu no colo do alfa que engasgou de vergonha e precisou virar o rosto para não ceder ao sentimento ao ver o sorriso bobo do ômega.
— Obrigado. — Eijiro riu e agarrou Katsuki pelos ombros, o abraçando para beijar sua bochecha. Se fosse uma máquina o sistema do alfa estaria dando pane nesse momento.
— Tudo bem, agora me larga. — empurrou o rosto dele para longe, quase enfartando.
Então veio a risada alta e animada e Katsuki sorriu feliz ao escutar aquele som que por semanas lhe fez tanta falta. Sim, ele seria capaz de tudo para garantir que Eijiro fosse feliz.
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