Aquela estranha frase.
Estava tão intrigada quanto a primeira vez em que encontrei um livro por aqui, como a forma da luz do Sol bateu na prateleira, espelhando seu couro envelhecido, chamando a atenção diretamente para mim.
“Majestade?” – Me veio a voz, e em seguida, a criada dobrou os joelhos, segurando a ponta da sua saia ao se curvar.
Era Lucie, e suas bochechas estavam tão coradas quanto na última vez em que a vi. Os cabelos bem presos, com um brilho preto saindo dos cachos amarrados, não pareciam os mesmos fios descabelados de quando a encontrei na minha cama. Seus olhos acinzentados seguravam o marejamento. – Eu vim para arrumar o quarto da princesa. – As mãos por cima da barriga, o babado do avental quase as encobria. Seu espanto foi um pouco mais contido do que o meu, ela observou as paredes manchadas de tinta, tendo a certeza de quem foi a causadora desta bagunça. – Pelo visto, a cama está arrumada.
Assenti, me levantando. – Valentina está pelo castelo, de certo sujando tudo o que toca.
-O que posso fazer a respeito?
-Nada. – Balancei a cabeça. – Cuidarei dela, se encontrá-la primeiro que o Rei.
A criada engoliu, ela cortou o seu olhar, enquanto suas pernas bambearam com insistência. – Majestade... Sobre... Sobre ontem.
-Por favor. – Levantei a mão num gesto delicado. – Você é a nova amante do meu marido?
As bochechas queimaram mais.
Ela tinha a minha idade. Embora não parecesse entender direito todos os escândalos por baixo da burguesia, da Família Real que comandava Wonderland. – Ele disse que se eu não me deitasse com ele, seria mandada embora. – Justificou.
-Se for mandada embora com uma carta escrita pelo Rei, será desvalorizada por todos os comerciantes.
Ela deu um daqueles sorrisos tristes, que aconteciam quando éramos obrigados a encarar uma realidade. – Ainda bem que a Soberana compreende.
Deixei o livro sobre o criado mudo enfeitado de Valentina: Ele era branco com um pano bordado rosa, uma pequena boneca de porcelana servia de enfeite, enquanto os castiçais continuavam apagados desde o inicio da noite passada. – Seja amante dele. – Olhei para a criada. – Assim me poupa o trabalho de ter relações e fingir dois orgasmos a cada semana. – Pausei. – Só não quero vê-los juntos, sempre fico sem reação diante dessas cenas.
Ainda muito trêmula, Lucie assentiu. Eu a olhava disfarçando certo agradecimento a criada.
Graças a ela, tive uma das melhores noites da minha vida.
O alto som do sino soou aos nossos ouvidos. – Parece que está na hora do café da manhã. – Avisou.
-Sim. Diga a todos que estarei a mesa em um instante.
-Claro, Rainha. – Curvou-se.
[...]
Eu me perguntava se o detalhe de estar com o mesmo vestido que ontem passaria despercebido pelos olhos dos súditos. Mas assim que desci as escadas, fui a atenção principal da sala de jantar. O Rei juntou suas mãos, entrelaçando os dedos e apoiando o queixo entre eles, sua mãe sentava-se no lado esquerdo ao seu. Meredith estava sentada na ponta, aguardando-me para que eu me sentasse do seu lado. McTwisp entre os irmãos Tweedles, de certo sentou-se ali para apartar a pequena discussão que acontecia entre os gêmeos, Mally estava ao lado de Enid, as duas também me encaravam.
Estava com medo, talvez não tenha escondido bem a marca roxa no pescoço.
Me aproximei da mesa, em sintonia, todos arrastaram suas cadeiras e se curvaram para mim. Assenti, passando pela mesa e me sentando na cadeira da extremidade.
Bem de frente ao Stayne, ele cerrou seu único olho. – Onde estava essa noite? – Sua pergunta atraiu os olhares até dos mais distraídos.
Peguei um pedaço de queijo. – Na biblioteca. – A calma em minha resposta não gerou dúvidas ao Rei.
Mas a sua mãe carregava uma desconfiança que me fazia temer. – Como podemos ter certeza? – Sulian questionou, seus lábios valorizaram suas rugas quando foram pressionados.
-Não preciso me preocupar com a opinião dos meus súditos.
Sussurros...
Cochichos...
Foi assim que o café da manhã começou.
Abaixei a cabeça.
-Onde será que está o Tarrant? – Enid perguntou preocupada para Mally, ela fez um gesto de balançar os ombros, sem ter a resposta.
-O rapaz deve estar trabalhando. – Afirmou Sulian.
-Uma hora dessas? – Seu filho retrucou. – Improvável, impossível eu diria. Hightopp é um preguiçoso incompetente... Ele deixa tudo o que faz para última hora.
-Precisamos lembrá-lo dos vestidos do baile. – Avisou McTwisp, o Rei concordou. – Será o primeiro baile da Princesa, e também teremos a honra da presença da mãe do Rei. – Sorriu, era mesmo um bajulador. – Precisa de um vestido que evidencie sua beleza.
A velha riu, suas rugas saltavam do rosto.
Na entrada da sala, Tarrant apareceu. – Bom dia a todos! – Ele exclamava, saltitando ao passar pela sala.
-Você está atrasado. – Disse Stayne, se levantando. – Posso saber o motivo?
Ele acenou. – Reizinho.
Stayne se mantinha sério. – U-uh, sua gravata. – Tarrant fez uma careta, dando um passo a frente e ajeitando-a na ponta dos dedos. – Ela está meio tortinha! Oh, e e-este colarinho está amassado.
-Basta, eu disse basta! – Remexeu os ombros, levantando seu braço e estapeando sua mão. – Eu te fiz uma pergunta.
-Ora! – Riu. – Eu sonhei que tinha acordado! – Respondeu. – S-só que eu estava dormindo! Foi tudo um grande engano! – Sorriu, mantendo-se estático. – Uhn?
O Rei cortou seu olhar, retornando a mesa. – Às vezes me esqueço que é um louco. Sente-se.
Ele se curvou atrapalhadamente. – Meu amor! – Enid acenou para ele, seu sorriso sumiu quando a avistou. – Sente-se aqui, guardei um lugar! – Apalpava a cadeira com assento de camurça. Tão animada.
Ele tirou o seu chapéu. – É c-claro! M-minha... – Pensou. – Bruxinha.
Enid sorriu, agarrando seu braço com vontade quando ele se sentou. Tarrant acomodava-se, pegando um bule para encher sua xícara.
-E o que fez essa noite, Chapeleiro? – Sulian não desistiria.
Pegando uma broa, ele murmurou: - Eu estava dormindo, mulher... presta a atenção...
-O que disse?! – A Velha parecia indignada. Seus olhos verdes a olharam.
-Perdão.
-É um sem educação!
Ele sorriu. – Desculpe.
-Enquanto estava dormindo, passei a noite a cuidar de sua filha, aquela peste dos cabelos bagunçados!
-Por favor. – Apertei as têmporas. – Ah, entrando neste assunto. – Levei meu olhar para a bruxa. – Deu balas de caramelo para a minha filha?
Todos a olharam. Ela largou seu garfo. Mas não largou o braço de Tarrant. – Ela me pediu.
Assenti. – Ela não pode. Ela é muito agitada normalmente. Os médicos chamam de hiperatividade.
-Me perdoe, eu não tinha conhecimento deste detalhe.
-Pois deveria ter. – Estava séria. – Se acontecer de novo não vou perdoá-la.
-O baile está chegando. – Ilosovic terminou o assunto. – Hightopp?
-S-sim? – As bochechas cheias de broa.
Stayne suspirou. – Você terminou o vestido da minha esposa?
Foi assim que ele me olhou pela primeira vez naquela manhã. E nossos olhares carregaram, acidentalmente, a lembrança da noite passada. Algo me dizia que o amor que fizemos entre o calor das cobertas era o motivo para o seu bom humor. A broa desceu mal mastigada pela garganta. – N-não. – Ele não conseguiu voltar o seu olhar para o Rei.
-Pois bem. – Ele se endireitou. – É melhor terminar ainda hoje.
-Majestade. - Ele recobrou de sua sanidade. - E-eu... - Estava um pouco sem graça por admitir. - ainda não comecei o vestido da Rainha. M-mas... - Me olhou outra vez, ele engoliu, o pomo de sua garganta descia na mesma velocidade que sua transpiração. - Nós já escolhemos a cor e o modelo.
Stayne parecia compreensível demais naquela manhã, mas não menos rígido. - Faça-o hoje. Assim que terminar o café.
-Se preferir. - Retomei, talvez tentando esconder a ansiedade e alegria. - Posso encontrá-lo no atelier.
Enid não parecia satisfeita, mas Tarrant concordou sem hesitar.
Os súditos saíram juntos após a primeira refeição do dia. Eu terminava de comer os petiscos salgados e beber o café que esquentava a minha garganta. Sulian e Enid foram as últimas a saírem.
Minha sogra arrastou a cadeira, sem esconder o seu olhar desconfiado para mim. Cortei o olhar, já não suportava suas ameaças silenciosas... Sua vontade de contar para todos o que era um segredo real.
Enid pegou as porcelanas para ajudar as criadas. Sobrando apenas o Rei e eu. - Hoje receberemos a visita do médico, ele está com seus exames.
Assenti. - Com licença, devo providenciar o meu vestido. - Arrastei a cadeira.
Stayne e Enid me viram sair.
Fui ao meu quarto, me ajeitando rapidamente com a ajuda de Meredith.
Enfeitei minhas orelhas com pequenas pérolas, os cabelos estavam presos, segurando minha coroa discreta, com pedrarias azul turquesa.
Dei uma última olhada para o espelho antes de sair.
Passei pelos corredores, chegando até o seu atelier, a porta estava completamente aberta, pronto para atender sua Rainha.
-Olá. – Cheguei devagar, segurando a borda de madeira da sua porta.
Ele se entretinha com os carretéis de linhas que separava, no entanto, virou-se para mim.
-O-oi. – Tarrant deu um meio sorriso.
Eu sei o que acontecia com ele, talvez o mesmo que ocorria comigo: Um certo constrangimento e confusão sobre a noite de ontem.
-Eu vim para você tirar minhas medidas.
-Na v-verdade! – Balançou a cabeça. – Não vai ser preciso, Rainha! Eu sei bem quanto veste.
-Oh. – Dei um novo passo. – Está dizendo que devo ir embora, Tarrant?
Ele engasgou, arregalando os seus olhos. – De f-forma alguma. – Gesticulou para o sofá verde musgo, desocupado. – P-pode me fazer companhia!
Assenti, sentando-me.
Cruzei minhas pernas por baixo dos tecidos. Minhas mãos, que usavam luvas de seda, se juntaram por cima do meu joelho. Eu o via trabalhar agilmente, ele cortava tecidos, costurava enfeites... – Quantos vestidos você ainda precisa fazer?
Ele virou sua cabeça ligeiramente. – S-seis! As... Nobres preferem ter seus vestidos feitos por quem faz os vestidos da Rainha!
Assenti. Vendo-o agitado.
-Eu espero que o meu seja o melhor. – Brinquei, rindo. Ele me acompanhou. – Embora eu não me importe muito.
-O-oh, sim... Eu sei.
Sorri. Levando minha mão para o sofá, o veludo do sofá. Era confortável, quente e macio. Eu me lembrei do motivo de trazê-lo para cá, eu era tola na época e me imaginei deitada sobre o sofá... Enquanto Tarrant deitava-se sobre mim.
Meus dedos passeavam pelo verde musgo. Seu acabamento era feito com uma margem de madeira envernizada. – Sabe o motivo de ter posto este sofá aqui? – Perguntei, entretida.
O Ruivo se virou, sorrindo. – Para sentarem?! – Eu poderia imaginar que era este o motivo que ele acreditava.
Sorri. Gostava de tirar sua inocência quanto aos pequenos detalhes.
-Para fazermos amor. – Alisei o veludo outra vez.
Daqui, pude ouvir o peso de sua respiração. Levantei meus olhos, olhando para o Chapeleiro. – U-uhn, o-oh... I-isso é... N-novidade. – Estava meio tenso quando riu.
Voltou ao que fazia, os dedos tremiam sobre as bordas de seda.
-Está nervoso?
-E-eu... – Embolava-se, vez ou outra evitando me olhar. – E-estou.
Sorri. – Por quê?
Ele deixou a seda. – V-Vossa... V-Vossa M-Majestade só p-pensa nessas c-coisas.
-É só o que vale a pena. – Dei de ombros. – Este... Sentimento.
Atravessei seu atelier.
-Ficará para o baile?
Ele estremeceu, sem perceber que a minha voz soaria tão perto de seus ouvidos. Tarrant se virou para mim, apoiando suas mãos na mesa. -F-ficarei. – Ele engoliu.
Toquei o seu rosto. – Imagino que vai levá-la.
Arfou. – S-sim...
Sorri. – Eu quero ver a reação da Enid quando... – Eu o abracei, envolvendo meus braços pelos seus ombros. – Dançarmos juntos. Assim. Bem colados. – Alisei o seu tórax.
Ele cedia, Tarrant sempre cedia ao que havia dentro de si.
Suas mãos seguraram minha cintura. – E-eu... – A língua umedeceu seus lábios. – Não v-vou dançar com Vossa Majestade, n-não quero problemas. E-está... – Alisei o seu rosto. – O-oh, está claro que a mãe do Rei desconfia de algo.
-Ela me viu no seu corredor hoje cedo. – Deitei meu rosto no seu tórax, onde senti o seu coração bombear. – Ela desconfia que passamos a noite juntos.
Beijei o seu queixo, devagar. Ele apertou minha cintura somente para me afastar do seu corpo, tão rendido ao meu. – Não. – Rocei meu nariz em seu pescoço. – Vamos dançar. Só dançar.
-Alice...
Levantei meu rosto, sorridente. – Eu prometo que não entro mais no assunto de ontem, do que fizemos... Do amor, da paixão... Daqueles toques.
Segurou minha mão.
Rodando-me, esticamos nossos braços, entrelaçando os dedos, ele me trouxe de volta e então, parei sutilmente entre sua barriga. Sorrimos juntos. – Você queria uma dança lenta? – Sussurrou.
-S-sim. – Virei meu pulso para tocar o seu rosto. – Bem lenta... Meu amor.
Alisei seus cabelos, ele me olhava admirado quando se entregou ao beijo, só precisei me ajeitar, quem sabe virar o meu pescoço para que nossos lábios encontrassem o encaixe mais perfeito.
-Ouviu isso? – O insano questionou, afastando nossos rostos.
-Não. – Juntei as sobrancelhas. – Beije-me.
Ele olhava desconfiado para os lados.
E então, dessa vez, ouvi.
Era uma risadinha contida.
Saia num eco sutil, disfarçada.
-Eu conheço essa risada.
-Schiu. – Tarrant gesticulou, concordei.
Ele abriu a porta do toucador.
Ninguém. – Aqui. – Apontei para o closet de madeira.
O Chapeleiro abriu a porta ao puxar os dois pequenos puxadores redondos.
Em meio aos vestidos semi acabados, estava Valentina. – Buh! – Ela gargalhou, caindo no chão.
Tarrant e eu nos olhamos com espanto. – Espere, senhorita! – Segurei firme o seu braço antes que conseguisse se levantar.
O rostinho ainda pintado, o pijama sujo com tinta vermelha e as mãos ressecadas pelas mesmas. Só se podia ver os olhos castanhos e seus lábios, demonstrando um sorriso travesso.
-A senhorita vai tomar um banho e tirar toda essa tinta!
Ela se cansou. – Tio. – Olhou para o Tarrant. – Diz pra mamãe que eu sou uma joaninha! – Bateu o pé.
-Oh, céus... Cismou com isso... – Murmurei.
-E que tal ser um peixinho? – Ele propôs. Sorrimos.
Ela nos olhou. – Tio... – Inclinou a cabeça. – Por que o senhor estava dançando com a mamãe?
Corei. – Valentina, por favor.
-Eu estava vendo tudo! – Avisou. – Uma joaninha que se preze tem que ser bem observadora!
-Você não é uma joaninha!
Seus olhos desprenderam das lágrimas. – Eu sou sim!!! – Gritou mais alto.
-Tudo bem, tudo bem! – Cedi, nossa criança sorriu triunfante. Digo, se é que conseguia sorrir ou mexer todos os músculos do seu rosto com aquela tinta seca, craquelando sua pele. – Por que não vem com a mamãe? Posso te dar um banho de espuma. – Apoiei minhas mãos no joelho. – Não concorda, Chapeleiro?
-Oh. – Ele tentou se expressar como um adulto. – Eu acho uma excelente ideia, Soberana.
Sorrimos. – E depois? – Questionava a princesinha.
-D-depois a mamãe pode brincar com você. – Toquei seus cabelos emaranhados.
-Hum... – Ela pensou, cruzando os braços. – Está bem!
Apanhei sua mão, levantando-me.
Tarrant e eu nos olhamos. – Acho melhor eu ir, então. – Não estava muito satisfeita com aquela decisão.
Mas era a nossa filha.
O pequeno fruto do nosso amor.
Ele me deu um sorriso em resposta, chegando bem devagar ao pé da minha orelha, Tarrant comemorou: - Ela me chamou de tio, m-me chamou duas vezes.
Sorrimos.
Mas não pude respondê-lo, Valentina me puxava, ansiosa para retornar aos corredores, carimbando o piso com a pegada de tinta azul de seus pés. - Espere, senhorita! - Ela corria, e eu a acompanhava, segurando firme sua mão.
Graciosamente, Valentina segurava a saia branca de algodão do seu pijama. Os cabelos esvoaçavam com aquela correria e sua risada só tornava tudo mais meigo. Subimos as escadas, apressadamente.
No entanto, fomos parados pelo Rei.
Ele, claro, não estava sozinho. McTwisp e sua mãe estavam ao seu lado, e o mais surpreendente era ver o Doutor Coelho, segurando alguns papéis. - Majestade. - O médico fez uma mensura.
Todos pareciam tão sérios.
Senti um peso no meu peito, Valentina me olhou, é claro, não compreendia a seriedade daquela situação. - Minha.. Filha. - Forcei o sorriso. A olhando. - Por que não vai brincar um pouco?
-B-brincar? - Era sua palavra favorita. Logo, seus pequenos dentes de leite se revelaram num sorriso. Todos com certeza se perguntavam o motivo da princesa estar toda suja de tinta e com os cabelos bagunçados, embora aquele detalhe se tornasse algo completamente fútil.
Eu a vi correndo pelos corredores, descia as escadas depressa, eu torcia para que ela não caísse como acontece, de vez em quando.
-Íamos ao seu encontro. - Avisou o Rei.
-Não foi preciso. - Retruquei, o olhando. Respirei fundo, levando meu olhar e deixando que os meus olhos passassem por todos os presentes, até chegarem no médico. - D-d-doutor.
-Rainha. - Ele se curvou de novo.
-Algum... Problema com os meus exames?
Ele remexeu o seu bigode, averiguando os papéis. - Por favor. - Stayne gesticulou. - Vamos até o meu quarto, com licença Sulian... McTwisp.
Ambos mensuraram.
Ilosovic o levou para o nosso quarto, que por sorte, não tinha a presença de nenhuma criada trabalhando. Estávamos ansiosos, não tínhamos paciência para despachá-las se houvesse alguma empregada. - Por favor. - Fechei a porta. - Diga logo, e-eu estou ficando aflita.
-Acalme-se, Rainha. - Suas palavras não surtiram efeito. - É melhor se sentar.
-E-eu não quero.
-Pois bem. - O médico começou. - Vossa Alteza se lembra do que houve no dia do seu acidente?
Me esforcei. - Acho que sim. - Ele aguardou. - Eu... Saí com a minha filha e meu marido... - Stayne assentia, concordando, sério. - Nós fomos a um bosque bem próximo ao Castelo, pensamos que não haveria perigo... - Engoli. - Mas... Depois de alguns minutos eu não encontrei a minha filha. - Pausei. - Eu decidi procurá-la, estava um pouco tensa, apesar da presença dos soldados...
-Sim. Prossiga.
Hesitei. - Entre as árvores, e-eu vi um vulto... Era alguém alto. Vestido de preto, o rosto estava coberto com uma máscara, até mesmo um pano improvisado. - Balancei a cabeça. - Estava com um punhal... Este alguém ia acertar a minha filha quando me atirei na frente dela e... E... ele me atingiu.
-Onde atingiu?
-Aqui. - Alisei o local, a lateral da minha barriga. - Foram cinco facadas. Eu tive a sensação que... Este alguém estava com raiva por que não conseguiu ferir minha filha. E então, ele quis se vingar de mim.
-Creio que.. - O bigode felpudo se mexia. - Ele teve a sua vingança, não apenas com a Rainha mas... - Direcionou o olhar. - Isso também o atinge, Soberano.
Stayne se levantou da cadeira que se sentava. - Do que está falando?
A tensão se instalava no ambiente. O Coelho abriu os papéis, dando uma breve lida antes de prosseguir. - A Rainha estava grávida.
Senti um peso. Desmaiaria a qualquer instante.
Apalpei a camurça antes de me sentar, Stayne me ajudou. - N-não estou mais?
Minha respiração apresentava dificuldades, os olhos incharam instantaneamente as lágrimas surgiram. O médico ficou em silêncio, e nós sabíamos o que aquilo significava. - Infelizmente, não.
Chorei, levando a mão aos lábios. - Entenda, Majestade. Não haveria como saber... Vossa Alteza fez os exames, algumas semanas atrás.
-Deu negativo. - Respondeu o Rei.
-Sim.
Ele e o médico conversavam.
Eu alisava a minha barriga, que há uns dias atrás carregava um bebê. Um inocente bebê. - Vocês tentaram outras vezes após os exames?
-Tentamos.
-O feto deveria ter alguns dias... Uma semana, no máximo. Estava extremamente frágil, por conta do pouco tempo que existia.- Deu de ombros. - Sendo mais claro, ele não sobreviveria com aquelas facadas, creio que todo aquele sangue vinha do ventre real.
-M-m-meu f-filho. - Meus lábios estremeceram.
O Rei, assim como eu, também se encontrava estarrecido. Ele apoiou suas mãos na penteadeira, olhando com firmeza para o reflexo do espelho enquanto fechava os seus punhos devagar, porém com força. Eu alisava o meu ventre vazio, imaginando por um momento, que o meu filho e eu ainda estávamos ligados. Como não pude perceber isso antes? Nem mesmo tive o privilégio de sentir os sintomas e então, desconfiar do fato de que um bebê morava em mim. “Vou deixá-los a sós. “ – Avisou o médico antes de se curvar e ir, deixando as papeladas dos exames sobre o colchão.
-Meu bebê... – Afundei minha cabeça no estofado da cadeira. As lágrimas desciam quente, minhas mãos estremeciam.
Stayne ainda olhava fixamente para o espelho. Como se enxergasse o próprio culpado, bem diante dos seus olhos. – Maldição... – Ele socou a madeira, meus perfumes caíram. – Maldição!
O encarei em silêncio. Vendo-o caminhar pelo quarto. – Quando finalmente minha esposa engravida, o meu filho morre! – Ele tirou sua coroa, observando por alguns instantes o ouro reluzente. Ele a arremessaria pelo tamanho da raiva que o atingia. Mas o Rei se controlou, roendo os dentes, ele recolocou a coroa, devolvendo o peso para a sua cabeça e vigiando a janela. – Eu não deveria ter feito isso...
Me recuperei. As lágrimas e o choque com aquela notícia não seriam capazes de fazer com que eu me esquecesse daquela frase... Aquela frase baixa, vinda de um sussurro arrependido. – O que você não deveria ter feito?! – Elevei minha voz. Ele se virou um pouco espantado, ergui o meu rosto, como se o desafiasse.
Ele se recompôs. – Estava claro que era uma péssima ideia sairmos naquele dia! Eu não deveria ter feito isso! Ter concordado com você!
-Eu não tive culpa! Eu fiz o que qualquer mãe faria, eu salvei a minha filha do pior!
-E matou o meu filho!
-Não diga absurdos, Stayne! – Me aproximei. – Ele foi morto por alguém desconhecido! Que queria o mal da Valentina!
-Aquela garota! – Ele jogou o criado mudo. – Ela é a culpada!
-Que ser humano doentio consegue culpar uma criança inocente?!
-Eu!! – Ele cuspiu, socando o seu peito. Dei alguns passos para trás. – Eu, Alice! Eu a culpo por tudo! Ela deveria estar morta, enterrada há sete palmos, intoxicando o solo!
-Você está louco. – Chorei. – C-conversaremos quando se acalmar.
Abri a porta.
Deparando-me com Enid no corredor, ela recostava sua orelha na parede que ligava o meu quarto.
Nos olhamos, e pude ver suas bochechas criando a cor da vergonha.
Ela balbuciou antes de se explicar. No entanto, passei por ela.
Ela era o menor dos meus problemas.
[...]
A biblioteca era um bom lugar para chorar. Seu silêncio de certa forma me confortava. Eu estava sozinha, sentada a uma das mesas. – Me perdoe, meu bebê. – Olhei para o teto, a cada cinco metros havia um lustre feito de cristal. Meus dedos circulavam o meu ventre.
Eu o imaginava criança, talvez com a idade de Valentina. Correndo pelo castelo com sua irmã.
Os cabelos loiros e ondulados, ou quem sabe, um outro bebê ruivo...
Como o seu pai.
“Oi! “
Sorri devagar, mas mal tive tempo de limpar o meu rosto e tentar fingir felicidade. Valentina corria pela biblioteca. Não demorou para me encontrar, eu estava localizada entre as primeiras mesas.
-Mamãe!
-Oi, meu amor. – Eu a peguei, finalmente o rosto estava livre da tinta e suas mãos estavam enluvadas e protegidas. Ela se sentou no meu colo, aquecendo-se entre meus braços. Eu sentia o cheiro de talco de maçã, o seu preferido. Os cabelos estavam penteados, não havia nem mesmo um fio desalinhado. Ela usava um chapéu simples. – Estava me procurando?
-Estava! – Sorriu. – Ai a Tia Dith disse que a senhora estava aqui! Vamos brincar! – Ela puxava a minha manga.
Suspirei. – A mamãe não se sente muito bem.
Ela mudou sua expressão. – Por quê?
Aqueles olhos amendoados não mereciam descobrir aquela verdade tão cruel. Toquei o seu rosto. – Eu não sei. – Me esforcei para sorrir. – É só a tristeza.
-Ah. – Ela tocou o queixo com o indicador. – Aquele bichinho da tristeza.
Assenti.
E assim, o silêncio retomou. Ela deitou entre o meu peito, levantando o rostinho. – Mamãe, eu te amo.
A abracei mais. Como tinha facilidade em dizer...
-Eu também.
Valentina sorriu. – Mamãe... – Ela se ajeitou, não se manteria quieta. – Eu quero perguntar.
-Pois pergunte. – Sorri.
Ela brincou com os dedos. – Por que a senhora estava abraçando o moço que faz chapéus? – Ela esticou os braços. – Assim... Um abraço grandão.
-E-ele... – Aquela pergunta me pegara de surpresa. – Sabe... Ele costumava ser o meu melhor amigo.
-V-verdade?! – Fez sua careta de surpresa.
-Sim. – Mexi em seus cachos.
-Ele ainda é amiguinho?
-Um pouco. – Murmurei. – O tempo passa e... A gente acaba se afastando de quem gostamos.
-E o papai?
Estranhei. – O que tem o seu pai, minha filha?
-Ele não é muito amiguinho não...
-O seu pai é um pouco distante. – Suspirei. – Mas o importante é que ele me ama, e ama você.
Ela acreditou na mentira.
E eu me senti culpada. Mas eu estava entre iludi-la ou entristecê-la, não existia uma boa opção.
-Eu acho que vou brincar. – Balançou os pés, eu a coloquei no chão.
E beijei a sua testa.
Valentina saltitava, eu a assistia sair. Pensando em seu irmão... Pensando naquela notícia que mudou a trajetória do meu dia. Já não era um dia feliz, nem mesmo a lembrança da noite passada poderia me arrancar um sorriso sincero.
Era o segundo bebê que eu perdia.
Talvez fosse minha culpa...
Talvez eu tenha sido descuidada. Como fui com a minha primeira gravidez.
Respirei fundo, estava sozinha outra vez, e tentava convencer a mim mesma que deveria dar esta notícia ao Tarrant.
Assim, me levantei, ajeitando a saia amarrotada do meu vestido, a maldita anágua não me incomodava mais do que a minha consciência. Passei pelos corredores, observando as prateleiras, todas lotadas de livro...
[...]
Demorei até bater em sua porta, eu sabia que Tarrant estava no atelier desde o início da manhã. Do lado de dentro, conseguia ouvir o som da sua máquina de costura, esgotando meus tímpanos. Não obtive resposta, mas girei a maçaneta.
Ele estava só, cabisbaixo. Os olhos concentrados no tecido azul royal os empurravam para a agulha que fazia o trabalho de costurar. - Oi, Tarrant.
O verde esmeralda parou em mim.
Me olhou em silêncio e voltou ao seu trabalho.
Estremeci. - Está tudo bem?
-Ocupado. - A máquina costurava, vi suas pernas pedalando para que funcionasse.
Fiquei em silêncio, o observando. - É o meu vestido?
-Sim.
Sorri. - Está bonito.
-Obrigado. - Ele pegou uma fita, fazendo um laço numa rapidez que meus olhos não conseguiam acompanhar.
Estiquei minhas costas, tencionando os meus ombros. - Eu gostaria de conversar com você, é muito importante... - Fechei os olhos, o tec tec me irritava. - o que vou lhe dizer.
Ele parou.
-S-sim? - Inclinou de leve a sua cabeça, cerrando os olhos e sorrindo para mim.
Foi então que entendi tudo.
É claro... Como não me lembrei de Enid?
-Ela te contou.
Tarrant voltou ao que fazia. - Como pode reagir dessa forma? E-eu estou muito triste.
-Você mentiu para mim. - Acusou com mágoa, e claro, com aquele belo sotaque escocês. -M-mentiu quando falou que não estava grávida do Rei.
-Não... - Murmurei. - Não, Tarrant... V-você entendeu errado! - Olhei para trás.
Fechei a porta, girando a maçaneta. Ele me olhou sério. Os lábios pressionados, e o rosto erguido, esperando uma explicação com um toque explícito de raiva e ciúmes. - Eu fiz os e-exames... Eu não menti, e-eu não estava grávida quando todos suspeitavam! Tarren... Esse filho era nosso.
-N-não era! - Levantou. - E-e-eu... Gostaria de pensar que s-sim, m-mas você está mentindo.
Me aproximei. - Você se lembra. Eu sei que lembra. Estávamos no coreto e eu... - Alisei o seu braço, ele se afastou. - o levei para o seu quarto, você me pôs sobre a mesa. - Sorri, ele me olhava.
-Eu lembro disso. - Admitiu, suspirando.
No entanto, o seu orgulho mantinha-se intacto. - Mas eu não te engravidei. - Sussurrou.
Ele evitava me olhar quando toquei o seu rosto. - Eu sei que, às vezes, a sua loucura o torna um pouco inocente. Há casos que--
Riu. Afastando minha mão. - E-eu não preciso de uma aula, Majestade!
-V-você pode ter deixado escapar um pouco antes... antes de sair de mim, i-isso é normal. F-foi o que aconteceu! - Pausei. - Estão f-fazendo estudos... Os m-médicos comprovam q-que--
-S-será que eles podem comprovar que o filho era meu? Uhn? Uhn? Ou e-era mesmo do Rei, afinal, v-você não se satisfaz só com um!
Aquiesci.
Me afastando. - Alice, m-me perdoe... - Eu caminhava para a porta quando ele me segurou.
-Deixe-me.
Tarrant tocou a minha cintura, me trazendo para perto. - Me perdoe... Eu não queria magoá-la.
-Nunca pensei que me diria isso.
Nos olhamos. - Eu falei sem querer. - Alisou o meu rosto. - E-eu não queria que fosse assim... E-eu disse para você que eu não queria dividi-la. Ainda não quero.
##
Peguei do meu bolso o pequeno tubo de líquido preto.
Usaria apenas uma gota, e seria mais do que o suficiente. Me olhei no espelho, a coroa reluzente que envolvia meus cabelos negros diziam para mim que eu era o Rei. E eu poderia fazer o que quiser.
Estava certo em minha decisão.
''Seria um plano simples.''
Ajeitei minha túnica. Guardando o tubo entre seus pelos macios.
Alice estava na biblioteca, assim me contou McTwisp, quando perguntei.
Girei a maçaneta da porta.
Só precisei caminhar um pouco, no mesmo corredor era o quarto da bastardinha.
Eu o abri. Parando na entrada. - O que significa isso?! - Uma das criadas se assustou com o meu grito.
Era Lucie, que tratou de se virar. - Soberano. - Ignorei sua mensura, pisando no carpete sujo de tinta.
-E essas paredes?! O que significa toda essa sujeira?!
-Eu estava tentando limpar. - Balançou o pano úmido em mãos. - Parece que a princesa fez um pouco de bagunça, mas... - Sorriu. - A Rainha disse que não tem problema, ela pode chamar alguém para repintar o quarto, hoje mesmo.
-E onde está aquela garota?
A criada hesitou com o tom de minha voz. - Responda!!
-E-eu não sei, Soberano... Quem cuida dela de manhã é a Celine.
-Ela tomou o café?
-Creio que sim.
Assenti. - Provavelmente não está com fome agora. - Murmurei. Olhando para os lados. - Não tenho tempo a perder...
-Como disse?
A olhei. - Lucie, quero que traga um pouco de leite para a bastarda. Eu vou esperar aqui.
-É pra já, Soberano. - Se curvou.
-Vá, anda! Depressa! - A enxotei, ela saiu amedrontada. - Bagunceira... - Observei as paredes outra vez, seria impossível limpar a tinta seca apenas com um pano úmido. - Eu não sei como conseguem ser tão pacientes!
Caminhava por seu quarto, observando as bonecas e outros mimos sobre a prateleira.
Uma pintura de quando era um bebê. Emoldurada com bordas de ouro. - Quantas regalias para uma criança ilegítima! - Fechei os punhos. - Mas isso vai acabar...
Seu quarto era grande, havia um baú com mais brinquedos, os que ela não usava com frequência.
Sua cama, diferente do resto, parecia impecável e arrumada, havia um teto com rendas e um brinquedinho que girava com o vento. Um ursinho de pelúcia estava sentado comportadamente no meio do seu colchão. - Brinquedos! - Eu o joguei. - Não é merecedora de tantos caprichos! - Olhei outra vez. - Sujou as paredes... Deveria dormir na masmorra por isso!
Avistei um bloco de papel, era grande, talvez um pouco mais alto do que Valentina. Estava num suporte de madeira, que o segurava com firmeza para que não caísse.
Me aproximei. Havia alguns desenhos, a maioria era de insetos ou peixes. Mas entre os desenhos ela pintara Alice e eu. Ela estava no meio, segurávamos suas mãos, e o Sol estava tão perto da minha cabeça que me fazia acreditar que ela me via como um gigante. Atrás da Alice, o Castelo de Marmoreal não tinha sido terminado, mas havia nuvens, até mesmo algumas aves voavam ao redor. - Hum. Algum talento essa garotinha inútil deveria ter!
-Soberano?
A criada chegou com uma bandeja. - Perfeito. - Sorri. - Deixe no criado mudo.
-Eu coloquei o leite nesta caneca vermelha. É sua preferida.
Assenti. - Você pode sair agora. - Ela se preparava para se curvar. - Ah... - Dei um sorriso malicioso. - Nos encontraremos mais tarde.
Lucie corou. - Como quiser, Alteza.
Esperei que saísse, ela deixou a porta entre aberta.
Fui cuidadoso em fechar as cortinas de suas janelas, antes, dei uma breve espiada para o jardim. Só havia uns poucos súditos por lá, a maioria cuidando das árvores e arbustos.
-Espero que isso dê certo. - Murmurei, me aproximando do criado mudo. Havia um pequeno pote de alumínio que guardava o açúcar, a tal caneca vermelha e uma colher de sobremesa.
Adocei, remexendo o leite com a colher.
Era a vez de usar o tubo.
Eu o peguei com cuidado, abrindo a sua tampa. O líquido não tinha cheiro, apenas uma cor intensa e escura. Eu torcia mentalmente para que a cor não influenciasse no leite, embora, se acontecesse, ela poderia achar que fosse chocolate quente, perfeito para aquele tempo nublado.
Pinguei uma gota.
Depois mais uma, só para ter certeza que iria funcionar.
Peguei a colher. - ''Papai?''
A criança abriu mais a porta, paradinha na entrada, os pés calçavam sua sapatilha vermelha, ela usava um vestidinho creme e um chapéu simples. Arfei com a sua presença. - Papai, papai! - Deixei que ela abraçasse a minha perna. - O senhor não está na sala do trono? - Suas perguntas irritantes começaram cedo demais.
-Se eu estou aqui, é por que eu não estou lá!
Ela riu de minha resposta. - Papai. - Roçou a cabeça em minha coxa.
-Vamos, me largue... - Apertei o seu braço. - O papai veio te ver. - Misturei o leite, bem apressado.
-Vamos brincar?
Arfei. - Não. Eu te trouxe leite.
-Eu estou com a barriguinha cheia. - Murmurou, alisando a região. - Vem brincar! - Ela me puxou para a sua mesinha de chá. - Eu vou pegar a Loretta, o senhor senta aqui.
Friccionei os joelhos ao me sentar na minúscula cadeira de plástico, eu me perguntava como ela suportava o meu peso. - O ursinho está no chão! As vezes ele foge da cama que nem eu! - Riu a garota, pegando a pelúcia. - Aqui. - Me entregou. Coloquei o leite na mesinha de chá. - Segura ele assim! Eu vou pegar a Loretta!
-Você já disse...
Ela abriu o baú. Talvez fosse o baú de seus brinquedos favoritos.
Retornou toda animada para a mesinha de chá. - O que a caneca está fazendo aqui? - Intrigada, questionou.
-É leite.
Ela torceu o nariz. - O senhor está velho para tomar leite.
-É para você!! – Explodi. – Tome, tome esta caneca! – Entreguei, enfiando entre seus dentes. – Beba!
Ela gargalhou, se lambuzando com a mistura que provavelmente não chegou a sua garganta. – O senhor está que nem a mamãe quando cuida de mim. – Segurou a caneca entre os dedos, sorrindo. – Ela não tem paciência com leite. – Limpou a borda dos lábios.
-Hum. – Cruzei os braços, insatisfeito. – É melhor que tome logo.
Ela recostou a caneca. – O senhor tem que brincar!
-Certo, certo! – Deixei o urso na cadeira depois de me levantar, prevendo que ela cederia ao meu peso a qualquer instante.
Valentina espalhava o pequeno jogo de xícaras de porcelanas. – O chá das cinco está pronto. O senhor ursinho quer um bolo para acompanhar?
-É, ele... Quer. Eu acho...
Ela cruzou os braços. – Tem que ter certeza! Tem broa também! – Gesticulou para a mesa vazia.
-Sendo assim, eu quero broa. – Respondi. – Por que não bebe o leite? Pode fazer de conta que é um chá.
-Chá? – Ela se sentiu tentada, observando a bebida morna. – Papai, de onde vem o leite?
Suspirei. Malditas distrações. – Ele vem da caixa.
-Mas que caixa?
Fiquei em silêncio, ela hesitava. – Sinto saudades do leite da mamãe. Bebi o leite da mamãe por dois aninhos. Agora eu tenho assim. – Ela esticou três dedos. – Às vezes a mamãe botava o leite numa caneca igual a essa, para eu largar a maminha.
-Arg. – Virei o rosto. – Que coisa mais nojenta... Vamos, pare de falar besteiras! E não espere esfriar!
-Papai, eu estou com a barriguinha cheia. – Reclamou. – Eu não vou beber agora! – Ela levantou. – Vem ver os meus desenhos, vem! – Amassava a minha túnica ao puxar.
-Eu já vi todos! – Perdia minha paciência.
A maldita bastardinha dos cabelos ruivos parou no carpete. – Ah, então... – Ela olhou para os lados, tentando evitar encarar minha expressão carrancuda.
Estava ficando sem ideias, apesar de muitos brinquedos, seu quarto era limitado. – Eu quero pular na cama! – Segurou minha mão.
Permiti que subisse, quem sabe se cansaria e desejaria uma caneca de leite para renovar suas energias. Ela sentou-se no colchão. – Papai, tira meus sapatinhos! – Balançava os pés.
Arfei. – Certo... – Puxei seu sapatinho vermelho e bem lustrado, após afrouxar a pequena fivela. O pezinho coberto por uma meia de seda e babados nas pontas. – Me dê o outro. – Fiz o mesmo procedimento.
Ela engatinhou por seu colchão macio, colocando-se de pé. Olhou para mim quando virou seu rosto por cima do ombro. – Vamos, pule! – Pedi, mal humorado.
Valentina compartilhou sua risada após os primeiros pulos, eram tímidos, contidos...
Mas logo os seus pés pediam por mais. -E-eu v-vou c-cai-r! – Dizia entre risos, olhando o chão e esticando os braços.
Eu torcia para que acontecesse, embora fosse um medo tolo. A criança continuava a pular. – Segura, segura!
-Valentina, o que quer?! – Berrei, pressionando as têmporas
Ela mantinha seus braços esticados. Esperando que eu os pegasse.
O som das molas pressionadas me aborreciam. Mas não eram capazes de me tirar do sério.
Não como aquele sorriso... As sardinhas no rosto da filha de Hightopp. Aquela bastarda tola, ela realmente acreditava que eu esticaria meus braços para pegá-la. Os pés ainda pulavam, ela não controlava a coordenação do corpo quando passou a saltitar para a beirada. – Você vai cair! – Alertei. “E espero que quebre o braço.”
-Segura! – Ameaçava chorar.
Me aproximei.
Ela pulou em meus braços, me desequilibrei mas consegui pegá-la.
No entanto, a minha coroa caiu, o som de seu impacto no piso me fez olhar diretamente para o chão. Ela rolou, parando próxima a parede. - Ihhh... - A menina fez uma careta. - Desculpa.
Quanto ódio senti de sua voz, aquela palavra, seus lábios se mexendo ao proferirem. Por que aquela garota não parava quieta? Por que tinha que ser como Hightopp?!
A tirei do meu colo, buscando a coroa.
Seu estrago foi maior do que imaginei: Um amassado na lateral e uma pedra de rubi, desprendida de seu lugar. - Você quebrou minha coroa! - Coroa esta que amo mais do que a si mesma.
A menina se encolheu. - Desgraçada!
-D-desculpa. Desculpa papai.
Puxei o meu cinto, dobrando o couro em duas partes, acertei suas coxas, ela gritou, levando a mão ao local e levando mais uma cintada, dessa vez mais forte. Apertei o seu braço, seu choro me causava um prazer sem igual.
Ela deveria morrer no lugar do meu filho.
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