~*~
Ela passava a todo momento pelo corredor.
Eu repousava a minha cabeça no travesseiro macio, na verdade, dois deles, um por cima do outro. Minha visão já não era tão perfeita como antes, tudo ao meu redor parecia um grande borrão de muitas cores mas eu não deixava de venerá-la, a bela loira da pele de porcelana... E o que falar dos seus olhos? Eles jamais perderiam o seu encanto, principalmente quando insistiam em olhar para mim.
Meu corpo estava raquítico e amolecido, às vezes, eu estremecia com o frio que batia em minha pele, tão sensível com as marcas do mercúrio.
Afastei as cobertas, passando a tremer. Me esforcei para me sentar, tudo ainda turvo e lento ao meu redor...
Eu não sabia dizer se aquilo era real. Minha cabeça não parava, ela dava voltas e voltas, levando o meu pensamento. Tentei equilibrar meus pés cobertos por minhas meias favoritas no chão.
-O que está fazendo? - Alice parou na entrada do nosso quarto, e correu em minha direção. - Deite-se. - Ela abandonou a xícara que segurava, dobrando as cobertas até o meu pescoço, guardando meus braços por dentro do edredom macio que me esquentava. - Precisa repousar. - Tocou os meus cabelos com apego. - Até que melhore.
-Alice... - Chamei o seu nome bem devagar. Os meus lábios estavam tão secos quanto a ponta dos meus dedos. - E-eu não vou melhorar.
-Não diga isso. - Estava confiante. - Beba. - Encaixou a porcelana da xícara entre os meus lábios.
A bebida quente com sabor de água com sabão.
Fechei os olhos, sentindo-a queimar minha garganta abaixo.
Sorte que havia um pequeno balde de madeira, bem ao lado da nossa cama. Certo refluxo vinha toda a vez que eu tomava qualquer tipo de bebida. Alice tocou minhas costas, pronta para me dar pequenas batidinhas, mas pude engolir. Tonto. - Você quer chá? - Ofereceu. Fechei meus olhos e neguei. - Tem certeza? Assim pode tirar o gosto ruim da boca.
-S-sabão...
Ela suspirou. - Pela sétima vez, não é sabão. - Me deitou de novo, afofando os travesseiros. - O que está sentindo?
-D-dor... Enjoo... T-tontura... Oh... - Engoli. - Metal, g-gosto de metal.
A vi torcer seus lábios. Não era um bom sinal. - E o que mais? - Tocou em meus cabelos.
Engoli, venerando sua beleza incomparável. - Eu... N-não sei. - Virei o meu rosto.
Alice levantou, descontente. - Você sabe mas não quer me dizer. - Caminhou até uma prateleira e se pôs nas pontas dos pés. - Encontrei esse livro, ele está meio queimado. - Abria as páginas. - Mas é um livro medicinal.
-F-foi ai que e-encontrou a r-receita da água com s-sabão?
Ela abaixou os seus ombros. - Tarren, isso não tem graça. Diga-me de uma vez o que está sentindo e não me oculte nenhum sintoma.
Eu a olhei, meus lábios ressecados tremiam. Eu me esforçava para que a minha visão não permanecesse tão turva. - E-estou morrendo.
-Não seja dramático. - Tentou me passar confiança de que não acreditava nisso. Mas me olhou com pena e tristeza. - Você não está morrendo. - Quis frisar.
Mas a sua voz saiu em meio a um pranto escondido entre suas emoções.
Ajeitou as cobertas outra vez, insistindo para que os meus braços ficassem por baixo do edredom. - Eu vou acordar a Valentina. E depois te trago um suco de laranja e algumas broas.
Beijou minha testa.
~*~
Quando abri meus olhos tudo era uma realidade diferente. Minha cabeça continuava confusa, agora com aquele emaranhado de pensamentos. Em minhas mãos estava a poção do futuro. Guardei com cuidado o pouco do que sobrou em meu bolso. A maçaneta de seu banheiro me fez ajeitar rapidamente minha gravata borboleta. Enid saia do banho desfilando com uma toalha amarrada em volta do corpo nu.
-Ainda não terminou de se vestir? – Ela envolveu seu braço em meu pescoço e sorriu, juntando nossas testas. – Foi maravilhoso me visitar essa manhã, obrigada.
-Uh! N-não foi nada demais! Na v-verdade eu nem mesmo vim para... – Ajeitei minha gola, enquanto ela caminhava para sua penteadeira. – Isso! Mas já que aconteceu... – Ri.
Ela se limitou a me encarar, com um sorriso de canto enquanto seus olhos negros fitavam-me intensamente. Ela se sentou em seu banco estofado, em frente ao espelho de sua penteadeira preta com margem dourada.
Permitiu que a toalha deslizasse por seu corpo nu, revelando suas curvas. Desviei meu olhar quando minha respiração pesou. Ela esticou o seu braço até o manequim. – Não alcanço o meu vestido. – Disse com um certo tom de sensualidade.
Me aproximei e fiz o favor de lhe entregar, tentando não observar os seus seios abundantes, ela nunca saberia que eu prefiro os menores.
Assim, se levantou. Quem sabe tentando me seduzir uma segunda vez naquela manhã. Suas caras e bocas já não me impressionavam.
Por mais que elas fossem diferentes, eu sempre conseguia encontrar algo que me lembrasse a Rainha.
-Vire-se. – Ela me obedeceu, passei as mangas bufantes por seus braços e puxei as pregas, apertando suas costas. – Uhn, está linda!
Sorrimos juntos.
-Tarrant, eu não vou conseguir esperar todos esses meses. – Ela se virou, me encarando. Assim, suspirou. – Eu ainda sinto algo muito forte entre você e a Alice. Quando estão juntos, às vezes até mesmo quando jantamos na companhia dos demais. – Meus olhos a seguiam pelo quarto. Ela foi até a porta, onde girou a chave. – Eu não quero perdê-lo.
Eu não sabia o que dizer.
Prosseguiu: -Então... Por que esperar se podemos nos casar em poucos dias?
Alarguei minha gravata. – P-poucos dias? – Ainda assim, sentia minha garganta apertar.
Ela sorriu. – Sim! A casa do clã já está construída, podemos deixar o Castelo e você nunca mais verá o Rei e a Rainha. Eles te machucaram tanto, meu amor. – Tocou o meu rosto. – E quanto a sua filha, ela pode nos visitar sempre que quiser.
-E... A Mally? E m-meus amigos?
-Nós podemos pensar em um jeito. Podemos nos casar em uma semana.
Seus lábios se cansavam de sorrir.
-E-eu preciso pensar! – Exclamei, um tanto exaltado demais quando passei por ela e pela porta.
Me apressei nos corredores, olhei para trás e lá estava ela, parada no batente de sua porta, me observando partir. Corri um pouco mais, e na distração acabei esbarrando em algo duro como o tronco forte de uma árvore.
Com o choque, quase caí para trás.
Mas as mãos do Rei tiveram o impulso de me segurar. – Olhe por onde andas, Hightopp!
-P-perdão. – Tirei apressadamente meu chapéu, era mediano com uma pequena pena de corvo verde espetada no lado. – Reizinho. – Eu o ajudei a ajeitar sua túnica de pele de carneiro. – Uhn, está novinho em folha! – Apertei uma de suas bochechas.
Ele estapeou minha mão. – Já que eu o encontrei... – Pressionou o meu ombro, beliscando meu músculo. Fiz uma careta de dor enquanto ele me guiava para o lado oposto. – Vamos ter uma conversinha.
-Uh! Como está a família?
Ele me olhou. – Prefiro uma conversa mais direta, Hightopp. Ouvi rumores de que Valentina tem andado com você ultimamente. Eu tenho percebido que a piolhenta por fim me deixou em paz. Mas não me agrada a ideia de que ela estaria apegada a você.
-Ela... – Engoli. – É minha filha, Soberano.
Ele levantou o seu dedo, o levando até o meu rosto como um punhal afiado. – Errado. Ela é minha filha. E pelos deuses, afaste-se da Alice! – O Rei me parou, apertando meus dois ombros. – Eu sei que provavelmente ainda está apaixonado por minha esposa. E eu sei também que ela gosta de você.
Arregalei os olhos.
-S-sem querer afirmar que a Rainha possa estar apaixonada por mim... M-mas... – Fiz uma careta. – P-por que acha isso, Reizinho? – Ri.
-Eu a ouvi conversando com Meredith, ouvi de seus próprios lábios. – Facilmente revelou. – Eu não quero que Valentina descubra a verdade. Logo... – Cerrou seu olho. – Alice deixará de ser a Rainha que conhecemos.
Mirei meu olhar de desconfiança. – I-isso é uma ameaça?
-Oh, não. É claro que não. – Me deu batidinhas nas costas, como se fossemos velhos amigos. Mas meu olhar não mudou. – Bom, eu tenho muito a fazer.
Tirei meu chapéu involuntariamente.
E Stayne passou, esbarrando em meu ombro e desnivelando minha faixa de carretéis.
Voltei para o quarto, minha mente estava confusa e perturbada. Talvez eu precisasse apenas de uma xícara de chá.
Havia um bule de porcelana me aguardando sobre a escrivaninha. Eu enchi minha xícara com a bebida quente, sua fumaça subia até a altura dos meus olhos.
Aquela fumaça que cheirava a hortelã recém colhido. Minha insanidade me fazia enxergar formas e cores através dela. E os devaneios, diferente da fumaça, não se dissipavam com facilidade.
~*~
Era por volta de 1829.
Eu voltava para a casa após ter a companhia de Thackery e Cheshire. O jardim de minha casa parecia movimentado, abri o portãozinho, percebendo que minha irmã, Zynna, tinha sua companhia especial.
Era a primeira vez que eu via seu pretendente misterioso. Era um homem alto dos cabelos castanhos, ele usava um paletó adequado para a ocasião.
Eles bebiam chá.
Fui até eles, Zynna ria, sem perceber a minha presença até que seu namorado apontou para mim. Ela se virou. – Ah. – Levantaram. – Este é o meu irmão idiota, ele tem onze anos.
-Prazer. – Falamos juntos e apertamos as mãos.
-Agora vá embora, Tarrant. – Ela me empurrou.
-V-você gosta de chapéus?
Zynna arfou.
Mas seu pretendente parecia mais disposto em responder. – Eu gosto. – Ele disse sentando e buscando a xícara próxima. – Seu pai já me ofereceu um. – Sorriu.
-Isso é ótimo. – Zynna se sentou, pegando a mão monstruosa de seu parceiro. – Tarrant, saia daqui.
Sorri. – Gosta de que tipo de chapéu?
-Eu prefiro as boinas.
Deixei de sorrir. – Uma cartola ficaria mais adequado!
Ele se interessou. – É mesmo?
-Com uma cartola... – Peguei a fita métrica e passei por sua cabeça. – Você p-poderia cortejar moças mais interessantes!
-Agora você foi longe demais. – Zynna estava revoltada quando apertou o meu braço. – Eugene é um cavalheiro, como pode sugerir esse tipo de comportamento? – Ela murmurava enquanto atravessávamos o jardim. – Pai! – Chegamos nos fundos, onde ela me largou, insatisfeita. – Tarrant está nos incomodando!
Zanik afastou seu óculos e me olhou por cima da lente. Ele trabalhava em alguns chapéus.
-Você não tem nada melhor para fazer ao invés de aborrecer a sua irmã?
-O s-senhor não estava lá! E-ela me chamou de idiota!
-Não vai convencer o papai com suas mentiras cabeludas.
-Não é mentira! – Gritei.
-Já chega por hoje, Tarrant. – Zanik balançou o bule. – Deixe sua irmã e tome um pouco de chá.
-O que o senhor está fazendo?
Ele suspirou profundamente, ajeitando seus óculos. – Um chapéu.
Peguei o chá. – Eu posso ajudar?! – Sorri.
-Sempre que me oferece ajuda alguma coisa sai errado.
Arrastei um banquinho. Ele parou o que fazia para ver as pernas de madeira estragando o seu gramado. – P-perdão! – Sorri.
-Apenas... Fique quietinho, meu filho.
Ele voltou para o chapéu. – Pai...
Afastou os óculos. – Sim, Tarrant?
-Por que a Zynna me expulsou?
-Ela quer ficar sozinha com o seu pretendente. Mas a sua mãe está vigiando os dois na sala...
-Eles vão casar?
-Vão. – Afirmou. – Ou eu colocarei as garras nele.
Bebi. – O senhor também quer casar com ele?
Ele parou o que fazia para me olhar, rosnando como um cão selvagem. – É q-que o senhor d-disse que c-colocaria as garras nele! – ri. – E-entende?
-Tarrant, já chega de suas abobrinhas. Vá encontrar outra pessoa para atazanar ou então fique quieto!
-Eu vou ficar quieto! – Sorri. Ajuntando meus joelhos.
Passaram-se alguns segundos. Ele trabalhava minuciosamente em seu chapéu coco.
– Pai?
Zanik puxou seus cabelos ruivos. – O que foi dessa vez, Tarrant?!
-O senhor acha que vou... – Peguei um pequeno utensílio sobre sua mesa de trabalho. – Me casar um dia?
-Se encontrar alguma moça louca o bastante. – Parou o que fazia. – Sim.
Sorri. – Ah, é m-mesmo?
Ele assentiu. – Um bom cavalheiro deve se comprometer de verdade e se casar o quanto antes.
-E o que mais?
-Deve respeitá-la. E ser honesto com ela.
-Honesto? D-dizer com honestidade quando o vestido não lhe caí bem?!
-Se amá-la mesmo, ela sempre estará bonita aos seus olhos. Não importa o que estiver usando.
-E se eu não amá-la?
-Se estiver comprometido, deverá se casar de qualquer forma. – Levantou, levando o bule. – Comprometimento é o que nos faz homens.
~*~
O chá quase esfriava quando sacudi a cabeça. Devaneios envolvendo Zanik Hightopp, com toda a certeza, eram os mais difíceis de se livrar. Me levantei, apoiando meus punhos na maldita escrivaninha.
Toquei o frasco da poção que peguei emprestado quando enfiei minhas mãos no bolso do meu terno. Observei o conteúdo reluzente, o tubo brilhava para mim como se me chamasse para o futuro.
Da mesma forma como acabara de mergulhar no passado, poderia provar um pouco do meu futuro.
No entanto, eu não o faria daquela forma.
Saí do meu quarto a procura da minha noiva. Enid penteava seus longos cabelos escorridos quando abri sua porta sem permissão. Pensava nos princípios que o meu pai me ensinara, pensava em seu cavalheirismo, e pensava que ele jamais estaria nessa situação.
-Eu não vou te deixar. – Tive muiteza para afirmar.
Era o certo a fazer.
Ela soltou sua escova de madeira, arrastando o banco acolchoado onde se sentara. Estava espantada com a minha presença, mas seus olhos brilhavam radiantes. Assim, correu para me abraçar. - Está me dizendo que podemos antecipar o casamento?
Se ela fosse uma boa feiticeira saberia o quanto eu demonstrava incerteza.
Engoli. - Sim. - Nos soltamos quando rodopiei meu pulso. - Nos casaremos quando quiser!
Discretamente, peguei o frasco guardado em meu bolso. - Há algum problema? - Ela questionou, tentando espiar por cima dos meus ombros.
O guardei depressa. - Só... T-tenho algumas dúvidas.
Enid assentiu. - Quais dúvidas?
Me aproximei, sentando-me na sua cama. - Se lembra uma vez em que me levou para o futuro? Eu estava com a... - Hesitei, eu sabia que o seu nome não causava uma boa reação em minha noiva. - Alice... A Valen também... E... Os m-meus pais...
-Lembro. - Me cortou. - Aquele futuro não vai acontecer. Eu sei que parece difícil definir algo concreto na sua cabeça.
-E-eu briguei com o Tempo.
Ela parou com o que dizia. - O quê?
Abaixei a cabeça. - Às vezes ele não faz nem tic e nem tac! Deve ser por isso que o meu futuro é tão confuso. - Retirei o meu chapéu, embaralhando meus cabelos entre os dedos. - N-não é?
-Quem sabe... - Balançou os ombros. - Se você lembra mesmo daquele futuro, deve se lembrar também do que eu lhe disse. - Passeava por seu quarto, enquanto sua saia voava, mostrando as pernas. - Sobre a lágrima.
-E-eu não tenho certeza da resposta.
-Como não? Eu te amo. - Afirmou, parecendo ofendida. - Mas eu estou sendo uma boa feiticeira. - Sorriu. - Estou permitindo que a Rainha entre no livro e descubra a resposta pois eu sei que ela não vai conseguir.
-Então... – Pressionei a borda de meu chapéu. Não era um dos meus favoritos. – A lágrima é mesmo sua?
Ela assentiu. – Casando-se comigo é a certeza de que terá sua família de volta.
[...]
Passaram-se duas horas desde que retornei para o atelier, estava trabalhando em um novo vestido para a Rainha. Me sentava no banco, de frente para minha máquina de costura, dessa vez ela não era usada. Eu tentava me concentrar apenas nos paetês... Eu os colava um por um, usando um pincel pequeno e delicado, e o mercúrio, que chegava a queimar as pontas das cerdas feitas de bigode de gatos, era o meu mais resistente pincel. Eu pincelava com cuidado, levando os paetês para a lateral da cintura do novo vestido.
Não estava bem lúcido. Fazia duas horas que o cheiro do mercúrio exalava com força em meu atelier. As vezes, precisava parar para tomar duas xícaras de chá e admirar o jardim pela vista da janela.
No entanto, isso já não fazia o seu efeito.
Minha cabeça dava voltas e voltas, sentia o meu corpo fraco com o ar intoxicado do ambiente.
Mas precisava fazer o meu trabalho, e terminar o vestido o quanto antes.
Ouvi o arrastar da minha porta, embora estivesse concentrado demais para dar atenção, aquela voz animada e infantil me fez olhar diretamente para a entrada. ''Papai '' foi a palavra que me atraiu.
Valentina estava tão linda com o seu vestido lilás bem claro com camadas feitas por babados na saia. Parei imediatamente o que fazia para fechar a porta. Me agachei, ela tampava o nariz com o cheiro forte. - O que faz aqui?
-Vim ver o senhor. - Assim ela me abraçou.
Retribui. Meio cansado e confuso.
Lembrei do meu infeliz encontro com o Rei no corredor. - É perigoso. - Queria alertá-la. Mas sua expressão neutra me convencia de que ela não entenderia. Olhei para os lados, mesmo sabendo que estávamos só. - Está sentindo esse cheiro? - Assentiu. - Você precisa ir.
-Eu não me importo com o cheiro. - Me abraçou novamente. - Me deixe ficar com o senhor... - Pedia enquanto deitava sua cabeça no meu ombro. - Só um pouquinho...
Pensei em meu pai, e nas tantas vezes em que pedi sua companhia e ele me negou.
Eu não poderia ser como ele. - Está bem. - Sorri, a trazendo para o meu colo.
A pus sentada sobre a mesa, perto da máquina de costura. - Eu estou colando esses paetês! Preciso estar bem concentrado!
-É do pincel que vem esse cheiro?
Tomei de suas mãos. - É q-querida, é a c-cola. - Tossi.
-É um cheiro forte, papai. - Ela balançava suas pernas curtas, que com certeza demorariam anos para alcançarem o chão.
-É p-por isso que a danadinha t-tem que ir embora! - Brinquei ao tocar a ponta do seu nariz.
Ela riu. - Eu e-estou me escondendo. - Tampou seus lábios como um segredo, mas os olhos sapecas não hesitavam em me mostrar.
-Hum. - Parei com os paetês e peguei o chá. - E de q-quem e-está se e-escondendo?
Voltou a rir. - Schiu. - Levou seu dedo aos lábios quando assoprou. - Não conta pra ninguém.
-Eu n-não vou contar. - Revelei, apoiando meus braços sobre a mesa de costura depois de dar um novo gole no chá de gengibre.
Ela ainda balançava suas pequenas pernas, batendo o calcanhar escondido por sua sapatilha preta. - E-eu estou me escondendo do Rei.
Não tive tempo de ter qualquer reação quanto aquele pequeno segredo. ''Valentina?!'' - Chamava a voz no corredor do atelier, era a voz do Stayne, sem dúvidas...
Nunca antes ouvi uma voz tão revoltada e impaciente. Ela ria sem se preocupar quando eu a peguei nos braços. Lembrando das ordens do Rei. - Fique ai! - Não pensei em um bom lugar, apenas a escondi atrás da cortina, era longa, e tampava até mesmo a ponta dos seus pés.
Stayne abriu a porta do atelier sem permissão. - Não adianta se esconder, princesinha! O papai sabe onde você está! - Ele dizia olhando para os lados, até mirar seu olho em mim. Caminhou firme em minha direção. - Onde ela está, Hightopp?
Apertou a gola de meu terno. - E-eu não sei do q-que e-está f-falando, Soberano!
Ele parou o que estava prestes a dizer: - Mas que cheiro forte é esse?!
Ri. - Mercúrio. Q-quer um pouquinho?
Assim me soltou, limpando suas mãos na bela túnica que vestia. - Me esqueço que você é um homem contaminado.
Peguei a lata de cola. - Uhn? Está fresquinho!
-Afaste-se essa coisa de mim! - Bradou. - Eu vim aqui por que aquela peste me roubou o Anel Real.
-E-eu não a vi, M-Majestade.
-Curioso... - Caminhou, intrigado. - Tenho certeza que vi aquela coisinha correndo para esse corredor. - Ele abriu os primeiros armários, deparando-se com vestidos e roupas em construção. - Diga-me, Hightopp?! Como suporta este cheiro terrível?!
Olhei para os lados. - E-eu e-estou a-acostumado! - Ri ao revelar.
-Pois eu prefiro que abra essas janelas. - Cruzou o atelier em direção a janela.
Mas eu o impedi, me colocando na frente da cortina. - Uh, e-esse janela está emperrada! Q-que tal aquela, uhn? - Eu o levei para o outro canto.
Abri. - Está bem melhor! N-não acha, Reizinho?! - O guiei. - Sabe o que também acho?! Vossa Majestade precisa de um trato! - Paramos no espelho, onde ele se distraiu com o seu reflexo triunfante. - D-deveria c-cortar um pouco os seus cabelos e vestir a-algo m-mais puxado para o vinho! F-ficaria p-perfeito em Vossa Majestade!
Ele sorriu, se olhando. Peguei a fita métrica, medindo seus braços.
Valentina afastou as cortinas. Gesticulei para que ela saísse.
- Está me enrolando, Hightopp! - Ele ameaçou se virar e ela voltou para as cortinas.
-V-veja bem! - Eu o levei até o rolo de tecidos. - Esse v-vinho... T-toque!
Ele tocou, seus dedos passeavam pelo tecido meio fosco. - Hum. É bonito.
Assenti. - O Soberano f-ficaria poderoso, de f-fato, usando essa c-cor!
-De qualquer forma. - Ele se soltou. - Eu não vim aqui para fazer um terno novo. Eu vim aqui procurar a garota...
-P-poderia... - Sorri. - F-fazer os dois! É u-uma oportunidade única, A-Alteza!
-Não seja teimoso! Eu já lhe disse que não estou interessado! - Abriu as outras portas dos armários.
Peguei a xícara. - E-eu vou ajudá-lo a achar a danadinha! - Fui até a outra porta do armário, observando que o Rei revirava minhas peças ao meu lado, parecia concentrado.
Quando joguei o que restava do chá em seu rosto. - MAS O QUE É ISSO?!
-O-oh! - Caí em seus braços. - E-esto tendo um espasmo m-muscular! - Agarrei sua túnica. - É o m-mércurio, Alteza! - Tossi. Ele limpava o seu rosto quando me segurou.
Pude ver quando Valentina afastava aos poucos a cortina. Me joguei no chão, o levando junto. Ainda tossia. - E-estou morrendo! - Agarrei o seu pescoço. - D-diga... - Tossi. Vendo Valentina correr para a porta. - D-diga a minha esposa que a amo.
E assim, fechei os meus olhos, soltando meus braços do seu pescoço.
Eu o sentia se afastar, limpando sua túnica.
Abri meus olhos. - E-eu não vou receber n-nem mesmo um aplauso?! I-isso é um ultraje!
-LOUCO! - Bradou. - Veja só, estou todo sujo de chá! Receberá uma punição por isso!
-M-me perdoe, Soberano. - Apoiei meus cotovelos no chão. - Eu s-só queria diverti-lo. - Sorri. - N-não me puna por querer entretê-lo!
Ele pegou um pequeno pano para terminar de secar o seu rosto. - Volte ao seu trabalho!
Esperei que saísse para me levantar.
Puxei o forro da mesa como forma de apoio e acabei derrubando a cola com mercúrio em todo o meu corpo. O cheiro forte quase queimava minhas retinas, afastei a lata quase vazia e me limpei com um pano qualquer.
Precisava terminar aquele vestido.
Colei o que restava de paetês e terminei a saia, meus dedos endureciam com a cola, já impregnada. Eu tinha certeza que precisava trocar de terno antes de ver a Rainha.
Me aprontei depressa, minha visão parecia um tanto embaçada quando afrouxei minha gravata em frente ao espelho, encontrando certa palidez em meu rosto na qual não dei atenção. Busquei o vestido e o guardei com cuidado numa caixa de madeira enfeitada.
Dei mais uma olhada para o espelho e saí.
Subi as escadas com um pouco de sacrifício, minhas pernas perdiam a força enquanto um formigamento estranho surgia de meus joelhos para baixo.
Bati na porta do seu quarto. - Rainha. - Me curvei de forma sutil.
Alice sorria para mim quando abriu mais a sua porta. - Eu lhe disse que não era preciso me entregar hoje.
-S-se me permite. - Ela assentiu. E pus a caixa sobre o seu colchão. - E-eu q-queria i-impressioná-la, Majestade.
-Você sempre me impressiona, Tarrant.
Pegou minha mão por cima da cabeceira, sentindo meus dedos duros e gélidos. Tossi, e assim precisei juntar minha mão aos lábios. - P-perdão... - Ela assentia a cada tosse e pedido de desculpas consecutivos, foram cinco, e na sexta tosse tentei disfarçar. Meu sotaque veio junto, tudo o que havia ensaiado para que soasse profissional se tornou uma grande perca de Tempo em meio ao meu mal estar.
Eu precisava ignorá-lo.
-Veja! - Peguei o vestido após abrir a caixa.
Alice o tocou, admirando sua beleza peculiar. - E-eu achei que i-ia gostar desse rosa bebê! J-já que... - Tossi. - O-oh, perdão... N-não discutimos as cores.
-Eu gosto. - Não parecia tão empolgada, seus olhos nem mesmo desfilaram na vestimenta nova. Eles pararam em mim. - Está tudo bem?
-S-sim! C-como não?! - Levantei a manga. - V-veja, elas são mais volumosas, fica m-mais confortável pois m-muitas vezes o elástico aperta.
Ela tocou minha testa, abandonando o vestido. - Tarrant, você está bem?
Eu teimava em sorrir. - Vossa M-Majestade g-gostou do vestido?
-Ora... - Ela o olhou melhor.
Minha cabeça girava e girava quando tudo ficou mais leve e escuro, começando pelas beiradas da minha visão até o centro, onde estava o belo rosto da Rainha de Wonderland. Eu não tive domínio sobre o meu corpo, e nem mesmo se eu pudesse conseguiria evitar a sensação de náuseas com a tontura forte, era como se eu rodopiasse sem sair do lugar. Foi assim que senti minha testa bater no chão e Alice gritar por ajuda.
[...]
Quando abri os olhos, uma criada colocava uma bandeja com água e poções sobre a mesa ao lado da cama. Era uma cama de casal com um colchão macio e confortável. Eu a olhei confuso e ela se assustou ao ver meus olhos verdes cravados em seu rosto. - Chapeleiro da Corte. - Levou a mão ao peito, surpresa. Ofegou. - Eu vou chamar a Rainha.
Fechei os olhos e os abri de novo, vendo-a sair apressada. Estava tão aéreo que poderia pensar que era um sonho.
Fechei os olhos outra vez... Não tinha noção de quanto tempo fiquei assim mas os abri quando ouvi a sua voz.
Havia duas sombras no corredor, assim apontava a entrada daquele quarto, ainda desconhecido por mim. Alice gesticulava com uma criada. ''O médico garantiu sua melhora em poucos dias, mas ele precisa repousar bastante. ''
''Sim, Majestade.''
''Eu quero que cuide dele por enquanto, Anastácia. Ele é bem agitado e como você é enfermeira da minha filha imagino que consiga lidar com ele. ''
''É claro, Majestade. Mas e a noiva dele? Ela perguntou para mim se poderia vê-lo. ''
Alice balançou as mãos, irritada. ''Nada de visitas por enquanto. ''
Olhei ao redor, confuso. Foi então que me lembrei da poção do futuro: - Alice... - Chamei, raquítico, sentindo que ela não me ouviria. Continuava a gesticular com a enfermeira quando estiquei meus braços, acreditando alcançá-la. - N-não parece... - Olhei em volta. - C-com a-aquele f-futuro...
-Tarrant? - Ela chegou no batente da porta. - Que bom que acordou.
Entrou no quarto junto com a mesma criada que trouxe a bandeja. Sentou na beira da cama. - Não imaginas o quanto foi desesperador... - A Rainha balançou a cabeça ao recordar. - Eu nunca o vi assim, seu rosto estava pálido, a pele ao redor dos olhos estava preta, seu cabelo branco e os olhos cinzas como uma pólvora. - Dizia com rapidez, enquanto ajeitava minha coberta. - Como se sente?
-Me sinto... M-melhor. S-só um pouco tonto... - Me sentei, e nossos rostos pararam milimetricamente perto, ela se afastou um tanto corada quando olhou para a enfermeira. - P-posso i-ir? - Afastei as cobertas.
-De maneira nenhuma. - Ela me deitou.
-E-eu... - Foi então que reparei minha roupa, tocando nas vestes que portavam o algodão puro. - E-estou de p-pijama?
As duas se olharam e suspiraram juntas. - Q-quem me trocou?
-Isso não vem ao caso. - Kingsley estava envergonhada novamente. - Deite-se. Ficará em repouso por alguns dias.
-E-eu não gosto de repouso. - Murmurei.
-Viu? - A Rainha levantou, comentando com a criada: - Às vezes ele é como uma criança teimosa.
-Como a Valentina, Majestade. - Respondeu a criada, sorrindo.
-Cuide dele para mim. - Alice se virou. - Nos vemos amanhã.
Ela fechou a porta quando saiu. Anastácia passou pela cama e pegou o copo com água, onde fez uma mistura com um sachê e balançou com uma colher de vidro. - O q-que a-aconteceu? - Cerrei os olhos.
-Você teve uma crise de intoxicação. Estou tentando controlar com esse remédio. Já que a injeção que lhe dei não adiantou.
Fiz uma careta. - I-injeção? - Alisei meu braço. - G-geralmente elas n-não funcionam.
Me entregou o copo. - Sente-se.
Tossi um pouco e bebi. - Uhn. - Parei. - T-tem gosto de morango.
-Beba logo, senhor Hightopp. - Ela empurrou contra os meus lábios.
-E-eu e-estou m-melhor! - Insisti.
-Não está. A intoxicação já tomou oitenta e cinco por cento do seu corpo. - Levantou, guardando a colher e o copo, agora vazio. - Ou o senhor melhora ou... - Se interrompeu. Suspirando.
-Ou... - Engoli. - E-eu morro?
-Não. Ficará muito doente antes. - Ela tomou a bandeja. - Deseja algo para comer?
-N-não estou com fome. - Meu sotaque saiu.
Ela riscou os lábios quando os torceu. - Falta de apetite é um dos sintomas. - Equilibrou a bandeja enquanto abria a porta. - Boa noite.
[...]
Abri os meus olhos quando me avisaram que amanheceu. Estava com frio e minha visão embaçada. As criadas se prontificavam em abrir as cortinas, trazendo a luz que terminava de cegar os meus olhos. Senti uma mão apalpando com leveza os meus cachos e mentalmente pedi para que não parasse... Aquelas mãos tão dóceis. Não haveria de ser de nenhum outro alguém se não Alice.
Eu não me sentia melhor.
Na verdade, estava pior do que ontem.
Meus lábios salivavam o gosto do metal, minha gengiva parecia sangrar quando minha visão normalizou, enxergando o belo rosto de Kingsley, que carregava a mesma expressão preocupada de ontem. - Podem ir. - Ela disse para as criadas, Anastácia deixou a bandeja e saiu junto com suas colegas.
-O-ontem... - Comecei, não muito lúcido. Peguei suas mãos quando afastei as cobertas. Suas duas mãos. - E-eu bebi u-uma poção e vi nós d-dois. Você c-cuidava de mim.
Alice sorriu.
- M-mas e-eu estava m-morrendo.
-Você não vai morrer. - Garantiu apesar de não ter certeza. - Só precisa de repouso.
-S-suas mãos são tão m-macias. - Toquei o dorso, chegando até seus dedos que embaralhavam nos meus como um jogo de cartas. Tive o impulso de abraçá-la. - E-eu me sinto b-bem perto de v-você. - Ela retribuía.
Quando parou de repente, enxergando seu reflexo em meus olhos que ostentavam o verde puro, sem qualquer mancha acinzentada. - Sua noiva vai vê-lo daqui a pouco. - Jogou seus cabelos soltos para trás da orelha. - Ela me contou sobre o casamento. Me disse que vocês vão antecipar.
Busquei suas mãos outra vez. - E-eu n-não q-quero falar d-disso, A-Alice.
-Espero que melhore. Pois ainda pretendo entrar no livro e tentar mudar o final da história.
Deitei a cabeça no travesseiro. Sentia tudo rodando ao meu redor, exceto o seu rosto, onde tive facilidade em tocar a sua pele, tão macia quanto suas mãos. Meus olhos se fechavam devagar. - M-meu p-pai me d-disse c-certa vez q-que eu só me casaria s-se a moça f-fosse louca o b-bastante.
Eu a contemplei antes de prosseguir. Meu polegar roçava sua bochecha rosada e seus olhos pareciam curiosos o suficiente para ouvir minha conclusão. - M-me diga, A-Alice. V-você é l-louca?
Ela lagrimou enquanto eu tentava não ir embora naquele instante...
O Tempo precisava esperar.
- Eu sou. - Ela disse quando seus lábios estremeceram.
O amor de Alice Kingsley era a única coisa em que, até o maior dos loucos, acreditava ser impossível. Mas eu tinha o que era mais próximo disso. Eu tinha oitenta e cinco por cento do seu amor. Eu ainda a contemplava como na primeira vez...
Os meus olhos se fecharam como as duas persianas na janela da carruagem que certa vez entramos juntos, em um sonho.
O seu amor me tornava vivo, me tornava lúcido...
E era por seu amor que eu poderia morrer feliz.
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