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História Arquivo Morto - Donato sabe demais


Escrita por: TamsLiterata

Capítulo 35 - Donato sabe demais


Apesar de residirem no mesmo bairro, a casa de Donato era muito menor e mais simples do que as moradias da família de Ellen e K1. O ex-segurança da escola tentou fazer jogo duro, mas acabou sendo vencido pela insistência de Heloísa e deixou que ela entrasse em seu quarto e cozinha acompanhada de Ellen. Logo a primeira vista já era visível que Donato precisava de dinheiro. 

A casa estava muito judiada e com poucos objetos. Na cozinha só havia um fogão velho, uma geladeira enferrujada e uma mesa de plástico, comum de se encontrar em bares. No lugar de cadeiras havia dois bancos de plástico e um caixote que também devia servir para sentar. A sala estava em situação pior que a cozinha. Apenas havia um colchão de casal todo rasgado, onde Donato devia dormir. A TV e os demais eletrônicos haviam sido desfeitos em troca de pó. Era deprimente ver um homem naquela situação. Donato percebeu o olhar chocado de Lica. 

 

- Bem diferente do castelo que o seu pai montou pra você morar, não é?! 

 

A garota ficou sem graça, mas não deixou-se abalar. 

 

- Eu não ligo pra luxos, não se preocupem em nos receber bem... – Disse. Donato esboçou um sorriso irônico. – E se o seu problema é dinheiro... Acho que posso te ajudar...   

 

Donato encarou a menina ressabiado. Lica era apenas uma garota. Em sua mente, uma fedelha daquelas não podia oferecer nada que fosse de seu interesse. Para ele Lica apenas estava blefando. 

 

- Eu não vou negar que preciso de dinheiro... Você pode ver que eu não moro em uma mansão... O dinheiro que eu preciso é grande. É melhor você economizar a sua mesada, o meu tempo e ir embora. 

 

Ellen e Lica se entreolharam. Lica já imaginava que a conversa com Donato seria difícil. Ele não era um homem que procurava cativar as pessoas. 

 

- Eu pago a sua dívida com o Moqueca... Pago até a arma que você conseguiu para o Rafael e ele não te pagou e dou um dinheiro pra você fazer uma média com a sua filha. 

 

Donato fitou as duas meninas a sua frente. Estava um tanto envergonhado e surpreso. Poucas pessoas sabiam da existência de Melissa, sua filha. Era uma garota de 4 anos. Donato falava pouco dá garota, Lica apenas soube dá existência de Melissa pois foi consultar com Aninha a ficha do ex segurança e descobriu que Donato havia declarado a garota como sua dependente no plano de saúde. Em quinze minutos de conversa com Aninha, Lica coisas importantes sobre a menina. 

 

Melissa sofria de uma doença cardíaca grave. Logo quando nasceu teve que passar por uma cirurgia delicada e precisava de tratamento médico constante. Alguns meses antes de ser demitido, Donato e todos os seguranças do colégio Grupo foram demitidos por Edgar, admitidos por uma empresa especializada em segurança que foi contratada pelo colégio, sendo assim Edgar manteve os mesmos funcionários, mas sem pagar os direitos trabalhistas. Por conta dessa manobra, Donato acabou perdendo o plano de saúde no qual Melissa era sua dependente. Melissa era um assunto delicado para o ex segurança. Donato fechou a cara.

 

- É por isso que eu detesto aquele colégio. Qualquer assunto cai na boca de quem não deve. – Disse irritado. – Foi aquele desgraçado do Edgar que mandou você vir aqui?

- Não... Eu vim por conta própria...  – Fez uma pausa. – Donato, você tem uma informação que eu preciso muito e eu tenho o dinheiro que você precisa... Eu entendo que você tenha raiva do meu pai... Eu morro de vergonha das atitudes dele. Sempre que eu penso que ele foi longe demais, eu descubro que para o Edgar o longe demais não existe... - Lica disse. – Não tem porque a gente não ficar do mesmo lado... Você não quer ao menos ouvir o que eu tenho para dizer? 

 

O segurança ainda estava desconfiado, mas na falta de opção melhor, decidiu dar uma chance a garota. Ouvir Lica não iria prejudicá-lo. 

 

- O que você quer de mim? 

- Saber sobre a sua ligação com o Rafael da minha sala... – Lica completou. – O Moqueca me disse que ele encomendou uma parada com você...

 

Donato fez um gesto afirmativo.

 

- Encomendou sim... Aquele playboyzinho de merda. Tenho quase certeza que ele armou a minha demissão. 

 

Ellen se interessou no assunto. 

 

- Armou como?

- Eu fui demitido porque encontraram cachaça nas minhas coisas.  – Donato explicou. – Eu ando bebendo um pouco a mais sim... A minha mulher até largou a casa e a minha filha por causa disso... Sumiu no mundo... Falaram que viram ela lá pelas bandas de Salvador... – Disse entristecido. – Largou a menina com a minha mãe... Eu não tenho condições de cuidar da minha filha sozinho... E por causa da bebida a minha mãe não deixa eu ver a minha filha... Eu ando bebendo sim, mas aquela garrafa de cachaça que o Edgar encontrou nas minhas coisas não era minha. Eu juro! 

- Você acha que o Rafael colocou nas coisas? 

 

 

Donato fez um gesto afirmativo. 

 

- Tenho certeza... Ele encomendou a pistola comigo e não pagou, eu estava cobrando ele e ele disse que não ia pagar... Eu ia reclamar com quem? – Questionou. – Dei uma prensa mais forte e uns dias depois apareceu a cachaça nas minhas coisas. De alguma forma ele plantou a cachaça ali e fez o Edgar achar... Esse garoto é um filho da puta. 

 

Lica e Ellen se entreolharam. Lica imaginava como Rafael conseguiu que Edgar encontrasse a garrafa de cachaça nas coisas de Donato. Com certeza havia a mão de Malu no meio dessa história. Ellen tinha mais perguntas a fazer. 

 

- Você que ofereceu a arma pra ele?

- Não... Ele que veio me procurar... Ele descobriu que... – Baixou a cabeça. Sem graça. – Eu estava... Estou desesperado com esse lance dá minha filha sem plano de saúde... Ela sofre de uma doença que os remédios são caros e talvez ela precise operar... Eu não me orgulho do que eu fiz não, mas... Pra conseguir levantar o dinheiro pra pagar o médico dá Melissa e os medicamentos, eu comecei a repassar droga dentro do colégio. O Moqueca deixava a mercadoria na minha mão e eu entrava em segurança para o pessoal que estudava a tarde. Ele descobriu e veio pedir minha ajuda para comprar uma pistola ou um revólver discreto. Eu não queria passar pra ele porque arma só tem uma finalidade... Ele me chantageou... Se eu não conseguisse a pistola pra ele, ele me entregava para o Edgar. Mesmo contra minha vontade, eu consegui a pistola com o Moqueca e o vagabundo me enrolou e não quis me pagar... Quando eu apertei ele, ele arrumou um jeito de me botarem pra fora do colégio. Tinha um pessoal me devendo lá... Dava uns três mil, o Moqueca soube e com medo de ficar sem ver a grana dele, cobrou tudo de uma vez e eu não tenho como pagar... É isso. 

 

Ellen e Lica se entreolharam. A história fazia sentido.

 

- Você sabe pra que o Rafael queria uma arma? 

- Diz ele que é questão de segurança... Vocês sabem que ele sai com coroa a troco de dinheiro, não sabem? – As duas fizeram um gesto afirmativo. – Vai ver é algum marido ciumento que está atrás dele... Sei lá... O que não deve faltar é gente querendo quebrar esse vagabundo.

 

Nova troca de olhares entre as garotas. Ellen teve uma ideia que executou sem consultar Lica. Abriu o navegador e no Google procurou por Leonel Garcia. Achou uma foto antiga que havia postado há alguns dias por um portal de notícias. Mostrou a foto a Donato. 

 

- Conhece esse cara? 

 

Donato pegou o celular das mãos de Ellen. Encarou a foto por alguns instantes e então disse:

 

- Eu vi esse cara. – Garantiu as duas. – Já o vi umas duas vezes lá no colégio. 

- Tem certeza? – Lica questionou sem esconder o excitamento. – Donato, é muito importante...

 

Mais uma vez encarou a foto e fez um gesto afirmativo. 

 

- Tenho! Ele estava rondando há alguns dias o colégio, quando eu me aproximei pra perguntar se ele queria falar com algum aluno, ele se assustou e fugiu. Depois ele apareceu na festa... Aquela última festa antes das férias. 

 

A festa do retorno de Lica, onde tudo havia começado. 

 

- Você viu mais alguma coisa, Donato? – Ellen questionou. – Na festa ele estava sozinho?

- Acho que sim... Foi muito rápido. Eu dei uma esbarrada nele sem querer e pedi desculpas... Ele me perguntou onde eu podia achar a Malu. Depois não o vi mais.

 

Ellen olhou para Lica. A garota de franja tinha mais uma pergunta. 

 

- Você saiu que horas da festa?

- Estava trabalhando... Saí depois de todo mundo... 

- Você viu alguém saindo da sala da diretoria com alguma bagagem grande? Alguma mala ou coisa assim? 

 

Donato fez um gesto negativo.

 

- Eu não lembro... A Malu não se sentiu muito bem, nós tivemos que levá-la para a enfermaria. Eu não notei... 

 

“Crucial a Malu ter passado mal justamente naquela madrugada que o corpo de Leonel sumiu da escola”, Lica pensou. Ellen parecia compartilhar da mesma ideia da garota de franja. Acreditava que o mal estar de Malu na verdade era uma estratégia para chamar a atenção de todos e Rafael sair com corpo de Leonel sem chamar a atenção de ninguém. Donato tinha informações quentes. Era a prova que Leonel estava na escola na noite de sua morte e perguntou por Malu. 

 

Decidida, Lica resolveu fazer uma oferta ao ex segurança. Ia para o tudo ou nada. 

 

- Você contaria tudo isso que você acabou de me contar para a polícia? Repetiria palavra por palavra? 

 

Donato não era burro. Ele sabia que tinha uma informação quente nas mãos. Não venderia sua galinha dos ovos de ouro a qualquer preço. 

 

- Eu quero trinta mil. 

 

Lica se assustou. 

 

- Trinta mil? 

- Você tem ideia o quanto eu vou me sujar com essa história? Eu vou precisar de um bom advogado. 

 

Lica pensou em Marta. Que falta sua mãe fazia essa hora. 

 

- Eu não tenho como te dar esse dinheiro todo agora... Se eu conseguisse uma parte e depois pagasse o resto...

- Metade. 

- Quinze mil? 

 

Donato fez um gesto afirmativo. 

 

- Daria pra eu pagar o que eu devo ao Moqueca e ainda pagar um procedimento médico que a minha filha está precisando fazer... Se você conseguir quinze mil, acho que dá pra gente fazer negócio... 

 

Lica esperou alguns segundos.

 

- Eu preciso de um tempo pra levantar esse dinheiro.

- Até a meia noite de hoje... Eu vou deixar o número da minha conta com você... Se até a meia noite de hoje você não depositar os quinze mil na minha conta, eu sumo no mundo e você vai perder a sua pista.

 

Ellen enxergou ali uma forma de pressionar Lica. Não ia deixar Donato se aproveitar dela. 

 

- Você não ia fazer isso. Você tem uma filha...

- Eu nunca disse que a minha filha morava em São Paulo. – Donato devolveu a Ellen. A Lica. – Arrisca pra ver se eu não sumo... Vocês tão sabendo coisas de mais. 

 

O ex-segurança anotou seus dados em um papel e entregou a Lica. Ela não confirmou e nem desconfirmou que iria entregar o dinheiro a ele, mas saiu da casa de Donato já com uma ideia feita. Enquanto se dirigiam ao carro, Lica comunicou sua decisão a Ellen. 

 

- Lica, você vai pagar pra ver? Tá na cara que esse Donato é um boçal. Vai ver até inventou a doença da filha. 

- Sei lá... Difícil botar a mão no fogo por alguém. 

- E mesmo assim você vai pagar o que ele está pedindo? 

- Vou fazer o que, Ellen?! Ele é o DJ e eu tenho que dançar conforme a música... 

 

As duas entraram no carro e ocuparam seus lugares. 

 

- Sua mãe que vai tomar um baita de um susto quando chegar... 

- Nem fala... Ela me deixou eu estava solteira... Agora tô namorando, tô namorando a melhor amiga da minha irmã que é praticamente testemunha ocular de um crime que a minha madrasta cometeu... E agora esses quinze mil. 

- Como você vai conseguir esse dinheiro?

- Ainda não sei... É um dinheirão... – Lica admitiu. – Mas eu vou conseguir. Se o Donato contar tudo o que contou pra gente, o delegado vai ter que dar uma espremida no Rafa por causa da arma e na Malu porque ela disse que não conhecia o Leonel e ele estava a procura dela... Ele não vai poder dizer que tudo é invenção da Samantha.

 

Após colocarem os cintos, Lica deu partida com o carro. 

 

- Se o Moqueca falasse da arma para o delegado, ele espremeria o Donato que acabaria falando dos dois. E você economizaria 15 mil. 

- O Moqueca fazendo benfeitoria pra alguém? Duvido. – Misteriosa. – Acho que eu sei como conseguir esse dinheiro...

 

 

- Então depois de conversar com o Donato, você ainda foi no seu pai? – Samantha questionou. Lica fez um gesto afirmativo. – Vocês se cruzaram?

- Não... Só estava a Regina e quando eu estava saindo encontrei com a Malu... – Lica explicou. As duas estavam em seu quarto. Ela abriu o closet e separou algumas roupas e começou a dobrar. Estava agitada com tantos acontecimentos. – Se teve uma coisa nessa história toda de brigar com o meu pai, é que eu não vou precisar mais dormir lá e nem vou precisar fingir que estou namorando o Felipe...  

 

Samantha sorriu. 

 

- Dessa parte eu gosto. Mas você chegou aqui dizendo pra eu preparar uma bagagem com as minhas coisas... 

- Nós vamos para o Rio. 

- Que rio? – Samantha questionou confusa. 

- De Janeiro... Conhecida como a Cidade Maravilhosa. 

 

Samantha não estava entendendo nada. Lica chegou tão elétrica com as novidades que tinha dificuldade em se fazer compreender. 

 

- Como assim nós vamos para o Rio? 

- Vamos visitar minha vó... 

 

Samantha se assustou. 

 

- Mas a mãe do Edgar não morreu?

- No caminho te explico. 

- Só prepara as malas e separa um casaco. No caminho eu te explico. 

 

 

Apesar da insistência de Samantha, Lica apenas explicou o que acontecia quando de fato pegaram a estrada. O casal saiu do apartamento de Marta por volta de uma da tarde com mochilas nas costas e documentos. Dentro do carro Samantha foi desvendando os planos da namorada. Em seu aniversário de 17 anos, o último que comemorou ao lado da avó, Lica havia recebido um presente de alto valor de dona Carmem Gutierrez, a mãe de Edgar. O plano de Lica era usar o seu presente para conseguir o dinheiro para conseguir pagar pelo testemunho de Donato. 

 

- Eu não me sinto bem com isso. Você gastando um dinheirão desses comigo. – Samantha disse. – Eu não sei se devia aceitar...

- Sammy... Não tem essa. É pegar ou pegar. Talvez o Donato seja a única pista que nós temos sobre a morte do Leonel. Não é só por você que estou fazendo isso. É uma questão de justiça. A Malu e o Rafael são dois safados e precisam pagar pelos crimes que cometeram.

- Mesmo assim eu não me sinto confortável. 

- Deixa de bobagem, Sammy... 

- Não é bobagem. – Fez uma pausa. – Eu s vou aceitar se puder pagar tudo quando sair a minha parte da herança da minha mãe. 

- Samantha, a gente não vai ficar discutindo por dinheiro... 

- Se você quiser ficar me bancando, nós vamos discutir sim. 

 

As duas debateram por alguns minutos até Lica concordar em receber o reembolso de Samantha assim que saísse a herança de sua mãe. O inventário demoraria ainda alguns meses para ser concluído. Solucionada a primeira parte do mistério, Samantha partiu para o segundo ato. Ainda tinham algumas perguntas que ela gostaria de saber a resposta. 

 

- Você disse que a sua avó deixou esse presente pra você? 

- É... Um porta jóias com todas as jóias que o vô Maurício deu a ela durante os quase quarenta anos de casamento. 

- Nossa... – Samantha se espantou. – E o seu pai sabe disso? 

- Nem sonha... Antes de morrer ela mentiu que doou as jóias para uma instituição de caridade porque ela sabia que ele ia contestar e tentar tirar de mim. 

- Ela morreu? – Lica fez um gesto afirmativo. – E que vó é essa que a gente vai visitar? A mãe da sua mãe? 

- Não... – Lica disse de olho na estrada. – Essa mora em São Paulo. 

 

Samantha encarou a namorada com um ar confuso. 

 

- Lica todo mundo só tem duas avós... – Lica deu uma risada. – Ué... Com você é diferente? 

- Até meus 17 anos eu também pensava assim... – Lica disse. – Até que eu descobri uma coisa...- Riu. – Quer dizer. Minha vó Carmem que descobriu uma coisa de mim... – Samantha ainda estava sem entender e Lica trazia um ar divertido no rosto. – Eu vou explicar...

 

A história de Lica começou em seu aniversário de 17 anos. Ela não queria fazer nada porque naquele ano Marta e Edgar haviam se separado e a família toda estava uma confusão com a revelação do caso de Malu e Edgar e a paternidade de Clara. Apesar disso, Marta animou a filha para comemorar seu aniversário e promoveu uma social em seu apartamento. Lica chamou os amigos do Grupo e do Cora e algumas pessoas de sua família incluído dona Carmem, a mãe de Edgar. Dona Carmem morava no Rio de Janeiro. Depois de viúva, decidiu recomeçar a vida na Cidade Maravilhosa. Dona Carmem tinha quase 80 anos, era uma mulher muito íntegra e espirituosa. Lica se identificava muito com a avó e as duas se davam incrivelmente bem, apesar de se verem pouco.

 

Com uma terrível saudade da neta e sabendo dos problemas que aconteciam em São Paulo, dona Carmem resolveu ir para a festa de aniversário de Lica. Chegou na casa de Marta um pouco cedo, a mãe de Lica ainda lidava com os preparativos da festa. 

 

- Que bom que a senhora veio, a Lica vai ficar tão feliz em vê-la. Ela morre de saudade da senhora. 

- Morre de saudade, mas não arranja tempo pra me visitar, né?! O Rio de Janeiro é praticamente ali... – Carmem brincou. 

- Pois é... Agora que ela está de férias, quem sabe ela vai?! – Marta disse. – Mas por que a senhora não disse que vinha? Podíamos te buscar no aeroporto. 

- Queria fazer surpresa. Ela está em casa? 

- Lá no quarto com a Katarine... Uma amiga dela... Pode entrar...

 

Com um sorriso no rosto, Carmem se encaminhou até o quarto, abriu a porta de correr e se deparou com a seguinte cena: Lica, de roupão e cabelos molhados, estava sentada na cama com uma moça pouco mais jovem que ela em seu colo. A moça tinha cabelos escuros, pele morena e também estava seminua. As mãos de Lica a seguravam com firmeza enquanto trocavam um beijo quente. Carmem concluiu que a moça no colo de sua neta era Katarine, a amiga de Lica. A garota também havia chegado cedo, Lica saia do banho quando a encontrou. O clima esquentou tanto que deixaram a prudência de lado e esqueceram de trancar a porta. Carmem tentou sair sem ser notada, sem querer esbarrou em um tapete e então as duas novamente perceberam sua presença. Lica ficou tão surpresa que soltou o corpo de K1 com tudo no chão. 

 

- VÓ?!

 

Seu relato foi interrompido pois Samantha morria de rir imaginando a cena. K1 nunca havia contado que ela e Lica haviam sido surpreendidas pela avó da mais velha. Após se recompor em minutos, Lica pediu para que K1 a esperasse em seu quarto e foi procurar sua avó. Encontrou dona Carmem no quarto de hóspedes. Lica anunciou sua chegada com batidas na porta. 

 

- Licença, vó... Posso entrar?

- Entra... Aproveita e passa esse creme na minha coluna. – Entregou um gel massageador a Lica. – Menina, a artrose está me matando... É dor nas costas, nos pés, nos joelhos... Eu não sei quem inventou essa porra de melhor idade... – Lica deu um meio sorriso. Despejou um pouco do gel, esfregou as mãos e passou a massagear as costas da senhora. – Você tem as mãos boas pra isso... Já pensou em fazer algum curso? E a escola? Como estão suas notas?

 

“Será que ela vai fingir que não viu nada?, Lica se perguntava. 

 

- Mais ou menos. 

- Qual o problema?

- Física e Matemática.

- Matemática é uma vadia pra maioria das pessoas, meu amor... Você é inteligente... Vai superar...

 

“Ela vai fingir que não viu. Mas eu não vou”, Lica decidiu. Não queria bancar a sonsa com Carmem.

 

- Vó sobre aquilo que você viu agora no meu quarto... A K1 e eu...

- K1?

- É o apelido da minha amiga. 

- Amiga? 

- É... Apesar daquilo que você viu... A gente é só amiga... – Fez uma pausa. – Ela não é minha namorada. 

- Se seguirem nesse ritmo logo vai ser... Desde quando vocês estão nessa... Amizade colorida? 

- Há pouco tempo. Ela é a primeira menina que eu estou ficando... Eu gosto dela... Mas não queria nada sério agora. Até porque eu não sei se eu gosto mesmo de meninas... 

- Você estava quase sugando a alma da menina pela boca... – Carmem rebateu deixando Lica vermelha. – Imagina se gostasse.

 

Lica terminou de passar o gel nas costas de Carmem. Ajeitou a camisa da avó. 

 

- É que... Eu fico com meninos também. Lembra daquele meu namorado que a senhora conheceu?

- O Mbappé...

- Não, vó é MB... Mbappé é um jogador francês... – Lica disse entre risos. 

- Ótimo por sinal, os desgraçados dos franceses estão em uma safra ótima... Capaz de ganharem a copa. Me fizeram perder um dinheirão em um bolão em 98. – Carmem comentou rancorosa. – Diabo de time!

 

Lica deu risada. 

 

- Vó... Estávamos falando sobre os garotos e eu... Eu acho que gosto deles. E acho que gosto de ficar com a K1. 

- Você gosta dos dois. 

- Talvez... Eu ainda estou descobrindo... Tudo é meio novo pra mim... Eu acho que posso ser bi... – Lica admitiu um tanto envergonhada. - A senhora me entende? 

- Claro... – Disse em um tom tranquilo. Lica sorriu. – Eu também sou. 

- QUE? – Samantha questionou. – Como assim?

- Foi o que eu perguntei pra ela. – Lica disse. - Como assim?

- E ela?

- Ela disse que depois que o meu vô morreu ela estava muito sozinha e resolveu se mudar pra perto da Tereza que era uma amiga dela desde a época do prézinho. Ela era tão próxima da gente que eu sempre chamei a Tereza de tia. A Tereza estava separada da esposa, elas a abaram se aproximando, estavam sempre juntas e quando viu já estava rolando... Elas namoraram e depois decidiram morar juntas. 

 

- Que fofo, Lica... – Samantha se derreteu. – E o Edgar soube?

- Ela não contou pra ele... Primeiro porque ela não devia satisfações a ele e ela também não queria mais aborrecimentos. Mas ela nunca escondeu também. Ela morreu sem eles se falarem.

- Entendi... Chato isso.

- O Edgar é um idiota porque a Tereza é um amor de pessoa. Ela é dona de um restaurante, tenho certeza que ela vai amar você. – Samantha sorriu. – Quando a minha vó morreu, ela veio me dar a caixa de jóias... Ela disse que a minha vó pediu pra eu aceitar porque ela tinha medo de algum dia a minha mãe me faltar e o meu pai me rejeitar de alguma forma por causa da minha orientação sexual. É uma forma de me deixar em segurança, entende? Por isso que ela não queria que o Edgar soubesse. 

- A Clara soube disso? 

- Soube quando a vó Carmem estava doente, mas ela guardou segredo porque ela conhece o Edgar e a mãe dela.

- A Tereza tem filhos?

- Tem uma filha que mora em Londres. 

- Aí meu Deus... – Samantha disse um tanto aflita. – Eu vou conhecer a sua avó. Será que ela vai gostar de mim?

- Claro que vai, ela é super gente boa.  Você vai amar a vó Tereza. 

 

O carro de Lica estacionou em frente a um casarão no morro de Santa Teresa, área central do Rio, no início da noite. Felizmente a viagem foi tranquila e sem sustos. O casarão se tratava do restaurante da avó de Lica. Era enorme e um ambiente muito simpático. Ao ver Lica, Tereza correu ao seu encontro e a abraçou com muito carinho. Apesar de não compartilharem o mesmo sangue, era visível que Lica se sentia em família quando estava nos braços daquela senhora magra, alta de cabelos curtos. Ao se deparar de Lica, Tereza deu um aperto em suas bochechas.

 

- Que bom ter você aqui, meu amor... Que saudade, quanta saudade! Que surpresa boa!

- Também senti sua falta, vó. Você nunca mais apareceu em casa. 

- Eu tento, mas o restaurante... É uma loucura... – Olhou para Samantha. A mais nova abriu um sorrisinho. – E essa linda moça, Heloísa? 

 

Lica segurou na mão da garota. 

 

- Vó... Essa é a Samantha. Ela é a minha namorada... Sammy, essa é a dona Tereza, minha vó...

 

Como se Samantha já fizesse parte da família há tempos, Tereza a abraçou com muito carinho e a recebeu muito bem. Após pedir para que um dos garçons ficasse de olho no movimento, Tereza acompanhou Lica e Samantha até sua casa que ficava em cima do restaurante. 

 

O casarão era muito arejado, espaçoso, acolhedor e oferecia uma vista linda do centro da cidade. Samantha se sentiu muito bem no local. Após acomodarem as mochilas no quarto de hóspedes, Tereza passou um café fresco para as duas e enquanto saboreavam o café na cozinha, Lica e a avó colocavam a conversa em dia e Lica explicou mais ou menos o que estava fazendo ali. 

 

- Então você só fica até amanhã? – Tereza contestou. – Você quase não aparece e quando aparece é mais rápida que visita de médico... Você não incomoda e sabe que  tem um quarto te esperando aqui sempre que quiser.

- É que nós temos um compromisso importante... A gente tem que entregar o dinheiro pra esse meu amigo que precisa operar a filha dele. – Lica explicou.  

 

Não estava inventando coisas. Donato precisava mesmo do dinheiro para concluir o tratamento de sua filha. Samantha completou.

 

- Ele pretende pagar todo o dinheiro, é que é uma situação de urgência... 

- Vocês não precisam me dar satisfação... As jóias são da Lica e da Clara... Eu só estou guardando a pedido da Lica, mas ela faz o que quiser com o presente dela. – Tereza disse. – Só que dificilmente vocês vão conseguir levantar isso em dinheiro tão rápido. Os bancos são burocráticos demais. 

 

A ideia de Lica não era se desfazer das jóias da avó, mas sim colocá-las no penhor e ir pagando a manutenção até conseguir recuperar. De fato toda a operação levaria um tempo. Donato teria que ser paciente. 

 

- Eu não tinha pensado nisso. – Samantha admitiu.

- Mas eu pensei! – Tereza exclamou. – Eu tenho minhas economias... Eu posso adiantar esse dinheiro pra vocês e depois vocês arrumam um jeito de me devolver... O que acham? 

 

As duas trocaram um sorriso. A ideia de Tereza era ótima e Lica acabou topando. Na mesma hora ligou a Donato e explicou que o dinheiro seria transferido para sua conta aí da naquela noite. Tereza fez a operação toda através do celular e enviou o comprovante de transferência a Lica que passou a Donato. Agora só restava o segurança cumprir com sua parte do acordo. 

 

 

A estadia de Lica e Samantha em terras cariocas durou menos de doze horas. Após a transferência do dinheiro, o casal jantou na companhia de Tereza e a empresária aproveitou para conhece melhor Samantha. Após o jantar, Tereza teve que retornar ao restaurante e o casal aproveitou para fazer um breve passeio pela zona sul carioca. Samantha estava cansada de ficar trancada no apartamento de Marta. Um dos maiores prazeres que teve na breve viagem foi poder caminhar tranquila pela rua de mãos dadas, sem medo de ser reconhecida. Voltaram a Santa Teresa após a meia noite e as sete da manhã já estavam de pé. Prontas para fazerem o caminho de volta. Despediram-se de Tereza com um abraço apertado e a promessa de que não demorariam a voltar.

 

- Eu gostei de Santa Teresa. Vou tentar seduzir o Guto pra fazer nossa república aqui...

- República? – Lica questionou.

- É... O Guto, a Benê e eu... Como nós três vamos estudar música, estamos pensando em morar juntos. Mas estamos afim de estudar fora de São Paulo, sabe? Novos ares... 

- Ei... E nós...

- Vamos continuar juntas... A gente dá um jeito... E se não der... Você sabe que as lésbicas e bissexuais que movem metade desse país com namoro a distância... 

- Claro que sei... Está no estatuto lésbico. – Lica disse em um tom divertido. 

 

A viagem de volta não poderia ser feita de outra forma. Claro que elas estudarem longe uma da outra seria um tópico que merecia uma discussão aprofundada, mas não naquele momento. Estavam felizes e confiantes demais por conta do acordo com Donato. Lica tinha plena certeza que Samantha seria inocentada após Donato contar o que sabia.

 

Por volta de uma da tarde chegaram em São Paulo. Ainda não havia notícias de Donato. Ao chegarem na capital, Lica decidiu seguir para a casa de Ellen. Quem sabe a garota não sabia de alguma coisa? Ao chegar na amiga, Lica buzinou e instantes depois Ellen apareceu ao lado de K1. As duas estavam com um ar de susto. 

 

- Gente, eu tô me sentindo tão adulta... – Samantha comentou. – Eu conheci a avó da minha namorada... Vocês tem ideia da responsabilidade? – Brincou. Percebeu que nenhuma das ruas riram. Séria.  – Nossa... Vocês estão com umas caras. 

 

Lica também havia percebido algo estranho no ar. 

 

- Aconteceu alguma coisa, gente?

- Aconteceu. – Ellen disse. – Conta pra elas, K1... 

- Tá o maior bafo lá na minha rua. - K1 disse. – O Donato foi encontrado morto dentro de casa.

- Morto? – Lica e Samantha se perguntaram ao mesmo tempo. 

- Várias facadas... – K1 explicou. - Assassinado. 


Notas Finais


Lica teve a quem puxar, né?! E agora, o que acontece?


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