Kim Taehyung
Depois da noite agradável que tive na companhia de Park Jimin, dormindo em seus braços e acalmando a turbulência de meu coração — mesmo que ainda afirmasse que tudo não passasse de uma trégua —, sentia-me renovado, um pouco diferente em alguns aspectos, mas não se parecia mais tão difícil levantar da cama, e eu não precisava mais encarar uma feição infeliz no espelho.
Entretanto, haviam pontos bem específicos em minha vida decorrentes da discussão com Jimin que eram um pouco mais complicados de se resolver com abraços e juras de amor.
Na longa semana em que estive brigado com Jimin, era custoso conversar com ele sobre assuntos de trabalho e agir com insensibilidade. Não era com orgulho que eu afirmava que as questões emocionais diminuíram minha produtividade, além de fazer-me procurar meios menos comunicativos para produzir aquilo que eu precisava.
Era um mês corrido, tínhamos quatro equipes de profissionais que administravam projetos separados com a nossa supervisão geral, e querendo ou não, quando ingressamos na BoraHae, essas equipes estavam completas e funcionando bem juntas. Jimin e eu nos sentimos acanhados em interferir, então passamos a organizar projetos sozinhos, vez ou outra pegando emprestado profissionais de diferentes áreas.
Com o crescimento do escritório e a abundante quantidade de clientes entrando em contato para pedir preferência por nossos serviços, era bem óbvio que iríamos sobrecarregar. Portanto, no mês anterior resolvemos que procurar estagiários para suprir as necessidades entrara em primeiro lugar na lista de prioridades.
E aquele era um ponto delicado, o fato que acabou com minha felicidade em um piscar de olhos.
Eu havia analisado e contratado estagiários sem nem mesmo consultar Jimin antes, durante ou depois do processo. E, céus, como aquele arrependimento me corroía, mesmo que em primeiro momento, quando percebi meu ato errôneo, tenha achado uma vingança adequada pelo fato de ele não ter me comunicado sobre Jeongguk, entre outras coisas.
Porém, agora percebera meu erro desmedido e não conseguia dizer para ele o que fizera. Não queria parecer mais ainda um incompetente que ignora o profissionalismo por qualquer mínima coisa. Chegava a ser até mesmo falta de respeito com Jimin, que passava noites em claro tentando manter o escritório em equilíbrio.
Tentei fugir dessa minha culpa como uma criança, mas não podia ignorar aquilo para sempre, contudo continuei sem informá-lo até chegar o último momento e não haver outra saída. E quando digo o último momento, era literalmente o último momento.
Pouco depois do almoço, os estagiários haviam chegado, e agora eu tinha apenas uma única porta nos separando de mais uma possível horda de discussões. As coisas estavam indo tão bem que a ideia de estragar tudo deixou-me receoso.
Ao meu lado, estavam três jovens mais ou menos na faixa dos dezoito anos. Os nomes eu havia gravado bem: Yoon Sanha, Kim Soojin e Huang Zhou. Dentre todos, Huang Zhou era o mais calmo, Sanha parecia prestes a sofrer um ataque de tanta felicidade que emanava, e Soojin encontrava-se acanhada enquanto usava o celular e olhava para os lados com desconfiança.
O trio parecia muito atento aos meus movimentos, e, mesmo que minha expressão estivesse séria, ainda era possível perceber que eu não me encontrava nas melhores condições. Toda vez que levantava a mão para abrir a porta, acabava desistindo no meio do caminho.
— Senhor Kim, algum problema? — Goeun apareceu ao meu lado, com uma aparência impecável, sem nenhum fio de cabelo fora do coque apertado. Enquanto andava, o barulho de seus saltos ecoava pelo corredor, anunciando sua chegada como as trombetas do apocalipse anunciariam Jesus.
— Problema nenhum — neguei, lambendo os lábios. — Estou indo apresentar os novos estagiários a Jimin. — Tentei dar meu melhor sorriso, escondendo a relutância, mas ela não o retribuiu, como era de se esperar.
Goeun analisou os três garotos dos pés a cabeça, como se os desaprovasse totalmente, e até mesmo Huang Zhou, com sua expressão perpetuamente neutra, encolheu-se perante o olhar afiado.
— Boa sorte, garotos, vão precisar — disse ela antes de empinar o nariz e sair batendo os saltos pelo piso, deixando-me de cenho franzido e temendo que Soojin desmaiasse ali mesmo pela palidez que seu rosto adquiriu.
— Então, pessoal. Vamos lá! — encorajei, mas a mim do que a eles, sentindo um frio na espinha o qual não provinha apenas da sensação gélida causada pelo ar condicionado. Entrei sem bater. Era melhor ir logo de uma vez antes que eu travasse outra vez no meio do caminho. — Jimin-ssi?
— Taehyung, já não lhe disse para fazer a gentileza de bater na porta antes de entrar? — Jimin levantou o rosto dos papéis, com os óculos pendendo no nariz. Seu olhar não demorou muito em mim e desviou para o trio acanhado próximo à porta, sua feição séria tornando-se confusa. — E estes seriam…?
— Ah! — exclamei, como se ainda não houvesse os notado ali. — Eles são... — Pigarreei, desconfortável. — Yoon Sanha, Kim Soojin e Huang Zhou; os novos estagiários.
O silêncio que se seguiu foi demasiadamente constrangedor. Cinco segundos se passaram até Jimin dizer algo.
— É… Como...? — Levantou-se, caminhando até nós, perplexo. — Você contratou estagiários? — O rosto avermelhou-se rapidamente e não pude culpar sua incredulidade. — Você contratou estagiários — repetiu, em uma afirmação, lançando-me um olhar cortante e túrbido, que chegou até minha alma. Ele, então, virou-se para os três com um sorriso bem fingido, ignorando seu estado anterior como se fosse um surto coletivo. — Eu sou Park Jimin, arquiteto e designer de interiores, diretor-executivo da BoraHae. — Curvou-se. — É um prazer.
— Fico extremamente grato em ter uma oportunidade de trabalhar com vocês — Huang Zhou respondeu, curvando-se tanto que sua testa quase tocou o chão.
Sua fala firme, quase mecânica, encobriu o cumprimento simples e tímido de Soojin. Sanha, por sua vez, parecia estar diante do próprio Cristo. Ele entrou na frente dos outros dois e invadiu o espaço pessoal de Jimin ao segurar sua mão com extrema devoção.
— O prazer é meu! — exclamou, eufórico e ofegante, como se tivesse corrido uma maratona para chegar até Jimin. — Eu sou Yoon Sanha, estudante de design de interiores. Minha mãe e eu somos seus fãs. Ela quase surtou quando eu disse que ia trabalhar ‘pra você, não mais que eu, é claro! Foi uma grande surpresa.
— É, é uma grande surpresa para mim também. — Jimin parecia assustado, mas o olhar em minha direção exalava o ceticismo.
À minha direita, vi de soslaio Soojin dar um pulo para trás ao ver o aquário de piranhas de Jimin e jurei escutar o pedaço de uma reza, mas estava ocupado demais tentando manter as pernas firmes para prestar muita atenção nela.
— Eu ouvi todos os seus podcasts sobre Design e sua coleção de mobiliário do ano passado estão todos no meu TCC! — confessou, ainda grudado a Jimin, parecendo aproximar-se cada vez mais. Fitei bem a cena, começando a deixar o constrangimento pela situação de lado para estreitar os olhos àquele garoto atrevido, desgostando de seu comportamento perante Jimin, e mesmo que Jimin não transparecesse a eles, sabia muito bem que ele também não estava apreciando nem um pouco o contato.
— Fico… feliz, eu acho — respondeu e tentou tirar sua mão pequena do meio das de Sanha sem parecer rude. E só teve sorte porque o garoto o fez por si
— Meu Deus! Você tem um aquário de piranhas! — ele exclamou, quase esquecendo-se de Jimin para aproximar-se do aquário, parecendo que ia atirar-se sobre ele.
Céus, era como se eu tivesse trazido uma criança para o escritório.
— É, sim… — Jimin parecia muito perdido em meio a situação, sem saber como falar ou agir, e aquilo deixava-me cada vez mais culpado. — Vocês poderiam dar-me licença por um instante? Gostaria de conversar com Taehyung-ssi em particular.
Sanha pareceu extremamente decepcionado, mas não tardou a sair com os outros dois. Já eu, sentia como se meu tempo estivesse acabando e cada passo deles para fora fossem meus segundos restantes de vida indo embora.
— Jimin hyung… — comecei.
— Eu não faço a mínima ideia de como falar sobre isso — disse-me, sincero, cortando qualquer coisa que eu pudesse dizer. Voltou à sua mesa, apoiando os cotovelos no tampo e enfiando o rosto entre as palmas. — Por quê? — perguntou-me, depois de um longo suspiro. O ar triste em sua expressão conduziu um gosto amargo à minha boca. — É uma vingança?
— Não, hyung. É claro que não. — Abanei a cabeça e as mãos, sentando-me à mesa, à sua frente. — Eu… — Engoli em seco. — Eu agi com base em sentimentos, não queria conversar com você por conta da nossa briga. Tudo o que eu sentia era raiva, receio, tristeza, e acabei fazendo tudo sozinho sem te consultar — soltei. — E, céus, eu sei como isso foi completamente errado, não precisa me dar uma bronca, eu sei, hyung, e me arrependo muito.
— Sabe que, agindo assim, poderia comprometer nosso trabalho, não sabe?
— Eu sei, Jimin hyung — choraminguei. — Eu sei…
— Somos uma dupla, Tae. Nós mandamos neste lugar juntos e trabalhamos juntos para mantê-lo firme. — Jimin cobriu meu pulso com a mão, ainda parecia um pouco irritado, mas suas bochechas já voltavam para a cor normal. — Olha, eu entendo você, de verdade. Mas precisamos agir como profissionais neste quesito, principalmente quando temos uma empresa nacionalmente famosa na jogada. Apenas aja com imparcialidade.
Abanei a cabeça, descrente.
— Jimin, eu nunca conseguiria agir com imparcialidade com você, nunca. — Suspirei. — Mas eu prometo que isso não irá se repetir. — disse com seriedade.
— Tudo bem, acredito que eu mereça isso no final das contas. — Ignorei aquilo. Talvez ele merecesse, sim, uns bons tapas, mas nada que justificasse minha extrema infantilidade.
Pensei que nossa conversa acabaria por ali, mas algo brotou em minha cabeça, e eu fui rápido em dizer em voz alta.
— Jimin… Podemos, por favor, não discutir mais, de preferência nunca mais? — Eu não parecia o único surpreso com minha sentença. Porém, já havia começado a falar, que mal teria prosseguir com aquilo? — Eu sei que as coisas vêm sendo difíceis, nós estamos nos estranhando por fatos bobos e isso é tão ruim, estou cansado.
Jimin ficou alguns segundos sem reação, antes de relaxar na cadeira.
— Tem razão. Também estou cansado — assentiu. — Mas nós sabemos como tudo isso começou.
— Ah, hyung. Sobre isso… — Travei, incrédulo com o que eu mesmo estava prestes a dizer.
— Não me peça para desistir, por favor — suplicou, e mesmo que não fosse aquilo que eu iria falar, bufei como uma criança mimada.
— Você sabe que eu não concordo com isso, hyung. — Fui firme em não abandonar minhas próprias decisões. Ainda que não parecesse mais tão convicto quanto antes.
— Então nós já sabemos aonde isso vai chegar. — Senti meu estômago revirar e precisei morder a língua para ficar quieto. — Vamos deixar isso para lá, traga os estagiários aqui. — Mudou de assunto rapidamente, como costumava fazer quando entrava em becos sem saída. — Deixe-me conhecê-los melhor. — Ele arrumou os óculos, assumindo uma postura profissional. — Vamos ver se algum deles vai ser bom o suficiente para continuar na BoraHae.
Assenti, retirando-me para trazê-los de volta.
[...]
Naquele mesmo dia, depois passar o resto da tarde com Jimin elogiando Soojin e Huang Zhou e a um passo de demitir Sanha em seu primeiro dia depois do estagiário quase quebrar seu aquário de piranhas, decidi fazer uma pequena visita ao apartamento de minha mãe. Antes de voltar para o meu, como fazia esporadicamente sempre na companhia de Jimin.
Haviam alguns livros guardados na imensa estante de Taehee que seriam muito úteis para um projeto da faculdade em uma matéria cuja nota eu precisava com urgência; e mesmo que as lembranças ainda me corroessem — sendo esse um dos principais motivos para eu não ter vendido o apartamento —, não era mais tão árduo sentir-me a vontade lá dentro, e aquilo me instigou a ir logo de uma vez, ao invés de deixar para outro dia como a primeiro momento pensei em fazer.
O prédio onde estava localizado o apartamento de minha mãe não era longe do que Jimin e eu residíamos, o que acarretava em um percurso rápido e sem distrações que não me permitiu ter tempo para mudar de ideia no meio do caminho.
No local, tudo parecia da mesma maneira, desde os móveis milimetricamente organizados e escolhidos com a precisão de uma arquiteta renomada, até os enfeites bregas na geladeira gigantesca. Eu não tinha a menor coragem e nem sentia-me no direito de mudar algo da decoração que ela fizera com tanto capricho.
Observando a estante alta da sala, onde uma camada fina de poeira se acumulava — precisaria urgentemente pedir para a equipe de limpeza aumentar as visitas —, selecionei os livros da prateleira com cuidado, feliz por encontrar os títulos que procurava. Assim como eu, mamãe gostava de arte, principalmente história da arte. Por sua causa, pude ter o apoio que precisava.
Folheei um dos livros, meu nariz sofrendo pelo cheiro de mofo e a poeira que voou livre. Em meio a um espirro, notei uma folha de papel entre as páginas do livro que contava um pouco da história da arte abstrata e sorri pela coincidência. Aquele havia sido um dos meus primeiros desenhos, talvez até um dos mais simbólicos entre todos de minha infância. Recordava-me, entre vagas memórias, de quando o fizera para uma tarefa boba de artes na escola.
Quando era criança, uma professora pediu para que nós, os alunos, fizessemos um desenho sobre como nos enxergávamos, basicamente um autorretrato. As outras crianças capricharam em tentar reproduzir seus rostos com linhas disformes e cores o mais parecidas possível com a realidade.
Entretanto, eu simplesmente não consegui, como se estivesse com um bloqueio artístico ainda que tão novo. Levara aquela simples tarefa a um patamar muito elevado. Queria que fosse meu eu verdadeiro e não um simples reflexo de meu rosto. Mas eu ainda era uma criança, afinal, sem muitas noções e que não se conhecia, por isso, em meu primeiro autorretrato para uma tarefa de artes, tudo o que podia se ver eram cores esparramadas, pontos aleatórios e riscos; e o significado atrelado àquilo poderia ser quase irreconhecível como a imagem de minha aura que tentei reproduzir. Mas era eu ali, no roxo, amarelo, azul e todas as outras cores de tinta guache que eu tinha naquela época.
A professora, por sua vez, não pareceu gostar muito da minha ideia, e não sei se percebi isso pela nota ruim que recebi depois ou pela cara estranha que fez-me ao entregar-lhe um pedacinho tênue, porém significativo, de mim. Acho que, no final, acreditar que as escolas matam seus artistas talvez não fosse uma ideia tão extremista assim.
Em contrapartida, mamãe adorou meu desenho esquisito e, após comprar minha primeira aquarela, saiu mostrando-o para todos os familiares que encontrava, aproveitando para dizer-me que eu não havia errado em nada e que se a professora de artes não havia gostado, o problema era com ela, porque pensara de maneira superficial e não entendera o verdadeiro significado por trás, e diversas outras coisas que animaram a criança de seis anos.
Agora, não importava-me se nada daquilo fizesse realmente sentido, que na verdade fosse exagero de minha parte querer representar-me de maneira tão complexa, e aquilo não passasse de uma tentativa de Taehee de nunca me fazer desistir, então costumava agradecer todos os dias por aquilo e por todas as outras vezes que se seguiram. Vante nasceu e prevaleceu devido a Kim Taehee; tinha uma parte dela em seu cerne.
Senti meu peito doer com as memórias, tão bonitas, ao mesmo tempo tão dolorosas, e a vontade de chorar não foi controlada. Guardei os livros na bolsa, juntamente ao desenho, com lágrimas no cantinho dos olhos, e despedi-me de tudo, antes de fechar a porta e guardar aquela parte de mim numa caixinha.
Por que o destino havia sido tão cruel e levado Kim Taehee para longe de mim?
[...]
Cheguei em meu apartamento fatigado, exausto, tanto física quanto mentalmente, e encontrei Jimin passando o aspirador de pó pelo tapete com uma cara intensa de tédio, ao mesmo tempo em que Yeontan e Belphegor estavam jogados no tapete da sala, parecendo esgotados, respirando com a língua para fora. Chegar no apartamento e presenciar aquela cena não era nada incomum; morar com três cachorros era como abrir uma fábrica de pêlos, e precisar recolhê-los com o aspirador de pó tornara-se rotina.
Jack, assim que viu-me entrar, parou de latir para o eletrodoméstico como se ele fosse um monstro aterrorizante prestes a atacá-lo e veio pulando até mim. Peguei-o no colo, deixando minha bolsa-carteiro em um dos sofás para jogar-me no outro, suspirando pelo alívio nas costas.
— Jeongguk já foi? — perguntei a Jimin, um pouco alto por conta do barulho incômodo do aspirador, enquanto acariciava Jack deitado sobre a minha barriga, balançando o rabo e olhando para Jimin como se a qualquer segundo fosse pular dali e começar a latir novamente.
— Não faz muito tempo, na verdade — ele respondeu, e, para meu alívio, desligou o eletrodoméstico, vindo se sentar ao meu lado. — Você demorou… — comentou, puxando Jack para ficar entre nós e receber seu carinho também.
— Precisei ir até o apartamento de Taehee — respondi, bocejando.
— Foi sozinho? Por que não pediu minha companhia?
— Eu precisava — sussurrei, encostando a cabeça no sofá. Jimin concordou em um aceno, pondo os pés com meias fofas sobre a mesa de centro e voltou-se para o celular, colocando os óculos.
Ficamos alguns segundos em silêncio, apenas respirando baixinho, logo notei o olhar de Jimin queimando em minha pele, e, ao fitá-lo, ele suspirou, mordendo o lábio inferior.
— O que foi? — questionei, percebendo que ele tinha algo para dizer.
— Eu… preciso da sua ajuda — soltou, subitamente. Pisquei os olhos, sonolento pelo cansaço. Ele passeou uma mão pelo cabelo preto, esperando pacientemente alguma resposta vinda de mim.
— Em quê? — questionei, achando estranho a maneira que tratava do assunto.
— É que… — Ele hesitou. — Lembra do dia que eu fui em Yeonje-gu? — Não pude evitar uma careta.
— Com toda a certeza, esse dia foi bem memorável — murmurei. — Você também não quis me falar o motivo de ter ido, mas posso imaginar. O que isso tem a ver com você querer minha ajuda?
— Primeiro você tem que prometer que não vai ficar com raiva — pediu, com a voz mansa e um bico nos lábios. Era óbvio que suas ações estavam sendo propositalmente daquela maneira para tentar convencer-me com facilidade seja lá do que for. Quiçá apenas o fato de ter deixado os óculos penderem para baixo, sem arrumá-los, ganhando um ar adorável, dizia muito por si só o que queria. Ele sabia bem o que aquele simples adorno necessário em sua face era capaz de fazer. Perante minha falta de resposta e olhar duvidoso, ele sorriu sem graça. — Acho que estou parecendo uma criança.
Sim, ele estava, porém não tanto quanto eu sabia que incorporava quando ficava com raiva.
— Eu prometo — respondi, percebendo que, se quisesse saber o que se passava, não tinha muita escolha. — Eu acho — completei, tentando deixar claro que aquela decisão dependeria bastante do assunto.
Ele assentiu e, pelo visto, aceitou aquilo como uma confirmação para continuar.
— Em Yeonje-gu, eu precisei ir à uma escola particular. Yugin. — Iniciou, olhando para o chão e fazendo carinho na testa de Belphegor, que havia se aproximado. — Não vou esconder a parte do informante, você sabe dele. Ele disse-me que a pessoa a qual estou procurando… O suposto assassino, está enviando uma quantia de dinheiro para um aluno específico daquela escola e eu senti a necessidade de ir averiguar, só que há um “porém”.
— Ah, tem um porém. — Ri, debochado e insatisfeito. Olhei-o com um tédio irritadiço logo depois, que o fez engolir em seco. — Continue.
— Eu não poderia chegar lá, simplesmente do nada, e tentar descobrir alguma coisa. Então, decidi propor uma oficina de arte para os alunos. No começo, foi apenas uma maneira de me infiltrar. — Balancei a cabeça incrédulo, tanto com a frase quanto com a palavra que ele usara, que seria cômica se não fosse trágica; de qualquer forma, aquilo era bem a cara de Jimin. — Entretanto, depois, quando contratei um detetive particular, percebi que, talvez, aquilo não fosse mais necessário e mesmo assim resolvi prosseguir. Só que eu não faço a mínima ideia de como fazer isso e, bom, tenho certeza que você saberia muito bem. — terminou, olhando-me nos olhos.
Suspirei, encarando Jimin com as pálpebras semicerradas, cruzando os braços.
— Espere, estou tentando raciocinar tudo isso — grunhi.
— Eu sei que é difícil compreender tudo…
— Primeiro — levantei o indicador rente ao rosto, interrompendo-o —, você passou a investigar a morte de nossos familiares sem a minha permissão. Depois, contratou um informante de sabe se lá Deus onde, isso não é uma surpresa, entretanto. Então, enfiou-se em uma escola, que, pelo que percebi, você foi diversas vezes, criou uma oficina de arte como desculpa para permanecer lá e, por fim, contratou um detetive particular. Tudo isso pelas minhas costas? — Os ombros de Jimin caíram quando ele suspirou, olhando-me como se tivesse matado alguém.
— Eu sei que...
— E você me julgando porque contratei estagiários sem lhe contar. — comentei, rindo novamente da situação, ainda que não achasse nada engraçada, e ele desviou o olhar, totalmente desconcertado.
— Esqueci de acrescentar o fato de que foi lá que reencontrei Jeongguk.
— Inacreditável. — Joguei a cabeça outra vez no encosto do sofá, resmungando.
— E eu também estou lecionando aulas de dança na Yugin por um tempo, a pedido de Taemin. Reencontrei-me com ele no mesmo dia que fui.
— Que tal fazer uma lista!? — levantei a voz, encolhendo-me no sofá.
— Você prometeu não ficar com raiva — reclamou, soando manhoso.
— Depois de tudo o que você me disse? — Jimin encarou-me com seus olhinhos pidões, e eu revirei os meus. — Não faça isso, Park Jimin — Comecei a ficar emburrado. — Você não é fofo assim toda hora, está fingindo para me convencer.
— E está funcionando?
— Não — menti, mas ainda queria chacoalhar ele.
Queria que a mentira fosse verdade. Queria não ficar sempre rendido aos pedidos de Jimin, mas aparentemente isso estava fora do meu alcance. Apenas a ideia de ficar com raiva dele de novo, passar dias sem ouvir sua voz, deixava-me aterrorizado.
— Vamos lá, Tae. Eu preciso da sua ajuda, ou irei acabar estragando tudo. Não quero desistir disso. — Jimin se aproximou, colocando Jack sobre seu colo e encostando a bochecha gordinha em meu ombro. Golpe baixo, muito baixo. — Você é incrível, e não pense que esqueci do dia em que me disse que gostaria de lecionar se tivesse uma oportunidade.
— Sim, hyung. Gostaria de dar aulas para crianças que comem giz de cera quando os pais não estão vendo e fazem desenhos esquisitos. Não para adolescentes mimados que idolatram Van Gogh para parecerem cult, quando, na verdade, só conhecem uma obra dele. O cara cortou a própria orelha em um surto e é venerado.
Jimin riu baixinho, mas não comentou mais nada sobre meu desabafo.
— Por favor... — pediu novamente, com o rosto próximo ao meu. Os olhos brilhantes fitavam-me com tanta intensidade, que senti-me exposto e envergonhado.
— Você só contou essas coisas porque precisava da minha ajuda. Duvido muito que iria contar se esse não fosse o caso. — Desviei o olhar, afetado.
Ele choramingou, escondendo o rosto em meu corpo. Pouco se parecia com o dominador que adorava ver seus submissos implorarem por perdão, e pude perceber que, ali, as reações não eram calculadas para convencer-me; ele parecia realmente aflito.
— Tae, estou sendo um babaca — começou. — Nós estamos sendo babacas um com o outro. Sei que estou errado do mesmo jeito que você disse saber que estava hoje mais cedo, e assim como você, senti-me receoso em expor tudo. Uma “simples” descoberta sua sobre o que eu procurava nos fez passar dias sem nos falarmos direito, não queria que isso acontecesse outra vez.
Eu poderia entender muito bem aquela parte, mas jamais acreditaria que esconder aquelas diversas coisas de mim fosse a melhor solução.
— E você acha que despejar tudo em cima de mim de uma vez, é melhor?
— Não queria ter te envolvido nisso — negou contra meu ombro. — Eu conversei com a Hwasa e ela me disse que você me apoiaria ao menos nisso. Sei que você não vai apoiar as investigações, mas, por favor, pelo menos vá comigo lá. Ajude-me a encher a cabeça daqueles jovens com sua arte, eles vão amar você.
— Achou esse discurso brega no Google?
— Tae… — sussurrou.
— Eu pelo menos vou ganhar algo com isso?
— Só experiência, é totalmente voluntário. — Jimin respondeu, olhando-me profundamente com um ar triste. — Por favor...
— Ah, tudo bem, tudo bem. Você conseguiu me convencer, feliz!? — exasperei-me. — Eu vou te ajudar nessa oficina. Pare de falar desse jeito, está me deixando triste.
Ele levantou o rosto, os olhos úmidos se curvaram quando o sorriso apareceu. Céus, eu conseguiria negar alguma coisa para esse homem caso ele me pedisse? Onde estava seu olhar másculo e quase sempre impassível?
— Acho que Jeongguk vai participar também — comentou, esfregando as palmas nas bochechas avermelhadas. — Agora que está trabalhando para nós, ele não tem mais desculpa.
— E por que você não me contou isso antes? Nem precisaria deste discurso encharcado de sentimentalismo!
Fomos dormir juntos naquela noite, agarrados como, graças aos céus, tornamos a fazer.
Jimin e eu costumávamos dormir juntos desde a infância, quando ele tinha medo do escuro, e eu de ficar por muito tempo sozinho. Por conta de nossas famílias serem relativamente próximas, tanto de maneira íntima quanto geográfica, nós tínhamos o privilégio de permanecer quase vinte e quatro horas na companhia um do outro, e com o tempo, aquilo passou a ser algo necessário, tão necessário quanto respirar.
Park Jimin funcionava como meu oxigênio.
[...]
Assim como minha primeira exposição, o leilão aconteceu tão ótimo quanto poderia. Depois do grande êxito de minhas telas, uma despedida de partir o coração e minha associação confirmada com a Pace Gallery, eu me sentia dez vezes mais bem afortunado do que era antes, e qualquer pessoa que me olhasse poderia estar ciente que receberia um sorriso imenso.
E com todos aqueles zeros em minha conta bancária, a vontade de sair por aí cantando “I see it, I like it, I want it, I got it” se tornava quase insuportável. Lutar contra esse lado consumista era como entrar em uma guerra comigo mesmo. Estava acostumado a meu consumo desenfreado de qualquer coisa meramente utilizável e, com acostumado, eu queria dizer viciado.
Depois de me afundar em uma loja de materiais artísticos, não sei qual força maior fez-me dirigir até um bairro recém-formado, um lugar um tanto perto de Yeonje-gu, onde a maioria das casas estava à venda e a vizinhança se formava lentamente. Talvez pelo fato de Jimin e eu reclamarmos constantemente que aquele apartamento no centro não estava mais servindo para nosso uso pessoal, questões do trabalho e muito menos conseguia aconchegar nossos filhos espaçosos de maneira adequada; ou por puro impulso, curiosidade e vontade de me livrar logo de todo aquele dinheiro.
Quando percebi, estava fazendo um pequeno tour por todas as casas da rua. Grandes e bonitas, como as que vemos em filmes americanos. Comparando a estrutura, preços e quintais grandes onde Jack e Belphegor poderiam correr até cansar, sendo acompanhado por uma moça bonita que parecia muito mais interessada em ver fotos de Yeontan no meu celular do que mostrar-me quais casas possuíam piscina.
No final da tarde, eu tinha uma casa em mente: a terceira da rua, dois pavimentos relativamente do mesmo tamanho, com um longo jardim florescendo nos fundos. A fachada era agraciada com grandes janelas de vidro e uma sacada mediana aparecia na lateral. Tinha a decoração genérica, de uma forma que convidava o comprador a desenvolver seus próprios gostos.
Após papear com um senhorzinho com cerca de setenta anos que poderia vir a ser meu vizinho de bairro, voltei para o apartamento, com uma pilha de panfletos com plantas e diversos números dos quais poderia contatar caso o interesse pela compra se perpetuasse.
Encontrei Jimin tomando café, concentrado, enquanto escrevia alguma coisa em seu tablet. Decidi que não iria comentar nada sobre meu passeio. Jimin não gostava nem um pouco da minha impulsividade, e odiava todas as vezes que eu gastava grandes quantidades sem pensar. Ainda mais depois do acontecido com Jack e os vasos de edição limitada.
Deixaria para revelar quando suas palavras persuasivas já não pudessem mais convencer-me do contrário e a casa escolhida estivesse em meu nome.
— Ainda estamos em trégua? — Jimin questionou, brincando, depois de eu tê-lo dado um meio abraço e me encaminhado ao balcão para preparar nosso jantar. Já havia se passado a suposta uma semana de trégua, mas ele sabia que dada todas as circunstâncias que se acometeram sobre nós nos últimos tempos, a trégua nem sequer havia chegado a existir, simplesmente não fora necessária.
— Depois de eu aceitar me enfiar nesse seu planinho, acho que não há mais a necessidade de estabelecer tréguas — respondi, fingindo estar pensativo ao que procurava alguns vegetais na geladeira para começar a cocção.
Jimin concordou comigo, aparentemente feliz por aquilo tanto quanto eu me encontrava. Era ótimo saber que tudo havia voltado a seu devido lugar.
— O aniversário de Jeongguk não está longe… — Ele se virou para mim, relembrando-me desse fato. Praguejei por quase tê-lo esquecido, muitas mudanças poderiam acontecer quando ele atingisse a maioridade.
— Graças a deus.
— E eu queria… — continuou, com um olhar afiado, a voz alta transpondo a minha propositalmente. — Comprar um presente para ele, algo que seja significativo.
— Eu não vou comprar nada, não, mesmo que minha vontade seja de enchê-lo de presentes caros — comentei, pensativo. — Irei presenteá-lo com o que sei fazer de melhor: uma tela. Muito superior a um presente comprado.
— Você presenteando alguém com uma de suas telas? Um milagre.
— Ah, cale a boca. Você é a pessoa a qual eu mais presenteio com minhas telas. Apenas parei porque você não tem mais espaço em nenhum lugar para colocá-las. — Revirei os olhos.
— Não foi bem isso que eu quis dizer… — Eu sabia muito bem o seu ponto.
Não costumava presentear ninguém com minhas obras por puro ciúmes. Poucas pessoas tiveram a oportunidade de ganhar alguma composição minha, e entre elas, minha mãe e Jimin eram os principais, talvez os únicos. Saber que faria aquilo por Jeongguk sem pensar duas vezes desde a primeira vez que conversei com ele, poderia dizer muito sobre o caminho que meus sentimentos estavam tomando.
— Ele me disse que toca violino — salientei. — Vou usar isso a meu favor. — Abri um sorriso, mentalizando como seria a tela que iria pintar para presenteá-lo.
— Oh, você acaba de dar-me uma ideia! — Jimin sorriu com o rosto inteiro em minha direção, e eu quase larguei as alfaces que cortava para apertar suas bochechas cheias.
— Eu lhe dei uma ideia? — indaguei, confuso. — Ah, mas é claro que dei. Kim Taehyung é fonte de inspiração para muitos — completei, fingindo um narcisismo eloquente ao jogar os cabelos tingidos de vermelho para trás com um movimento de cabeça.
— Não seja convencido. — Jimin riu, mas ele sabia que embora fosse uma brincadeira, existia uma ponta de verdade.
— Me diga sua ideia de uma vez — pedi.
— Primeiro, nós precisamos encontrar uma loja de instrumentos musicais. — Abriu o notebook para pesquisar estabelecimentos pela região que satisfizessem suas exigências.
Logo, uma luz acendeu-se em minha mente e arregalei os olhos.
— Sério? você vai comprar um...? Meu Deus, isso é perfeito! Por que não pensei nisso antes? — grunhi, vendo-o sorrir para o notebook e pegar seu celular em seguida.
— Você acabou de dizer que algo feito com as próprias mãos é melhor do que algo comprado. — Jimin encarou-me, com ar de desdém.
— Você tem que levar a sério tudo o que eu falo?
Ele balançou a cabeça, franzindo os lábios e ignorando minha pergunta.
— Encontrei um Luthier que ainda está atendendo. Pegue o seu casaco e vamos. — Levantou-se em um pulo, fechando o notebook.
— Agora?! Mas estou cansado, e ainda tem o jantar... — Olhei para os vegetais sobre o balcão, esperando ansiosamente para serem cortados.
Eu até poderia sugerir que ele fosse sozinho, mas eu entendia que era complicado para nós e nossa relação de codependência ficar longe um do outro, ainda que diversos momentos de nossa vida nos obrigassem a isso. Se existia a opção de ir juntos, ela seria sempre levada como prioridade.
— Sim, agora! — exclamou, pulando sobre o corpo enorme de Belphegor deitado no caminho.
— Você pode deixar para outro dia... — Abri um biquinho. — Ainda tem um tempinho.
— Ande logo, isso é importante. Você faz o jantar depois!
— Claro, quem precisa comer, não é mesmo? — resmunguei, mas Jimin não ouviu, já estava na sala, abrindo a porta. — Aigo, depois eu que sou o impulsivo…
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