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História As Estrelas Que Você Me Deixou - Cacos de Vidro em Toda Parte


Escrita por: guilhermelefay

Notas do Autor


PARTE 1: ONDE TUDO TERMINA

Capítulo 3 - Cacos de Vidro em Toda Parte


Fanfic / Fanfiction As Estrelas Que Você Me Deixou - Cacos de Vidro em Toda Parte

Afundo o rosto na pia cheia, água transborda e molha o chão. As vozes na cozinha desaparecem, assim que meus ouvidos são submersos e os pensamentos que colidem velozes na minha mente se entregam a quietude, à medida que meus pulmões ardem, clamando por ar.

Levanto e respiro, ofegante, mas sem fazer nenhum barulho. Seco o rosto na toalha, a tempestade de lembranças momentaneamente entorpecida. Tento disfarçar o cabelo, já antecipando a série de críticas que atrairá, mas molhado ele parece ainda mais longo e mais desordenado. É uma tarefa inútil. Desisto e saio do jeito que estou.

Minha família se reúne em volta da mesa, um hábito que não temos de verdade, comer juntos, mas minha mãe tenta forçá-lo de tempos em tempos.

— E aí, Caio? — meu irmão cumprimenta, quando sento ao seu lado. Ele é seis anos mais novo, ainda assim, é maior do que eu. E come como se não houvesse amanhã. Parece não ter se acostumado com a nova altura, nem com as outras transformações repentinas no corpo. A postura curvada, parece deslocado dentro de si mesmo, o rosto cheio de espinhas.

— Oi — respondo, sem conseguir evitar o tom divertido, ao notar as mudanças.

Há uma tigela de cozido de galinha na mesa, outra com batata doce e por último um prato largo de cuscuz. Antes de tocar em qualquer coisa, me sirvo de uma xícara cheia de café. Através da nuvem de vapor que se ergue à minha frente, noto o olhar torto da minha mãe, dirigido a mim e ao meu prato vazio.

Apesar disso, ela não interrompe sua longa narrativa dos planos para o dia seguinte. Laura, filha de Tia Teresa, terminou o ensino médio e a festa de formatura acontece amanhã à noite, evento devido ao qual minha mãe está ainda mais atarefada.

— E por que eu é que tenho que ficar pra lá e pra cá buscando convidado? — Protesta meu pai, quando ela disse que uma das funções dele seria, além de levá-la ao salão e até a loja onde alugou o vestido, dar carona a algum parente do marido de tia Teresa.

— Porque eu tô dizendo que sim — retruca ela. — Não vem bancar o chato, quer aquele carro pra quê?

É o tipo de conversa típica deles. Meu pai se nega a fazer qualquer coisa que ela propõe, ou melhor, impõe. Mas no fim, para evitar conflito, sempre acaba fazendo exatamente o que lhe foi dito.

Minha mãe continua a falar da enorme lista de afazeres que ela planejou. Aos poucos, perde minha atenção. Começo a colocar pedaços de batatas a esmo no prato e então é meu irmão quem reclama, mas não ouvi o motivo. Me volto para a tigela de galinha e agora sou eu o tópico da minha mãe.

— O quê? — Paro com o braço estendido a caminho dos pedaços de carne.

— Tu trouxe a roupa que eu mandei? — repete ela.

Levo um segundo, com o cenho franzido, para me localizar. Ela se refere a calça jeans preta e a camisa de botões azul, que me faz parecer uma criança desajeitada.

— É, trouxe — afirmo.

Embora de barriga vazia, minha fome é pouca. Mesmo assim, faço para parecer ter apetite, mantendo a boca sempre cheia, antes que digam mais uma vez que preciso de vitaminas e tentem me enfiar outra dose de suplementos.

— Precisa de alguma coisa a mais pra vestir? — indaga a minha mãe. — Amanhã vai na loja comigo, pra pegar outra camisa — continua ela, sem esperar pela minha resposta. — É melhor outro sapato também, vi uns bem bonitos lá, hoje —

— Precisa de nada não, mãe — corto.

Não somos ricos, nem perto disso. Mas o espírito consumista e o valor pelas aparências da minha mãe acham que somos. A falta de controle dela já havia trazido sérios problemas para casa e mesmo assim ela não perdia uma única chance de se endividar.

— Tu acha que recebe quanto? — pergunta meu Pai, ligando a televisão velha, de tubo, que ocupa um dos compartimentos do armário da cozinha. — Já tem pouca coisa pra pagar esse mês...

A música introdutória do Jornal Nacional ecoa pelo recinto, unindo-se ao som de talheres, no barulho de fundo do jantar e da conversa.

— Vou marcar um corte pra tu também. Tem um salão novo no centro, pra homem — continua minha mãe.

— Não precisa, tô bem assim — me apresso em recusar, ainda de boca cheia.

— É claro que precisa, tá horrível assim. Amanhã corta igual ao de Gustavo — ela insiste.

Desvio o olhar para o meu irmão por um instante. Degradê raspado nas laterais, um pouco mais de dois dedos na parte de cima, uma linha marcada dividindo o cabelo em duas partes. Na moda, porém, feio. Ficaria ainda pior em mim.

— Tem cerveja lá — diz Gustavo, admirado, como se falasse da maior descoberta do século. — E dá pra jogar baralho enquanto espera a vez.

— Que legal... — respondo. Não é difícil completar a imagem do tal salão com posters de mulheres seminuas nas paredes, cheiro de cigarro eletrônico e clientes que andam com a chave do carro balançando na cintura, pendurada no cinto. — Não vou cortar, tô bem assim — repito, diante a expressão contrariada da minha mãe, que transforma a boca numa linha fina.

— Parece que tu tava perdido no mato — diz ela, divertindo-se. — Vou marcar pra amanhã de tarde. Faz um corte bonitinho e pronto, mais arrumado.

— Eu não vou cortar — afirmo mais uma vez. Meu tom de voz soa grosseiro, irritado, o suficiente para fazer Gustavo me olhar com espanto.

Meu pai permanece alheio, prestando atenção no jornal. Minha mãe me ignora, começa a falar de outros planos, como se no fundo soubesse que a minha vontade e recusas cairiam por terra, como a de todos os outros presentes, diante da sua insistência e expressão brava.

— Mãe — interrompo. — Eu não vou cortar.

Ela suspira, balança a cabeça em desaprovação:

— Fica assim, então, tu não faz nada que ninguém pede mesmo, por isso só quebra a cara — a voz dela soa mais aguda e pesarosa, a expressão se fecha em irritação e censura. Tento não prestar atenção nas indiretas contidas nas entrelinhas. — Fica do jeito que tu quiser, mas depois não reclama.

Pela reação dela, qualquer um poderia dizer que eu, no mínimo, tinha pisoteado algum calo seu por baixo da mesa. Um silêncio incômodo se segue, a conversa morre, minha mãe se cala e se concentra em comer.

No jornal, a matéria é sobre falas do Presidente em uma coletiva de imprensa. Involuntariamente, minha atenção acaba se voltando para a televisão. Um jornalista pergunta sobre o paradeiro do motorista da família Bolsonaro, Queirós, acusado de lavagem de dinheiro. A resposta do político é tentar ofender o jornalista dizendo que ele tem "uma baita cara de homossexual", como se o cargo que ocupasse lhe desse o direito de não fazer o uso do mínimo decoro, ou simples regras básicas de convivência e respeito. Ele fala como se homossexual fosse ofensa. A matéria tratava sobre a indignação dos jornalistas diante da postura do presidente.

— É uma frescura desse povo — diz o meu pai. — Por qualquer coisa querem desmoralizar o homem. Se parar pra pensar ele tem cara mesmo — completa e como se só então se desse conta da minha presença, se cala e volta-se para o prato.

Suspiro. Tento ignorar e voltar a comer, mas o clima na mesa se torna tão sufocante que é impossível engolir. Por um momento, sinto a necessidade latente de dizer algo, o dever cívico de não permitir que aquele tipo de pensamento permaneça sem nenhuma crítica. Mas é o meu pai, um bolsonarista convicto, de quem eu já desisti. Uma palavra contra seu precioso projeto de líder neonazista geraria uma discussão longa, da qual não vejo mais propósito em participar.

— Sabe, perdi a fome — quebro o silêncio, levantando. — Vou tentar dormir, minha cabeça tá doendo.

— Vai comer só isso mesmo? — minha mãe exclama. — Caio, meu filho, tu precisa se alimentar melhor. Só emagrece, qualquer doença que pegar te derruba e a gente não vai poder fazer nada.

— Eu tô bem, tô bem — garanto impaciente. Deixo o prato na pia e volto para o quarto. Ao fundo, ela continua me alertando sobre a minha alimentação ruim e o meu porte físico debilitado. Fala como se eu estivesse prestes a morrer, mas não expõe a real causa das suas preocupações. Falar faria o assunto mais real e isso ela não suportaria.

O som da sua voz não atravessa a porta, para o meu alívio. São as primeiras horas das duas semanas e eu já estou exausto, embora acredite que dormir será uma tarefa difícil, devido a apreensão de ter outro sonho. Não acendo a lâmpada, para não correr o risco da minha mãe achar uma boa ideia vir até aqui em meia hora e insistir que devo beliscar alguma coisa; e ao receber uma resposta negativa, engatar no seu discurso sobre a minha perda de peso e sobre os cuidados que alguém como eu deveria ter para contornar os efeitos colaterais dos remédios.

Sento no parapeito da janela e respiro o ar quente da noite, tentando afastar o sentimento infeliz e miserável que se contorce no meu peito. Pego o celular em busca de uma distração qualquer, algo que direcione os meus pensamentos para um lugar calmo, onde bobagens sobreponham preocupações.

De forma automática, toco o ícone do Instagram e um infinidade de imagens alegres, de pessoas sorridentes, doces coloridos, cachorros e obras de arte fora de contexto, surge com a página de rolagem infinita. É fácil se perder na corrente de positividade das fotos, mas só se você não olhar demais, por muito tempo, para cada uma. Do contrário, a ilusão racha, os indícios da mentira se tornam evidentes e a realidade atinge como um baque surdo. A vida não é feliz como as pessoas tentam mostrar ser. E mesmo nas fotos onde a felicidade é o mais próximo da genuína, para alguns ainda é possível tropeçar em fragmentos de melancolia, em correntes impiedosas que carregam a mente para longe, para agridoces lembranças.

Paro diante dos cabelos esvoaçantes de Vanessa, posando em uma paisagem nebulosa, uma planície verde portuguesa, que parece cenário de O Morro Dos Ventos Uivantes. Ela sorri para a câmera distante e acena. A outra mão agarra o casaco, impedindo que esse seja arrancado do corpo. Sua expressão desfocada é contente, mas em mim desperta uma amarga saudade. Tanto dela quanto dos meses agradáveis antes que decidisse trancar a faculdade de jornalismo e tentar a vida morando com a tia, na Europa.

Vanessa entrou e saiu da minha vida durante a época da qual mais sinto falta. Por isso, ela ganhou essa áurea de manhãs mornas e passeios descalços sobre a grama do campus, ao mesmo tempo que invoca uma sensação de queda, ao saber agora que os sonhos, as esperanças daquela época, não são em nada semelhantes ao terrível fim que é o presente.

Abro o perfil de Vanessa, toco o ícone de mensagens e volto a uma conversa que abandonei três dias atrás. Eu falava sobre como seria o meu natal e a resposta dela, a qual só agora visualizo, dizia que se eu fosse paciente, tudo ficaria bem. É o seu conselho mais recorrente desde que se mudara.

Começo a digitar uma mensagem, uma tentativa de explicar o motivo pelo qual o lugar me sufoca, mas as palavras não me vêm. Penso em narrar a última meia hora, porém, desisto antes de terminar a primeira frase. Deixo Vanessa, volto a página inicial e a infinidade de fotos. Não é justo bombardeá-la de lamentos e frustrações, em meio a seus momentos de alegria, só por que me sinto infeliz.

Chego a uma foto de Luís e meus olhos não a deixam ir embora. Se Vanessa não merece me ouvir reclamar, ele merece muito menos, só pelo fato de ter sido arrastado junto comigo quando a minha vida entrou no turbilhão caótico e destrutivo de meses atrás. Na verdade, mesmo que eu contasse, ele não ouviria. Além disso, não preciso ser lembrado mais uma vez de que desconsiderei e não segui nenhum de seus conselhos e é por isso que estou exatamente aqui. Tenho certeza de que a resposta dele seria algo nessa linha, se houvesse uma resposta.

A foto acentua a nuvem de amargura instalada no meu peito, uma faísca indesejada de inveja a incendeia e a ardência do fogo me faz suspirar. É bom ver alguém que no passado tentou me ajudar, que já foi meu amigo, realizado. Mas é difícil ver alguém conquistar algo tão semelhante ao que perdi. Ou melhor, ao que achei que tinha.

Luís sorri abertamente para a câmera, seu namorado, de certo, é o fotógrafo. A pele negra reluz ao brilho suave do pôr do sol. Está em frente à casa nova, algumas ruas da casa recifense onde eu moro. Conheço bem o lugar, mesmo que ainda não tenha ido até lá depois que se mudou. E considerando nossa última conversa, estou certo de que não sou mais bem-vindo. Debaixo de cada braço, segura uma das cadelas filhotes recém-adotadas.

Tão vívida quanto dita em voz alta, na penumbra do quarto, a frase de Álvaro ecoa em meus ouvidos, reclamando da bagunça que o gato havia feito no lixeiro da cozinha. "A gente devia ter adotado um cachorro, dois, e não fariam tanta sujeira como esse demoniozinho".

Jogo o celular na cama, longe de mim. O desespero vertiginoso, a sensação de queda infinita ameaça me atingir outra vez. Dr. Verônica havia me dito para evitar as memórias perigosas, deixá-las guardadas em algum lugar afastado da mente, até que eu pudesse visitá-las sem me sentir assim. Mas é impossível manter a distância quando tudo ao redor as invoca, quando são tão vívidas e sensoriais, quando a maioria dos aspectos da minha vida continuam, de alguma maneira, ligados ao mesmo ponto, agora um espaço vazio.

Se eu dormisse o tempo passaria mais rápido, quem sabe acalmasse o meu tormento, mas a iminência de novos sonhos me mantém apreensivo e desperto.

Duas semanas, serão duas semanas até eu estar livre para ir embora. Porém, lembrar e se afogar na familiar angústia serão tormentos constantes. Não posso escapar de mim.


Notas Finais


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Até o próximo!


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