Era um dia quente. Nuvens de calor se erguiam do concreto da calçada, mesmo ainda sendo dez da manhã. Eu deveria estar na escola, voltando para a sala depois do recreio, mas naquele dia, sequer fui. Aos meus nove anos, menti que estava doente para poder ficar em casa o dia inteiro jogando Pokémon. Não era a primeira vez e nem seria a última. Meu ensino fundamental fora recheado de faltas.
A escola não me era atrativa, como passou a ser no ensino médio. Eu não conseguia fazer amizades duradouras e os trejeitos femininos atraíam o tipo errado de atenção. Eram raras as semanas que passavam sem ao menos uma briga séria, com arranhões, roupas sujas de terra ou até um nariz quebrado. Também não era bom aluno. Notas baixas e uma dificuldade aparentemente intransponível de aprender me rendiam castigos em casa e humilhações públicas na escola.
Na mesma época, meus pais me levavam ao primeiro de uma série de psicólogos evangélicos, que os enganaram por mais de dois anos, prometendo "arrancar o homossexualismo do seu filho e ajudá-lo a se tornar um homem de mente sã". Até que a minha mãe entendesse que eu não iria mudar e restava me aceitar do jeito que eu era, até que conseguisse convencer o meu pai do mesmo, já haviam se passado inúmeras sessões de terapia que buscavam fazer eu me sentir culpado e com medo do inferno. Medo que aos poucos transformou os trejeitos indesejáveis em retraimento e uma raiva descomunal.
Aquele dia era apenas mais um em meio a uma série de faltas mentirosas, quando eu preferia ficar sozinho com os meus consoles de segunda/terceira mão, a ter qualquer tipo de companhia.
A casa tinha uma estrutura diferente, uma obra no andar de cima transformava parte da sala no quarto de Gustavo, que ainda dormia com meus pais, apesar de já ter três anos. Minha mãe, que à época ficava em casa integralmente, já que saíra do emprego quando engravidou, reclamava toda manhã com o meu pai, devido ao andamento demorado da obra.
Os móveis da sala haviam sido colocados na parte de baixo, no galpão térreo que servia de garagem e oficina de carros, a qual tinha o mesmo movimento fraco que tem hoje. Na mesma disposição que se dispunha no outro cômodo, a televisão ligada em frente ao sofá servia apenas como barulho de fundo, um hábito que meu pai detestava. Tentava economizar em tudo para cobrir as despesas de um segundo filho. Ligar a TV e não assistir era quase um ato criminoso.
— Caio, joga esse lixo lá fora! — Minha mãe grita da cozinha. Um segundo depois, Gustavo, doente de verdade, entoa um choro estridente ao ser acordado. Escuto minha mãe xingar a si mesma e então, sua raiva se direciona a mim: — Caio, joga o lixo! Agora!
Subo as escadas apressado, mas com passos pesados, mantendo o olhar recaído que a minha atuação exige. Minha mãe consola Gustavo junto ao berço, conferindo se a febre baixou tocando a testa dele com as costas da mão. Ela me manda deixar de corpo mole e juntar as cascas de verdura na pia e recolher o lixeiro do banheiro. Depois, posso levar tudo para a rua.
O sol a pino fez meus olhos arderem, a luz dourada emanava de todas as direções, ofuscando parte da vista. Uma brisa morna soprou a camiseta larga, os shorts do pijama surrado que me cobria o corpo, enquanto este se curvava ao peso das sacolas cheias. A lixeira comunitária ficava do outro lado da rua, numa esquina com uma outra passagem longa, ladeada por casas de muro alto. Alcancei o latão de lixo, ergui as sacolas e então, aconteceu.
O barulho alto da moto cresceu e mesmo que os ouvidos captassem, só tomei consciência dele no último momento. Ergui os olhos. À menos de cem metros, uma mulher caminhava na calçada, colocava uma mecha de cabelo atrás da orelha, fitando o chão, os passos apressados e distraídos. Usava um vestido rosa, que ia até os joelhos, com mangas curtas enfeitadas por rendados brancos, assim como a gola.
Nela, apesar de bonito e arrumado, o vestido parecia apenas uma "roupa de ficar em casa" e talvez fosse exatamente isso. Assim como a roupa da minha mãe, o ventre estava escurecido, úmido, como se a pouco lavasse a louça e se molhasse preparando o almoço.
Ela deve ter se dado conta do barulho ao mesmo tempo que eu, tarde demais. Ergueu os olhos e encontrou os meus, um olhar distraído, imerso nos próprios pensamentos. Logo, tornou-se curioso, como se emergisse para a realidade do mundo. Teve tempo de virar a cabeça e encarar a moto desgovernada, que invadiu a calçada e a atropelou em cheio.
O impacto gerou um estrondo assombroso, metal partindo, concreto quebrando. A moto atingiu o muro, veio deslizando na calçada até parar a um passo de mim.
A mulher foi erguida, arremessada com a violência da batida. Quando caiu, o pescoço se dobrava em um ângulo perturbador, a cabeça sangrava, criando uma poça junto dos cabelos. O rosa do vestido se transformava em intenso escarlate, à medida que se embebia de sangue. Os curiosos olhos verdes, eram agora opacos. Gritos de horror emergiam, de passantes e moradores, mas eu não enxergava nenhum. Só a mulher, só os olhos vazios.
Foi a primeira vez que vi alguém morrer.
Minhas pernas tremeram, me fizeram cair sentado e ralar as mãos. Com a atenção vidrada na mulher e no piloto da moto, que cambaleando, tentava se colocar de pé, senti o choque sugar a bile para fora, queimar na garganta, o coração batendo tão rápido e forte que fazia a pulsação audível atrás das orelhas.
No instante seguinte. Não estava mais no chão escaldante. Meu pai me segurava no colo, me afastando da visão do corpo, perguntando de novo e de novo se eu estava bem.
Ele não teve uma resposta. Nem naquele dia nem depois.
Sentado na janela, consigo ver a mesma lixeira e a rua do acidente. Lá fora, alguém fala alto de dentro de um bar, mais alto que a própria música. Um e outro carro aceleram de vez em quando, diminuindo na lombada e seguindo rápido outra vez. Em nada aquela rua barulhenta reflete o vazio nos olhos verdes, mas para mim, de alguma forma, eles continuam lá.
Naquele dia, na minha escola, um menino de outra turma havia entrado numa briga. Considerado culpado, o levaram para a diretoria e lhe deram uma suspensão. Telefonaram para a casa dele, para que fossem buscá-lo. Ivana não devia sair de casa, não ainda. Faziam só dois dias que deixara a clínica, três semanas desde a última crise, mas quem iria buscar o menino? O marido no trabalho, o cunhado também. A sogra mal andava, era melhor que ficasse em casa e cuidasse das outras crianças.
Assim, Ivana secou as mãos no vestido rosa e pediu que a sogra terminasse o almoço. Não ia demorar. Porém, Ivana nunca chegou à escola, também nunca mais voltou para casa.
O menino saiu da minha escola, transferido para longe, de certo o culpavam pelo que aconteceu.
Nunca pude dizer a Álvaro o que presenciei. Era o seu maior fantasma, o sonho que voltava diversas noites e mesmo eu me sentido ligado, não consegui colocar em palavras durante todo o tempo que passamos juntos.
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