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História As Estrelas Que Você Me Deixou - Tudo aquilo que não foi diante de tudo aquilo que o é


Escrita por: guilhermelefay

Notas do Autor


PARTE 1: ONDE TUDO TERMINA

Capítulo 5 - Tudo aquilo que não foi diante de tudo aquilo que o é


Fanfic / Fanfiction As Estrelas Que Você Me Deixou - Tudo aquilo que não foi diante de tudo aquilo que o é

A luz forte da manhã me arrasta para fora do sono. Faziam apenas algumas poucas horas desde que o cansaço me vencera e me dera um momento de inconsciência, sem sonhos. Meu pescoço dói depois de tanto tempo em uma posição ruim.

Arrasto a mala de onde a deixei, embaixo da cama, para minha primeira atividade de todos os dias. Lá dentro, na parte mais funda, depois de roupas e livros que não planejo reler, se esconde a caixa de comprimidos, suas sete divisórias cheias, dois habitantes em cada. Enfio tudo de volta na mala e esta para debaixo da cama assim que engulo os comprimidos, para que minha mãe não os veja e relembre o assunto.

A casa já está cheia de atividade. Minha mãe fala no telefone enquanto vasculha uma bolsa de mão. Gustavo fala alto, do quarto, enquanto discute com os amigos o que eles deveriam fazer para ganhar a partida de algum jogo online.

Me jogo na cadeira da cozinha, sinto a cabeça latejar.

— Tem café? — pergunto a minha mãe. Ela aponta para a pia, onde a garrafa se camufla em meio a um monte de louça recém lavada.

Está cheia. Pego a maior caneca que consigo encontrar e volto para a mesa. Minha mãe encontra o que tanto procurava, um pedaço amassado de papel e um cartão de crédito. Ela pede para quem fala no telefone esperar na porta e sai da cozinha.

Tomo o café, doce demais para o meu gosto, enquanto minha mente aos poucos acompanha o corpo e desperta. Me pergunto se Lumos está bem, provavelmente sim. Gustavo continua com o jogo, mas pelo menos fechou a porta e o barulho é bem menor.

Quando termino, decido que é melhor tomar um banho, tentar arrumar um pouco de disposição para não passar o dia inteiro na cama. Ainda estou usando as roupas do dia anterior e no momento elas estão suadas e colando no corpo, não vejo a hora de me livrar delas.

Minha mãe bate na porta assim que ligo o chuveiro e a água fria da manhã escorre pelas costas

— O que? — digo para ela repetir, enquanto desligo o chuveiro para poder escutar.

— Come alguma coisa! — minha mãe grita, mesmo assim o som chega a mim de maneira distante. — Tem pão e fruta no armário! Marquei o cabelereiro pras quatro! — completa ela. — Gustavo sabe onde é!

E antes que eu possa protestar, ela vai embora.

Com um suspiro cansado, volto ao banho. Deixo que a corrente de água me lave, acorde. Renove, de alguma maneira. Leve para longe qualquer memória agridoce, limpe as marcas feias que o passado imprime na pele, de mágoas e traições.

Funciona, mas só por uns instantes, enquanto a água corre e o som me distrai. Assim que desligo o chuveiro, tudo volta. E volta pior.

— Se tu continuar se mexendo eu vou te cortar de novo!

Ele soltou o ar, revirou os olhos e finalmente, ficou quieto.

— Melhor — disse eu, em tom de aprovação, voltando a deslizar a lâmina do barbeador sobre a pele clara da mandíbula.

O chuveiro aberto atrás de nós bate na minha nuca. Ambas as respirações presas no banheiro deixavam o ar espesso, a umidade se unindo e criando um calor abafado.

— Tá, levanta a cabeça — indico, mas ele não se move. Fixa os olhos fundos nos meus.

— Vai logo, Álvaro. Tem um monte de coisa pra arrumar.

Havíamos nos mudado há poucas horas, um apartamento de um quarto, numa vila para estudantes, na Várzea. A mobília desmontada somava-se a dezenas de caixas de papelão, pertences que poderiam ter sido empacotados melhor.

Tirar tudo do caminhão e carregar por dois lances de escada havia me deixado com braços e coluna doendo, além de coberto de suor. Álvaro, que não estava melhor ou menos exausto, insistira em tomar banho comigo e agora me fazia barbeá-lo.

Eram mais de duas da tarde e eu não tinha sequer almoçado. A fome me deixava impaciente e as bobagens dele, irritado.

— Álvaro — repeti e ele continuou imóvel. Porém, os olhos se estreitaram um pouco, ainda me observando. O canto dos lábios se curvou em um sorriso simplório. — Que foi? — perguntei, baixando a mão que segurava o barbeador.

— Não tá feliz?

— É claro — respondi. — Como é que eu poderia não tá?

O curso de Jornalismo da UFPE não era exatamente o que eu queria fazer, mas a grade era das que mais me interessavam. Álvaro foi aprovado em arquitetura, estudaríamos no mesmo prédio. Contudo, apesar das aprovações, a conquista maior era sair de casa, do alcance dos olhos da minha família e principalmente, da dele. Já conhecia Álvaro há três anos e o medo que ele sentia do pai, a necessidade obcecada pela sua aprovação, fez com que me mantivesse em segredo até então.

— É um alívio tão grande — ele riu. — É mais fácil até de respirar.

Algo na expressão contemplativa me fez querer sorrir de volta. O brilho nos olhos era doce, me fez querer abraçá-lo, confortá-lo e afastar dele todos os medos.

Álvaro era uma cabeça mais alto do que eu. O cabelo às vezes enganava e o fazia parecer ainda maior, mas não naquele momento. Molhado e desnudo, com espuma no queixo e fios castanhos grudados ao rosto, ele parecia pequeno e frágil. Alguém pelo qual eu faria qualquer coisa para proteger.

Coloquei os braços ao redor do seu pescoço. Na ponta dos pés, me inclinei e rocei os lábios nos dele. Álvaro fechou os olhos e virou a cabeça, o suficiente par que o encaixe fosse perfeito.

Ele tinha o seu gosto familiar, misturado a sabonete e refrigerante. Sinto uma das mãos segurar o meu quadril, os dedos se fechando com força na pele. A outra alcançou o barbeador e o tirou de mim. Seus lábios se abriram, para que a língua quente pudesse explorar a minha boca.

Eu o trouxe para perto, até que colidisse comigo. Meu corpo respondeu, o dele também, crescendo contra o meu tronco. A pulsação quente no mesmo ritmo que o coração no meu peito batia.

Ele afastou o rosto, voltou a me encarar. O sorriso era aberto, contaminava os olhos, parecia procurar as palavras certas, perdido em uma espiral de euforia.

— Não tem mais nada pra atrapalhar, nada pra ter medo. Só eu e você — disse Álvaro.

— Não, não tem — concordei.

A felicidade dele me contagiou, fez querer sentir aquelas afirmações da maneira mais física e palpável que eu pude pensar.

— Agora não tem como você escapar de mim — completei.

A ideia de posse me acendia por dentro, uma sensação de controle, triunfo, que com Álvaro era complementada com um sentimento de familiaridade e pertencimento.

Me desvencilhei dele, ficando sob o chuveiro e o empurrando para a outra extremidade do recinto. Assim, podia vê-lo por inteiro, cada contorno, cada sinal de que me desejava e ardia por mim.

— Não é como se eu fosse tentar — falou Álvaro.

Ele me segurou pelo queixo, ergueu o meu rosto, deixando que a corrente de água envolvesse a ambos. As mãos voltaram a explorar, com urgência, deixando um rastro de júbilo por onde passaram. Assim, próximos e desprotegidos como estávamos, era fácil esquecer todos os momentos anteriores, que gritavam avisos no subconsciente, imploravam por prudência, da qual nunca consegui ter. Era fácil deixar de lado os presságios de que o futuro só nos reservava ruína. Minha, nossa e principalmente, a dele.

Álvaro mordeu o meu lábio, o corpo duro me pressionava contra a parede fria. Seus dedos agora apertavam minhas bochechas, ao ponto de machucar, mas não o suficiente para ser incômodo.

— E nem você vai. Nunca mais — ele completou, antes de voltar a me beijar com luxúria.

A frase era reflexo de uma ferida recente. Diante da fome que Álvaro me demonstrava, ela não era nada, só uma bobagem. E já que não aconteceria de novo, do que importava?

Virei de costas. Um segundo depois, senti os corpos lutando para vencer o atrito, as barreiras físicas que impediam que se encaixassem e fossem como um só, silenciando a sede e o vazio que uma pessoa sozinha pode sentir, substituindo qualquer angústia por uma centelha de êxtase que surgia no ventre da alma, se alastrava e a queimava por inteiro.

O toque de Álvaro era cada vez mais violento, imprimira marcas de dentes às minhas costas, onde antes havia beijado com afeto. As unhas cravavam e deslizavam, rasgando, à medida que minhas pernas se afastavam e meu tronco se inclinava, para que Álvaro tivesse o caminho livre, onde pudesse afundar e satisfazer suas vontades, calar os seus medos, por alguns minutos. Minutos onde pouco era dito, mas onde tantas certezas nasciam e envelheciam.

Quando deixo o banheiro, a casa está vazia. Minha mãe não volta. Gustavo aparece no fim da tarde, para sua missão de me arrastar ao salão, mas o dispenso.

O dia discorre devagar, esquentando à medida que o tempo passa. O barulho dos carros, na rua e na oficina lá embaixo, é pouco, típico de uma sexta feira em meio a dezembro. Passo os canais da TV da sala, sem dar atenção ao conteúdo. O sol da tarde entra na casa, forte, permito que ele toque a pele nua do meu tronco. Deitado no tapete da sala, visto apenas a parte de baixo de um pijama velho, o piso duro ajuda o meu pescoço a parar de doer.

A quietude é boa, me acalma e pelo pior que possa soar, sozinho na casa me sinto mais confortável que em qualquer outro momento. Contudo, também deixa a minha cabeça desocupada e posso sentir a sombra do sentimento de desespero, da perda, me cercando, como dedos de fumaça se esgueirando em minha direção. São exatamente estes os sentimentos que a minha terapeuta tanto me aconselha a evitar, ainda mais quando não tenho companhia, quando tê-los é mais perigoso. Então, me ocupo em manter o tédio da quietude, a segurança da vida patética na qual eu me enfiei. Permito que os pensamentos cheguem, sejam eles qual forem, e logo os empurro para longe, até que o próximo surja e eu repita o mesmo processo, me concentrando apenas em respirar e evitar explodir.

Devo ter caído no sono depois de Gustavo ir embora. O sol da varanda há muito havia esmaecido e o prelúdio escuro da noite colore o céu. Desperto com o som apressado de passos na escada, que com certeza são da minha mãe. Ela me encontra sentado no tapete, massageando a coluna. Ter dormido no chão piora a dor no pescoço e cria novas em cada articulação que tocava o piso. As minhas pernas, que passaram tanto tempo apontadas para cima, sobre o sofá, estão dormentes, o formigamento incômodo da circulação voltando aos tecidos é tão intenso que me impedem de pisar no chão.

Minha mãe não diz nenhuma palavra. Por um momento, para e me encara, deixa as várias sacolas plásticas que se amontoam nos braços balancem ao lado do corpo. Ela tem o cabelo preso em um penteado elaborado, que reluz devido ao fixador. A expressão é de puro desgosto, como se me assistisse assaltar um banco ou assassinar um bebê. Engulo em seco, mas não desvio o olhar. Ela emite um suspiro exasperado e marcha em direção ao quarto dela.

Gustavo e o meu Pai aparecem pouco tempo depois, carregando uma caixa de isopor grande e levando até a cozinha. Me aproximo para ver se precisam de algo. A geladeira está abarrotada de latas de cerveja e garrafas de bebida, Gustavo diz que precisa colocar tudo na caixa de isopor, a qual contém vários blocos de gelo. Meu Pai nos deixa para realizar a tarefa e vai até o quarto, ouço o choro auto da minha mãe escapar de lá pelo breve momento em que a porta fica aberta e o meu pai desaparece lá dentro.

Gustavo ergue as sobrancelhas em uma expressão significativa, mas não diz nada, começa a transferir as bebidas ainda mais rápido, como se quisesse ir logo embora dali. Não o culpo, pois sei o que está por vir. A voz do meu pai sobe o tom, irritado, e ele volta a cozinha. Pela porta entreaberta, posso ouvir minha mãe resmungar entre soluços:

— Ele não faz nada que eu peço, nada. Só me faz passar vergonha — o resto da frase se perde entre choro e a porta que fecha por inteiro.

Respiro fundo para manter a calma, controlar a vontade de esbravejar de que é só a droga de um cabelo, do meu cabelo. E exigir para que ela faça jus aos quarenta e tantos anos de idade e aja como tal. Gritar para que ela pare de me acusar de envergonhá-la por qualquer motivo e me acuse do que realmente quer acusar.

Paro porque sei que isso só geraria mais conflitos, discussões que não levariam a lugar algum. Então, guardo para mim, cada palavra. Somo ao emaranhado de sentimentos a evitar e assim não os faço pensar outra vez que preciso ser internado. Meu pai se aproxima resmungando por baixo da respiração. Parece ter algo a me dizer, mas ao se deparar com minha expressão de poucos amigos, resolve deixar de lado.

Com a geladeira vazia, volto ao meu quarto, enquanto meu pai e Gustavo levam embora a caixa de isopor. Os vejo coloca-la na mala do carro, pela janela, rodeados pela noite que começa a ganhar movimento. Os postes da iluminação pública iluminam mal, carros se amontoam junto a calçada e a música alta que ecoa dos bares se une em um ruído incômodo.

"Tô pensando em voltar pro Brasil no carnaval."

A mensagem de Vanessa faz a tela do meu celular acender e quebra a penumbra do quarto.

"Sem desastres alcoólicos dessa vez, por favor." Digito em resposta, lembrando do carnaval desse ano, quando eu, Álvaro e Luís tivemos que arrastar uma Vanessa desacordada do bloco no recife antigo para o hospital e reverter o coma alcoólico.

"Meu deus, esqueça disso." Ela responde. " Será que Luís vai sair de casa? Ele entrou nessa vida de família e santidade desde que começou a namorar, não é? Não deve nem beber mais."

"Vanessa, ele nunca bebeu." Respondo, evitando a pergunta principal, já que Luís e eu sequer nos falamos mais. Provavelmente ele também não contou a Vanessa o que aconteceu na última vez que nos vimos. "Mas não acho que vou ter clima pra sair esse ano." Completo.

"É, imaginei que não." Responde ela e em seguida, envia uma foto onde aparece usando uma touca térmica, ao lado de uma grande árvore de natal. "Me hidratando para ir na baladinha mais tarde." Diz ela. "Como é que tá na casa dos seus pais?"

"Até que tá tranquilo." Minto. "Tem a formatura de uma prima mais tarde, minha mãe tá tão ocupada que não teve tempo de me engordar a todo custo." Continuo. E só então me dou conta que não comi nada o dia inteiro.

"Que bom. É só ter paciência que as coisas melhoram, eu te falei."

Abandono o celular. A noite discorre e eu continuo a me concentrar em manter a minha cabeça no lugar calmo e confortável, mas as lembranças do carnaval lutam para ganhar minha atenção. Logo, consigo ver a minha cozinha, os móveis em uma disposição diferente do que é agora. Consigo sentir como se fosse hoje a febre tomar o meu corpo, enquanto coberto de glitter, cerveja e suor, seguro as costas de uma cadeira e me nego o direito de chorar. Não o farei em frente a Álvaro. Não quero sentir a humilhação ao ter o seu olhar sobre mim, refletindo pena e desprezo, mas não remorso, ao ter me machucado mais uma vez, por ter me deixado descobrir daquela forma.

As acusações que acabei de proferir pairam no ar, retornam aos meus ouvidos como um lembrete fresco da verdade, acentuando o calor, o ciúme e o caroço que me tampa a garganta, o sangue ardendo no rosto, carregado de uma mistura densa de raiva e decepção.

— Você disse que me contaria, me contaria se acontecesse de novo — repeti, enquanto Álvaro passava a mão pelo rosto, pelo cabelo, andando de um lado para o outro, a expressão deixava claro que não aguentava mais me ouvir.

Ele ainda tinha a mancha de bebida rosa na frente da camisa, que Vanessa derramou ao desmaiar. Ainda tinha o rastro do sorriso contente que lhe estampou o rosto durante o dia, o eco da risada ainda o rodeava, o gosto dele ainda dançava na minha boca, das inúmeras vezes que me beijou na rua, sem medo. Mas tudo isso se sujava de traição e mentiras.

— Isso é culpa sua, sua, toda sua! — Ele gritou, por fim. — Eu te dei o celular pra chamar um Uber, não pra fuçar minhas conversas e achar que viu alguma coisa! Você quem causa tudo isso!

— Achar que vi? Álvaro, eu não sou idiota, para de mentir!

— Olha, acredita no que você quiser, não faz diferença — disse ele, com um ar exasperado, como se falasse com uma criança teimosa que insiste em fazer birra.

— Como assim não faz diferença? — Indaguei, me sentindo cada vez menor diante do seu olhar, diante das acusações de que eu estava paranoico, tirando as mesmas conclusões erradas a cada pequeno sinal que encontrava, incapaz de esquecer algo que prometi esquecer.

Por um momento, a parte de mim que queria acreditar em Álvaro previu o desfecho da briga e arranhou minhas entranhas, querendo espaço, mas era impossível ignorar as mensagens, o tom que elas tinham, as palavras de afeto e luxúria usadas, as fotos. Era impossível se ater as mentiras, como Álvaro fazia. Eu não podia sustentá-las, mesmo que quisesse. Entretanto, eu já não detinha mais o poder de conduzir a situação, Álvaro o tomou, pois sem perceber, permiti. E ele já se decidiu por nós dois:

— Não faz diferença porque não tá mais funcionando. Não funciona há muito tempo — ele continuou. — Para de tentar fingir que consegue superar as coisas quando não consegue! Não dá. É melhor a gente seguir em frente só como amigo, tá bom?

O caroço me fechou a garganta, enguli em seco. A facilidade com a qual ele conseguia me ver apenas como mais um amigo, como era capaz de resumir os últimos anos em um fim simplório, me machucava como um corte largo e profundo.

Me peguei querendo que Álvaro implorasse por perdão, como fizera da outra vez, que repetisse com lágrimas nos olhos que seu erro não iria se repetir, que eu podia confiar. Travei com as palavras na boca, porque não sabia o que dizer para fazê-lo voltar atrás e refazer as suas frases, fazê-lo dizer que aconteceu devido as marcas do seu passado, fazê-lo esbravejar que ele era alguém ruim e quebrado e tinha em mim seu porto seguro, que eu não poderia desistir dele.

Me peguei querendo o poder de deixá-lo, só para decidir que não o faria e assim, Álvaro continuasse preso a mim, seja lá com quem tivesse se envolvido, ainda me pertencia.

Me peguei até mesmo querendo que ele se ativesse à mentira, que me convencesse e diluísse o ácido que me corroía as veias, afastasse a tristeza que turvava a visão.

— Não consigo continuar só como amigos, não sei nem como pode sugerir isso — disse eu. A voz, mesmo fraca, ecoou alto, quebrando o silêncio abrupto.

— Tô sendo prático. É melhor pra nós dois — respondeu e fez menção de se afastar.

Tentei contra argumentar, mas a minha cabeça confusa não formava falas com sentido.

— Caio — disse Álvaro, colocando um ponto final no assunto. O som do meu nome foi frio, o olhar que me dirigiu era carregado de pena, fez os meus ombros encolherem. Mas os dele não, continuaram erguidos, despreocupados, como se nada tivesse acontecido. E quando ele fechou a porta do banheiro atrás de si, eu soube que não carrega culpa nenhuma por ter me traído de novo.

Contudo, as palavras de Álvaro alcançaram a minha pele como cacos de vidro. Estilhaços que pouco a pouco perfuraram mais, afundaram em mim. Não foi uma surpresa quando entendi que a raiva que carregava desde o hospital se direcionava a mim mesmo, afinal, fui eu quem não consegui superar o que já tinha passado, fui eu quem desconfiei de tudo e todos, fui eu quem vasculhei o celular até encontrar fragmentos de conversas. Talvez elas nem representassem o que achei que eram, é claro que existia chances de ter interpretado errado, mas no fundo, sabia que não. As lágrimas, por fim, acharam seu caminho. Cconfuso e devastado, continuei de pé, segurando as costas da cadeira enquanto o som do chuveiro ecoava.

Um grito na rua me assusta, fazendo saltar da cama, o coração batendo forte no peito. Pisco várias vezes, como se acordasse de um sonho vívido. Vou até a janela, o carro continua no mesmo lugar, meu pai e Gustavo devem ter voltado para dentro. Outro grito ecoa em resposta ao primeiro, a música de um dos bares aumenta, acompanhada de um coro de vozes.

Fecho a janela. O barulho diminui, mas não cessa. De imediato o quarto se torna abafado. O calor do sol acumulado no asfalto escapando e aquecendo a noite jovem.

Tento ignorar a temperatura e a centelha amarga de ciúmes que me acompanhou. Ela tenta reacender incertezas, a terrível sensação de ter o tapete aos pés puxado por quem mais se confia. E como se qualquer daquelas questões ainda fossem discutíveis, como se ainda importassem, outras memórias surgem por trás das minhas pálpebras fechadas.

A casa inteira tinha um cheiro amadeirado sintético de desinfetante, finalmente havíamos terminado de limpar e desempacotado a maior parte da mudança.

— A gente termina quando voltar — disse Álvaro, colocando-se de pé e empertigando a coluna, depois de um bom tempo sentado ao chão. Tentávamos há horas acertar os parafusos de uma estante nova no lugar certo, mas o manual de instruções não facilitava a tarefa.

O acompanhei, deixando a bagunça de pilhas de livros e peças de madeira espalhados no chão da sala. Segurei o pano velho que trazia no ombro e decidi que era melhor tirar a poeira espessa dos livros.

— Vou tomar um banho antes de ir — continuou Álvaro, estalando os dedos. — De que horas começam as suas aulas, mesmo?

— Nove. Fico livre de meio dia, a gente pode ir almoçar junto — respondi.

Era segunda de manhã, o primeiro dia de aula.

— Minha aula acaba de dez e alguma coisa, mas eu espero — concordou Álvaro. — Vou ficar lá pelo CAC, talvez encontrar uns amigos, não sei — completou.

— Que amigos? — Perguntei e era impossível não notar o tom acusatório. Para disfarçar, peguei um volume pesado da pilha mais próxima e comecei a tirar a camada branca que se acumulava no topo das páginas.

— Não sei, ninguém importante — respondeu ele, de forma despreocupada, mas não consegui ignorar o assunto.

— Vai passar mais de uma hora com alguém que não é importante?

— O quê? — ele franziu as sobrancelhas, então, soltou o ar. Mostrando-se cansado, colocou as mãos na cintura.

Considerei minha frase idiota logo depois que terminei de dizê-la, mas não pude me controlar, não depois do que aconteceu na noite anterior. Algo que mal me deixou dormir e ainda acelerava a minha respiração, trazia um frio nauseante à barriga, toda vez que lembrava.

— Tá desconfiado de novo, não é? — indagou Álvaro, já sabendo da resposta. Evitei olhar para ele e entregar o quanto seu semblante me afetava, me fazia temer que tudo se repetisse. — Você disse que tava tudo bem, que ia deixar pra lá — ele reclamou, mas em um tom doce. — Aparentemente não esqueceu coisa nenhuma. Ei, olha pra mim.

Álvaro se aproximou e segurou o meu queixo, virou o meu rosto em sua direção. Havia uma sombra de compaixão por trás do verde cinzento dos olhos, os lábios entreabertos pareciam querer encontrar os meus, mas não o fizeram.

— Me desculpa, eu sei que é horrível e não dá pra esquecer de uma hora pra outra, mas tenta deixar isso pra trás.

— Diz isso por que não foi você quem se machucou nessa história — falei, com um sorriso triste e involuntário, que escapou tentando amenizar a acusação.

— Me perdoa, por favor — ele repetiu e então colocou os braços ao meu redor, em um abraço frouxo.

Fez eu me sentir melhor, mesmo que no fundo, algo me dissesse que o toque dele estava errado, sujo. Mesmo assim ainda me trouxe conforto para calar a voz que denunciava o contrário.

— Eu avisei que não devia falar com João — Álvaro suspirou e com isso fez a minha indignação aflorar.

— Como não? — Tentei me afastar dele, mas Álvaro não permitiu, apertou o abraço. — Se não fosse assim eu nunca saberia a verdade, que a festa da comemoração das aprovações não foi a única vez.

— Mas é exatamente isso! No que isso muda? — ele indagou e fez eu me revoltar ainda mais.

— Se não consegue enxergar a diferença sozinho — disse eu, por entre os dentes, o empurrando com força. — Não sou eu quem vai conseguir fazer você superar essa insensibilidade —

Não consegui completar. Toda a mágoa reapareceu, ardendo nas veias em um ódio amargurado e humilhante. Só queria me ver livre dele, longe do toque contaminado, compartilhado com alguém além de mim. Álvaro percebeu o seu erro e me pressionou contra si, o queixo pousou sobre a minha cabeça e as mãos correram pelas minhas costas, acalentando.

— Desculpa, desculpa, desculpa... — ele repetiu até que eu parasse de lutar. Aos poucos me acalmei, mas o calor da mágoa, da sensação humilhante ainda atormentavam.

— Você tá certo, eu sou insensível demais. Eu devia saber o que muda pra você, devia ter contado tudo do jeito que você pediu, mas eu fui covarde, Caio. Não consegui.

Ele se afastou um pouco, para que pudesse me olhar nos olhos:

— Mas eu sei o que não muda. Ele continua não significando nada para mim. Todas as vezes que aconteceu foram como na festa. Ele vinha quando eu já tinha bebido muito, insistia; geralmente a gente tinha brigado antes, ou eu tava me sentindo miserável e quando João se oferecia era difícil negar. Me fazia sentir melhor na hora, mas depois era péssimo.

Abri a boca para protestar. Se estava mal por que não vinha a mim, como sempre fazia? Porque outro? Álvaro se adiantou e continuou, como se pudesse ler o que eu pensava.

— Não entendo porque ele. Talvez as circunstâncias, mas acabou. Não sinto nada por ele, eu amo você, só você. Não precisa ter ciúmes. Eu nunca trocaria alguém tão bonito, tão inteligente, talentoso, que me entende tão bem. Ele não é nada perto de você. Eu amo você — Álvaro reafirmou, voltando a me pressionar no abraço. — Em vez de ciúmes você deveria ter pena. Porque com João tudo não passou de eu sendo um imbecil que precisava de atenção, ele foi usado e só.

Por um momento o silêncio nos rodeou, era possível ouvir passos no andar de cima, o murmúrio do trânsito, ao longe. O olhar apreensivo de Álvaro vasculhou as minhas feições, procurando sinais de que convenceu, por fim.

— Me prometa que nunca vai acontecer de novo — pedi e me surpreendi com como a minha voz saiu rouca, como se eu segurasse o choro.

— É claro — respondeu ele, de imediato — Eu prometo.

— Mas e se acontecer? — insisti. — E se você voltar a se sentir miserável ou encontrar alguém que queira te dar atenção ou...

— Mas eu acabei de prometer que não vai! — ele forçou um sorriso, mas a minha expressão não mudou, continuou esperando uma resposta.

Álvaro suspirou, jogando a cabeça para trás. — Se acontecer de novo, — ele voltou a me encarar — o que não vai, eu prometo que não vou esconder. Vou contar tudo e você vai ter todo o direito de dizer que eu não valho nada e me mandar ir pro inferno.

Álvaro sorriu. Dessa vez, me sentindo um pouco melhor, retribui.

— E você me promete deixar isso pra trás? Ainda pode confiar em mim?

Fiz que sim com a cabeça e ele me beijou. Permiti que meus lábios fossem abertos e que o gosto dele me invadisse. O abraço ao meu redor se tornou mais gentil, à medida que Álvaro movimentava a cabeça para entrelaçar minha língua na sua. Então, o senti gemer à minha boca, o quadril se dobrar, seu corpo crescendo contra o meu.

O beijo também me provocou. Senti o sangue arder nas maçãs do rosto, a sensibilidade da pele aumentar, receptiva à mão que prendia a minha nuca, enquanto a outra desceu pelas costas, vencendo a singela barreira das roupas, os dedos cravando na carne macia.

Notei o tormento que Álvaro me deu atenuar, por algumas horas, decantar para o fundo da mente como areia na água turva. Enquanto ele me prometia, demonstrava seu desejo, com palavras e reações do corpo, enquanto seu toque carregado de afeição e luxúria irradiava para dentro de mim, não havia espaço para incertezas.

Mas elas permaneceriam lá, esperando até que eu deitasse para dormir, ou até que Álvaro não fizesse nenhum contato por algum tempo. Então, elas voltariam à tona, voltariam a turvar a água, trazendo o frio e a náusea, a angústia, a sensação de que tudo que me rodeava eram mentiras.

Álvaro me beijou com mais afinco, até que o sabor do sangue aparecesse, não conseguia dizer de quem era. Ele segurava meu rosto entre dedos firmes, a expressão séria e intensa a centímetros dos meus olhos.

— Eu amo você — disse ele, a voz grave reverberava no peito. As palavras soavam como uma acusação, apesar de afetuosas eram quase violentas. — Eu amo você — ele repetiu, o semblante ainda mais sério.

E sem deixar que eu me afastasse, guiou a minha mão até abaixo do umbigo, me fazendo segurar o seu membro, fechou os olhos extasiado quando me fez apertá-lo. — Eu amo você — Álvaro declamou outra vez e como se oferecesse a tensão sexual como prova, me obrigava a senti-lo.

— Também te amo — eu disse, em resposta a sua urgência. E de imediato, sua expressão pareceu suavizar. Ele voltou a me beijar, de leve, e quando se afastou, tinha um sorriso amplo e malicioso cortando o rosto.

— Vem tomar banho comigo — ele chamou, já me arrastando até o banheiro. — Ainda tá cedo, então não tem porque ter pressa. A gente pode demorar — continuou, tirando a roupa, deixando-as penduradas de qualquer jeito na pia. Suas mãos logo se dirigiram a barra da minha camisa, me despiram. — Quando minha aula acabar, vou te esperar do lado da sua sala. Apareço na porta pra que consiga me ver, vou esperar sozinho.

A maneira com a qual ele falava me incomodou, me fez parecer errado. Antes que eu pudesse protestar, dizer que não precisava de tanto, Álvaro voltou a me beijar com a mesma necessidade faminta de antes e em segundos, meus pensamentos dissolvem, seu corpo me preenche de êxtase e fogo e nada no mundo parece ser capaz de me separar dele. Nada parece tão importante no mundo quanto ele.

— Você vai ver, eu juro que vou corrigir tudo, vou merecer que me perdoe e garantir que esqueça, vou ser só seu... — Continua ele, falando contra o meu pescoço, mordendo entre palavras, respirando fundo para absorver o meu cheiro.

Sua urgência me machuca, suas afirmações são exageradas, mas diante a dor que suas traições me causaram, me agarro a elas, deixo que afundem na minha pele assim como seus dedos me adentram.

— Vou fazer você feliz, todos os dias. Eu juro — continua ele. Aos poucos, sua voz ganha um tom delirante, quase maníaco, saindo em um ritmo descompensado. Ele me obriga a ficar de joelhos, o chão frio do banheiro toca as minhas pernas e causam um calafrio, ou talvez seja o seu olhar, que ora fora em mim, ora em nada em particular, perdido.

— Álvaro... — tento chama-lo de volta a realidade, me erguer, mas ele me mantém ao chão e dobra os joelhos para que os olhos estejam ao mesmo nível que os meus. Ele segura meu rosto com as duas mãos.

— Vou provar que valho a pena, eu juro. Juro que mereço ser feliz... — então, cola nossas testas, engole em seco e o semblante maníaco desaparece tão misteriosamente quanto surgira. A expressão que sustenta agora é apenas a de luxúria.

Álvaro levanta, mas não me deixa fazer o mesmo. Ainda segurando o meu rosto, mas agora de forma carinhosa, pede para que eu o acomode, para que eu o acolha dentro de mim e que não desvie o olhar do seu, nunca.

Até hoje me pergunto como não pude entender que tudo estava errado, que as promessas eram vazias e ainda assim, o menor dos problemas. Me pergunto como não fui capaz de enxergar que Álvaro se desmanchava bem debaixo do meu nariz, se transformava em uma faca de dois gumes que não hesitaria em perfurar.

Minha terapeuta sempre diz que é injusto comigo mesmo, exigir do meu eu do passado certezas que só surgiriam no futuro. Diz também que não adianta imaginar o que seria, as linhas já haviam sido escritas e no fim, existiam coisas das quais ninguém era culpado. Ao menos não como um todo.

Mas não consigo evitar os questionamentos. E se eu tivesse dado um fim a tudo naquele momento? Ou durante a festa na qual Álvaro e João se enfiaram em um quarto e de tão bêbados sequer se deram ao trabalho de evitar que eu descobrisse, na frente de tanta gente. E se não tivéssemos sequer nos mudado, morado juntos, onde é que iríamos estar? Álvaro continuaria aqui?

Assim, com inacabáveis "e se"s, é impossível não me culpar.

 


Notas Finais


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