Quando minha mãe aparece, seco uma lágrima solitária de maneira discreta. Ela não bate, só entra e consigo ver nas suas feições que resolveu deixar a raiva por eu não ter cortado o cabelo de lado. Suas mudanças bruscas de humor me confundem, o exagero das reações acerca de tudo que não controla me irritam. A forma com que se esforça para fazer quem não concorda com suas ideias, culpado, me assusta. Mas, como não há nenhum proveito em deixar esses pontos claros, revolvo entrar no jogo dela e fingir que nada aconteceu.
— Prova essa camisa aqui — diz ela, deixando uma sacola grande, com muito mais do que uma camisa, sobre a cama. — Achei mais bonita do que a que tu tem.
— Eu disse que não precisava de nada... — respondo, mas me coloco de pé mesmo assim, para dar espaço ao conteúdo da sacola, que ela espalha para que eu veja melhor.
— Vai, prova, não é nada de mais — ela tenta me garantir e joga uma peça para mim.
Detesto a camisa antes mesmo de desdobrá-la por completo. Modelo Pólo, com um a gola de tecido grosso e incômodo. O tom verde chamativo, o bordado no peito, talvez a marca, não me dou o trabalho de ler.
— Essa não — eu devolvo. — Ela não reclama, já tem outra nas mãos para me oferecer. A brincadeira de me usar de manequim parece deixá-la contente, então, não me nego a provar todas as outras camisas, calças, sapatos e até um relógio de pulso grande demais, que por sorte ela também não gostou tanto.
Quase esqueço da cena de poucos minutos mais cedo, do fato de que eu avisei que não precisava comprar nada e ela não tinha que aumentar suas dívidas gigantes por minha causa. Quase esqueço da noite anterior e enquanto rimos ao colocar defeito nas roupas, quase esqueço de como eles conseguem me colocar para baixo.
Quase.
— Anda pra eu ver como é que fica — diz minha mãe.
Estou vestindo uma calça jeans justa, com bolsos largos e botões esquisitos. Faço o que ela pede, caminho alguns passos dentro do quarto e me deparo com uma cara cansada de decepção.
— Ah, Caio. Anda direto. Assim nada vai ficar bom em tu.
Meus olhos se estreitam, por um breve instante, me pergunto o que fiz de errado, mas logo o entendimento me alcança.
"Anda direito" é uma suave versão de "anda que nem homem", o tipo de frase que ouvi a vida inteira, palavras que vinham antes de boas surras na escola.
A suavidade e alegria do momento morrem. Sinto o peso que o lugar representa recair as minhas costas, o olhar de desgosto que a minha mãe me dirige, por não atender a expectativas e sonhos que ela criou.
— Não tem nada de errado com o jeito que eu ando — é só o que eu digo. Aquele não é um comentário novo, não seria uma conversa nova e eu já entendi que bater na tecla além de desgastante, é tempo perdido.
Recuso as roupas e os sapatos, minha mãe enfia tudo de volta na sacola, para devolver na manhã seguinte. O semblante volta a parecer irritado, mas ela mesma não gostou de nada, na verdade, então, não discute.
Assim, depois das oito, descemos atrasados até o carro. Uso as roupas que trouxe comigo de Recife. Minha mãe está tão ocupada em reclamar da hora que não vê nenhum defeito em mim. Eu mesmo não me sinto confortável. A camisa de botões me faz parecer pequeno, a calça não é das que costumo usar, a cor do sapato não combina em nada. Não uso nenhum acessório, sinto os braços nus, mas é melhor manter as minhas "coisas de menina" bem escondidas no fundo da mochila. Não é como gosto de me vestir, mas ao menos não atraio olhares e não brigo com ninguém dentro do carro. Além disso, meu cabelo está tão duro de gel fixador que nenhum fio se moveu durante a noite toda.
Sento no banco de trás, com Gustavo. Ele usa uma camisa polo apertada nos braços, o relógio que minha mãe me fez provar e um sapatênis marrom. Ao menos ele parece confortável dentro das roupas.
Todos os eventos de João Alfredo acontecem na quadra municipal de esportes. Desde shows, campeonatos, bailes e formaturas. O trajeto não é longo, ninguém usa cinto de segurança, não existe esse hábito. Meu pai não estaciona. É a segunda vez que faz o percurso, agora há pouco veio trazer as bebidas. E segundo reclamações dirigidas à minha mãe, ainda precisa ir em duas casas distantes e trazer os convidados de carona.
Do lado de fora da quadra, alguns grupos de pessoas que saíram para fumar, encontrar alguém ou só tomar ar fresco, ocupam os bancos no gramado seco ao redor da quadra, se espalham casualmente de pé no caminho de pedra que leva até a entrada. Lá de dentro, ecoa uma voz num microfone, as palavras ditas não fazem sentido aos meus ouvidos.
Caminho alguns passos atrás da minha mãe e Gustavo. A cidade tem apenas duas escolas de ensino médio, o que faz com que a maioria das pessoas acabe estudando no mesmo lugar. Assim, sou ex-aluno do Jarina Maia, a escola da formatura e tenho certeza de que diversos rostos conhecidos devem aparecer. Apesar de não encontrar nenhum aluno da minha época, inicialmente, os professores são os mesmos. Vejo algumas cabeças virando na minha direção, pessoas que não vejo há cinco anos, talvez. Mas eles não me dão muita atenção, além de alguns acenos e olhares, o que para mim é um grande alívio.
A quadra parece uma grande tenda de circo. Uma cobertura de tecidos brancos e cremes partem de um ponto alto no teto, descendo para as beiradas, onde mais tecido forma um círculo grandioso, escondem as arquibancadas, as grades de proteção, as luzes empoeiradas e a pintura destacada do lugar, mas também deixam o interior abafado. Logo começo a sentir minhas costas suarem dentro da camisa fechada.
O tapete dourado cruza a quadra ao meio, da entrada enfeitada até se perder de vista. Arranjos de flores cercam o caminho, a decoração de balões forma um grande arco receptivo, onde checam nossos nomes na lista de convidados.
Há algumas dezenas de mesas mais à frente, também cobertas de tecidos, assim como as cadeiras que as rodeiam. A maior parte dos assentos já está ocupada, o que dá a impressão de que o lugar se encontra lotado. Ao fundo, um amontoado de cabeças sustentando chapéus pretos permanecem sentadas adiante de um grupo menor, onde de honra de longe transparecem tédio. Entre os dois grupos, a diretora da escola segura o microfone e faz o seu discurso.
Sigo Gustavo e a minha mãe até a área onde os convidados de Laura sentam-se ao redor de mesas circulares. Boa parte da minha família está ali. Tia Teresa é a primeira a nos receber. Ela se levanta e depois de apontar para minha Mãe que ela se atrasou, se dirige a mim.
— Que saudade, meu amor — diz ela, junto ao meu ouvido, quando me abraça. — Quando foi que você chegou?
— Ontem de tarde — respondo. — Laura tá...
— Lá na frente, com os formandos — completa ela, faço minha pergunta óbvia apenas para ter o que dizer.
— Maria, Fernando foi buscar Luciana? Ela ligou pra mim e disse que já tava pronta, só esperando — fala Tia Teresa, voltando-se para minha mãe.
Elas têm quase a mesma idade, embora minha mãe sendo mais velha que a outra, pareça bem mais jovem.
Tia Teresa havia recuperado o peso habitual com o passar do tempo, mas ainda carregava as marcas de exaustão ao redor dos olhos, os cabelos continuavam ralos, após o período de queda, quando sua filha do meio, ainda bebê, foi diagnosticada com uma doença genética degenerativa e morreu antes de completar um ano.
Puxo a primeira cadeira vazia. Depois que sento, as duas continuam conversando atrás de mim. Minha avó está bem ao meu lado, uma mulher bronzeada, baixa e com um amoroso rosto redondo. Seus braços urgentes tentam me alcançar antes que eu arraste a cadeira de volta, para perto da mesa.
— Oi, Vó...
Permito que ela me sustente em um abraço apertado, o cheiro familiar do perfume dela emana da pele castanha e toma o meu olfato por um instante, logo sinto uma centelha de calma me contagiar. Perto dela e do seu sorriso sem julgamentos me sinto mais confortável que em qualquer outro lugar que eu possa lembrar.
Cumprimento meu avô, um homem alto, de bigode denso, usando um chapéu de veludo preto, o mesmo que aparece nas fotos do meu aniversário de três anos, que ele não perde a oportunidade de usar. Para os outros parentes dirijo apenas um aceno de cabeça, não mantenho contato com mais ninguém ali. Contudo, sinto os olhares distantes de curiosidade e repreensão se voltarem para mim o tempo inteiro, nunca se demorando o bastante para cruzar com o meu.
Minha mãe senta à minha direita. Gustavo não aparece até o fim da cerimônia, mas meu pai não se demora. Ele e o resto dos convidados logo chegam.
Há bebida na mesa, garrafas de vodca e vinho, latas de cerveja e refrigerante se espalham por entre a decoração de flores e um bolo branco, que ostenta uma foto de Laura, sorridente. Um copo chega a minha mão. Enquanto a cerimônia discorre, pessoas levantam e voltam aos assentos, começam e terminam discursos. Uma valsa indica o fim das formalidades, permaneço concentrado no meu copo, no encher e esvaziar vagaroso do vinho e depois da cerveja.
Tento não chamar atenção que atraia conversas indesejadas e acima de tudo, tento manter a minha cabeça no mesmo lugar calmo, longe de memórias, que busquei o dia inteiro. Me esforço para não me lembrar da minha própria formatura, naquela mesma quadra de esportes, sob uma tenda de tecidos pálidos e dourados.
Os professores eram os mesmos, os ritos da cerimônia idênticos. Os convidados da minha mesa não diferem muito da de Laura. Nem mesmo a música que toca quando começam os comes e bebes é nova.
É como se fosse hoje. Tomo o último gole de vinho do copo longo de acrílico. Meu pai, ao meu lado, volta a enchê-lo, ao mesmo tempo que emborca a garrafa, fazendo um pouco de vinho derramar, me lança um olhar de advertência, para que eu não beba demais. A verdade é que nem deveria estar bebendo, mas a vontade de fazer o tempo passar depressa fala mais alto.
As luzes principais foram apagadas, as reservas banham o lugar com um fraco brilho amarelo, ideal para quem quer levantar para dançar. De fato, é isso que a maioria dos convidados faz. Caixas e mais caixas de petiscos de festa foram colocados sobre a mesa, mas já recebem pouca atenção. Alguém distribui pulseiras neon e ao fundo, balões estouram.
Afasto a gola da camisa, que faz arder o pescoço, passo os dedos como se afastasse o nó da gravata, como se usasse o smoking que vesti naquela noite, apertado e quente. Então, pelo canto do olho, na semiescuridão da quadra, tenho a impressão de revê-los, a cruel visão da mesa de Álvaro, com cadeiras demais e convidados de menos.
Nostalgia, dejá-vu, saudade ou a bebida. Talvez uma mistura de tudo isso, invocam um eco de lembrança, que rebate nas paredes, mais alto que a música e as vozes, me pegam num susto, me fazem segurar o ar.
Num breve instante, consigo ver Seu Edson, sentado de forma despojada, a expressão entediada. Veste uma camisa social branca, que denuncia o calor com uma mancha úmida na região do peito. As cadeiras ao seu lado estão vazias, nas quais ele apoia os braços e parece perdido em pensamentos, distante da festa.
Posso ver o loiro do cabelo de Tatiana, reluzindo à pouca luz. A mais velha dos filhos de Seu Edson segura a mão do marido, o qual as feições não são claras. Noto a silhueta de um rapaz corpulento, de certo Leonardo, sentado de costas, mexendo no celular. De pé, apoiado às costas de uma cadeira, Júnior tenta ouvir o que alguém ao longe lhe diz, a expressão ávida do caçula é a que de todos mais lembra as feições do irmão, Álvaro.
Há também alguém de cabelos brancos, ocupando uma cadeira de rodas, um tom claro de rosa nas roupas, só podem ser da avó, Dona Erundina, por quem todos à mesa são reconhecidos como familiares na cidade. Os outros ao lado dela não consigo distinguir.
Então, há Álvaro. Minha visão o pega no meio do movimento, como quem acaba de chegar. O paletó escuro lhe caiu tão bem, justo no contorno dos ombros. A gravata era do exato tom dos olhos, o verde brilhava na noite, ainda jovem, ainda vívido. O cabelo estava mais curto que de costume. O corte deixava proeminente as orelhas largas que ele tanto odiava, mas também lhe trazia um ar mais arrumado, limpo, sob controle.
Álvaro tem os lábios afastados, como se estivesse prestes a dizer algo, alguns dos rostos se viram para ele. O pai se levanta, a postura aliviada de quem já pode ir embora, um outro convidado o acompanha.
De certa forma, eles se movem em uma maneira estranha, desconexa, perdida, todos eles, como se algo crucial estivesse faltando em cada um.
Há esse eterno constrangimento, esse pesar grandioso que paira sobre a família, perceptível até quando visto pelo canto dos olhos.
Então, o momento de surpresa passa. Tenho a impressão de ver o peito de Álvaro subir e descer, em um suspiro decepcionado. Tenho a esperança de que ele esteja se voltando na minha direção e quando me viro, meus olhos se deparam com o vazio. Este, ressoa dentro de mim.
De imediato, minha visão desfoca com lágrimas quentes, o pulso até acelera, em agonia. Não tem ninguém ali. Nenhuma mesa ocupa o lugar que a de Álvaro ocupou no passado.
— Caio!
O abraço de Laura me aperta, tão subitamente quanto suas palavras. Com o rosto por sobre o meu ombro, ela não pode ver a umidade que acumulo nos olhos. Pisco, rápido, até que se dissipe.
— Tá linda — digo, quando ela me solta.
O cabelo preso em um penteado elaborado, um vestido longo, dividido em corpete dourado e saia salmão. As maçãs reluzem com a maquiagem, que a faz parecer mais velha. Ela agradece com um sorriso largo, os brincos balançam ao lado da cabeça.
Ela diz que estava morrendo de saudade, fico calado, mas ela não esperava mesmo por uma resposta, engata em me convidar para sair e beber no bar novo que abriu na entrada da cidade, do qual todo mundo tá falando.
— Se tu for, mainha me deixa ir e nem dá hora pra voltar — confidencia Laura. — Ah! E tem o ano novo também, acho que a gente vai passar...
O que ela diz se perde, meus olhos correm a todo momento ao lugar vazio e como uma vidraça que leva tiros, sinto estilhaçar o estado de quietude no qual estabeleci a minha mente.
— Preciso ir ao banheiro — digo para Laura, interrompendo-a. Ela permanece abaixada, com os joelhos dobrados junto a cadeira, enquanto corto o meu caminho pelos convidados e formandos dançantes, até o fundo da quadra.
O cheiro forte do sanitário masculino faz as minhas narinas inflarem, em repulsa, mas a isso não dou muita atenção. Me tranco no box mais limpo que encontro, só preciso de um lugar longe de olhares, sozinho, para me acalmar. O álcool começa a cobrar o seu preço e sinto uma tontura doce surgir, me deixar sonolento, o que ajuda.
Não sei ao certo quantos minutos se passam até que me sinta confiante para sair. Mas quando finalmente o faço, me orgulho do reflexo no espelho embaçado, quem olhasse nunca conseguiria notar o que estava prestes a acontecer.
Ouço meu nome enquanto faço o caminho de volta. Diana é professora de biologia, me deu aulas por todo o ensino fundamental e médio. Uma mulher alta e bonita, que conseguia ganhar a amizade dos alunos mais fácil que qualquer outro professor. Ela deixa o grupo de funcionários da escola com o qual conversa e com passos apressados, vem até a mim.
De início, não faz menção de me abraçar, parece incerta, mas logo decide que deve.
— Quanto tempo... como você tá?
Mesmo falando tão perto, Diana precisa aumentar a voz, devido a música alta. Retribuo o abraço.
— Vou bem — respondo. — E as coisas por aqui?
— O de sempre — ela responde, as mãos pairam sem jeito ao lado do corpo, mas o sorriso é confortável. — Não acontece muita coisa por aqui, né? — ela se lamenta. — Era pra você passar na escola de vez em quando, os professores queriam te ver, a maioria não veio.
— Só cheguei hoje — respondo, mantendo o olhar fixo no dela, mas pela visão periférica posso ver boa parte dos meus antigos professores no grupo que Diana deixou. Eles não parecem interessados em me ver. — Mas faço uma visita quando as aulas começarem, ano que vem — digo da boca pra fora.
Ela sorri abertamente, satisfeita. Depois, olha ao redor, como se buscasse por algo.
— Olha, Caio... aqui a gente tem muito orgulho de você — Diana avança e segura as minhas mãos, de maneira gentil, antes que eu entenda o rumo da conversa e possa fugir. — Desde que era aluno, sabe, sempre foi uma das esperanças da escola de ter alguém importante como ex-aluno, não que você precisasse ser, claro. Mas você é. E eu tenho muito orgulho de como você tá montando uma vida de sucesso e não se abalou com tudo o que aconteceu. — Uma lágrima faz menção de escorrer no rosto de Diana, o aperto nas minhas mãos aumenta, afetuosamente.
Gelo, meus dentes travam. Não fala disso agora, por favor...
— Você sempre foi forte, agora mostra que é mais do que nunca. Queria que Álvaro tivesse sido forte também, mas...
Minha respiração acelera. Solto as mãos e finjo arrumar a gola da camisa.
— Fico feliz que você esteja lidando tão bem com tudo isso — Diana conclui. Sua expressão sentimental é por completa atônita em relação a tempestade que acabou de atiçar dentro de mim.
— É, obrigado — respondo, quando finalmente encontro a minha voz. Rouca, engasgada, ela mal é audível até para mim. — Obrigado... estão me chamando lá — aponto, querendo ir embora. Ela me abraça antes de voltar ao grupo de funcionários e quando estou livre, as pernas tremem, mal permaneço de pé.
Por que falar disso? Logo agora, quando tudo e todos cheiram como a presença dele, quando imagino vê-lo nas figuras dançantes semiocultas na penumbra, quando o eco da voz assombra os ouvidos, faz pulsar as cicatrizes que ele me presenteou durante a vida e faz sangrar a ferida aberta que a falta dele me causa?
Estou de volta ao meu acento quando dou por mim. Laura desapareceu, minha avó se despede, atrás dela meu avô e meu pai já se dirigem para o lado de fora, indo para casa. Contudo, não escuto o som da voz dela, sequer escuto a música estridente, o mundo aderiu a um silêncio estéreo, os movimentos se dão em câmera lenta, enquanto a dor das lembranças que lutei para manter afastadas me perfuram a alma, encontram caminho livre.
Percebo que não há ninguém na mesa que preste atenção em mim. Meu tio Edwaldo conversa com um homem alto, ambos de pé. O filho dele brinca com os doces na mesa, a mulher dança com a minha mãe e outras em uma roda.
Tento afogar o temor que me aperta a garganta, a eletricidade atenuante do choque que volta, virando o copo de bebida. Os goles grandes machucam, sem gosto algum. Tenho o resto das garrafas à minha disposição, encho o copo.
Não há nenhum exercício de alto controle que funcione agora, nada que mantenha afastada a dor que sinto em doses, já que tomá-la de uma vez me dilacera.
Um gole atrás de outro, até que nada mais desça pela garganta, até que as lágrimas retidas desçam desinibidas, os soluços se formando, o pânico ressurge com o lamento de me permitir desmoronar em frente a tanta gente.
Preciso ir embora, preciso de ajuda. Pedi-la significa assumir que venho mentindo há meses sobre o meu estado, tentando enganar a todos a minha volta, tentando me enganar. Não há outro jeito.
Levanto antes que tudo piore. É quando minha mãe me vê. Ela me olha assustada por um longo momento, a expressão festiva se desfaz em uma carranca séria, preocupada. Rapidamente, ela examina os arredores, então, vem até a mim em um passo apressado.
Escondo o rosto no seu ombro, estou ciente dos soluços e das lágrimas abundantes, mas eles parecem distantes, eu pareço distante, tudo é preenchido pelo desespero que me rouba o ar.
Minha mãe me abraça, então me afasta um pouco, o suficiente para me fazer ver o seu rosto. Os lábios perguntam "o que foi?", mas nenhum som é emitido.
— Tenho que ir embora daqui — me forço a dizer. — Tô sentindo uma tristeza tão grande, me tira daqui, por favor...
O suplício se perde em soluços atropelados, é difícil respirar. Minha mãe ergue as sobrancelhas, assustada, volta a me abraçar e ocultar meu rosto no ombro, úmido de lágrimas e suor. Consigo sentir a cabeça dela virando de um lado a outro, enquanto ela confere se ninguém assiste a cena. Consigo ouvi-la como um eco abafado, murmurando "meu deus, Caio... Vamo lá pra fora. Vem."
Ela me guia de volta pelo tapete dourado e pelas decorações, tenta esconder o meu rosto outra vez, provavelmente preocupada com o que vão falar se me virem assim. O ar fresco ajuda um pouco, da mesma forma que ajuda não estar rodeado de pessoas. Consigo ao menos controlar os soluços, mas as lágrimas são mais insistentes. Sentamos em um dos bancos de concreto, respiro fundo inúmeras vezes enquanto minha mãe assiste, não tira os olhos de mim.
Os outros presentes além de nós estão longe, inalcançados pelas luzes da entrada do ginásio. A noite morna emana do concreto, à medida que uma brisa tranquila aos poucos move o mundo.
Minha mãe me faz sentar e ficamos em silêncio. Ela tem um cheiro fraco de cerveja, misturado a perfume, suor e pó de maquiagem. Tento empurrar o pânico para o lugar afastado onde o guardo, no peito, mas é como lutar com gigantes e o progresso é pouco. Seguro os joelhos, aperto por cima da roupa, a ponto de machucar, me obrigando a permanecer estável.
A desolação e a falta são constantes, de certa forma, mais fáceis de controlar, mas o monstro de adrenalina, que cravou as garras em mim no último instante que os olhos de Álvaro encontraram os meus, é indomável. Em instantes me toma por completo, transforma a minha cabeça em uma confusão de passado e presente, que só resulta no tormento da perda, no peso da culpa, no amargor da raiva e ardor nauseante das feridas. É exaustivo lutar contra.
Fecho os olhos e tento ocupar a minha atenção com qualquer elemento ao meu redor. A aspereza do banco de concreto contra a roupa, o calor da atmosfera, o cheiro de grama pisada, a música abafada que se espalha pela noite, a respiração pesada da minha mãe.
Me acalmo o suficiente e paro de chorar, mas já tenho a cabeça pesada e os olhos ardentes de cansaço. A sensação de que a qualquer momento o chão pode desabar, me atirando em um abismo sem fim, perdura. O ar ainda parece rarefeito, assim como o sentimento debilitante de uma grande derrota ainda existe.
O som estridente de uma risada próxima me faz abrir os olhos, erguer a cabeça. Um grupo de adolescentes, todos meninos, vestindo calça social, camisa branca de botões e gravatas, sai da quadra, caminha despreocupado em direção a noite da cidade pacata. Me sinto tão desconexo a realidade festiva, a felicidade deles, tão parecida com a minha quando tinha a mesma idade.
Minha mãe suspira, noto que tem o celular nas mãos e digita freneticamente. Um instante depois, Tia Teresa aparece, vem em nossa direção. Traz debaixo do braço um amontoado de pano, nas mãos, o que sobrou do bolo de Laura. Os outros convidados a seguem, carregando caixas de isopor e garrafas de bebidas. Laura vem por último, acompanhada de uma amiga. Ela tira os brincos quando chega a nós, o semblante fatigado, os entrega a Teresa, que suspira.
Seja lá o que minha mãe tenha dito por mensagem, eles não fazem nenhuma menção de que estão cientes do meu estado. Agradeço o fato de parecer invisível. Meus tios acomodam as caixas nos porta malas dos carros, o bolo é deixado no banco da frente, com Renata, mulher de Tio Edwaldo. Com as mãos livres, Tia Teresa reclama de como está cansada. Gustavo retorna de sabe-se lá de onde tenha se enfiado e espera conosco.
As caronas são acertadas, o grupo se dissipa. Quando meu pai volta, se surpreende com a festa terminada e pelo olhar que me dirige, meio surpreso, meio decepcionado, deve julgar que a culpa é minha.
Laura e a amiga vão no nosso carro. Gustavo fico com Edwaldo, que promete deixá-lo na casa dos meus avós. Vou no banco da frente, minha mãe, com a meninas atrás. A casa de Laura fica na entrada da Cidade, nos novos bairros de terreno loteado. Depois de lá, somos só meus pais e eu.
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