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História As Estrelas Que Você Me Deixou - E com palavras doces me afoga, com carinhos me destrói


Escrita por: guilhermelefay

Notas do Autor


PARTE 1: ONDE TUDO TERMINA

Capítulo 7 - E com palavras doces me afoga, com carinhos me destrói


Fanfic / Fanfiction As Estrelas Que Você Me Deixou - E com palavras doces me afoga, com carinhos me destrói

O silêncio perdura todo o caminho de volta. Incômodo, incerto, posso até sentir a tensão que se acumula dentro do carro a cada trecho iluminado pelos postes. Por mais inusitado que pareça, o desconforto não é meu, mas dos meus pais, que se contorcem e me observam pelo canto do olho. Não temo que sejam duros comigo, que me acusem e culpem por algo, o que pode muito bem acontecer. A letargia exausta que substitui o monstro que se acalma me impede de me importar com qualquer coisa. São eles quem estão tensos, pois sentem que precisam fazer algo, dizer algumas palavras que pais diriam. Sinto o nervosismo deles crepitando sobe nós por não saberem o que fazer comigo.

Eles me cercam assim que chegamos em casa, me seguem até o quarto.

— Eu já tô bem — garanto, sem olhar para trás. Tiro os sapatos de qualquer jeito e deito de bruços na cama, os lençóis me recebem com um breve beijo gélido. Mais do que nunca desejo dormir.

Alguém acende a luz. Em seguida, me deparo com a minha mãe na beirada da cama, sentada com a mesma expressão cansada, porém paciente, que tinha no banco de concreto.

— Você mentiu pra gente de novo — ela acusa. E apesar da aspereza magoada que ouço nas palavras, sua voz soa tranquila, casual.

Levanto a cabeça.

— O quê?

— Tu disse que já tinha passado, que tava bem, nem precisava de médico — ela explica.

— E eu tô. Não sei o que aconteceu hoje — minto outra vez.

— Tu sabe que pode contar as coisas pra gente, não é, Caio? — Interrompe o meu pai. — Se achar que precisa trocar de médico a gente troca, procura alguém que passe remédio de novo —

— Não preciso disso — o corto. As palavras ecoam pela casa silenciosa, pesam mais do que imaginei que poderiam. — Eu tô bem, já passou — completo, de maneira branda, para reverter o clima ainda mais pesado que ameaça se formar.

— Tá certo — minha mãe concorda, com um suspiro. — Não precisa trocar, continua indo em Doutora Verônica mesmo. Agora, diz a verdade, qual é a frequência que tu tem ficado assim, nesse estado?

Mais vezes do que consigo contar, penso, mas não admito. Em parte, por orgulho, em parte por preocupação com a situação em que poderia coloca-los, mas principalmente por não ser forte o suficiente, ou confiar o suficiente, para permitir que eles interfiram.

— Só hoje. Acho que o ambiente me fez mal. Só isso.

A mentira escorre fácil da minha boca, os anos me deram prática. Minha mãe pondera por um momento, então, decide acreditar, mas sinto que no fundo ela mantém o pé atrás, habituada à minha desonestidade.

— Só não tava me sentindo confortável e quando percebi já não tava bem — asseguro.

Afundo a cabeça no travesseiro, dando o assunto como encerrado e esperando eles irem embora, mas não o fazem.

— Isso é besteira, Caio — diz o meu pai. — Não tem porquê se sentir incomodado, a gente não se importa. Por mim tu podia fazer que nem aqueles que moravam ali embaixo. Pintar a unha, se vestir de mulher, o que for, a gente não liga mais não.

Ergo a cabeça, em um movimento tão rápido que o pescoço machuca. Os olhos semicerrados em descrença, mal consigo enxergá-lo. Ele não pode estar falando disso, não pode fingir que tudo se resume a isso, a essa estúpida capacidade dele de adorar um fato que destoe da sua vontade. Ele não pode ainda acreditar que a minha ruína é causada por eu ser quem eu sou.

— E se incomoda tanto — ele continua, em um tom brando e amigável que faz a fala soar mil vezes pior. — Se incomoda tanto, tu sempre vai poder mudar o teu jeito...

— Que jeito? — Rebato em desafio.

— Essa tua opção.

— Diga a palavra — exijo, entre dentes cerrados. Uma raiva antiga esquenta a minha nuca, afasta o cansaço.

Ele permanece em silêncio, o rosto tranquilo, indiferente a minha reação.

— Gay! E não é a merda de uma opção — explodo, fazendo ambos saltarem de susto.

— É claro que é — ele responde. — E um dia vai passar, tu vai ver — sorri, como se quisesse me animar.

Mordo a língua. Interrompo a torrente de acusações que ameaçam ser gritadas violentamente, perfurando a calma da noite. Acusações de como esse pensamento arcaico dele me trouxe uma infinidade de tormentos, sobre como foi difícil me livrar de alguns deles e como é [difícil] viver com os que persistem.

Sento, me afasto da sua expressão hipócrita, onde álcool deve agir. O cabelo grisalho, os olhos estreitos por trás dos óculos, a pele marcada de linhas me enoja. Como ele ousa diminuir meu sofrimento a isso? A serenidade com a qual me observa me aponta nada além de desdém.

— Eu tenho muito orgulho — interrompo a conversa deles, um tempo depois, voltando ao assunto como se emergisse de um transe. Meus pais se calam, de súbito, abandonando a discussão acerca da efetividade da minha psicóloga e se voltam para mim, emanam uma compreensão fingida, como se lidassem com uma criança birrenta. — Eu não mudaria nem se pudesse — completo, de queixo erguido.

Meu pai dá de ombros.

— Se essa é sua opção...

Desisto. E em seguida, me repreendo por tentar. Sei onde está conversa leva, sei que não vão mudar, já tiveram chances demais. Entulho a raiva diante da teimosia preconceituosa, a mágoa do passado cheio de repressão, a náusea que me causa toda essa aceitação fingida, que só existe por que ainda não acharam outro jeito.

Só mais uma semana e alguns dias, me agarro ao pensamento. E fazendo o meu melhor para soar como se a noite não tivesse existido, anuncio em tom tranquilo e casual que estou indo dormir.

Quando eles deixam o quarto sem protestar, a solidão me rodeia e a minha própria companhia cobra o seu peso. Novas lágrimas surgem e molham o travesseiro, derramadas por Álvaro, pelo passado que não volta e faz tanta falta no presente intolerável. Lágrimas derramadas pelos meus pais e a incapacidade — tanto deles quanto minha — de matar um amor incondicional cheio de condições e expectativas, da impossibilidade de romper laços e se manter afastado de quem traz tamanhas decepções.

Por sorte, a exaustão mental logo recobra suas forças, acompanhada da leve tontura das bebidas da formatura. E sem que eu perceba, os pensamentos conturbados perdem o brilho, até que só a escuridão da inconsciência me sobre.

O tempo tem suas marcas, suas maneiras de se fazer único e distinto. Através dos olhos, a grandeza do tempo se molda em um recorte de significado, uma personalidade que dá rosto a determinada época da vida, a determinado espaço.

Minha pele sempre foi sensível as marcas do tempo, os emaranhados de sentidos e ligações entre memórias encontram um terreno fértil em mim, para cravar raízes. Inconscientemente, permito que essas raízes cresçam, brotem longos ramos, frondosas folhagens densas, que recobrem o futuro com suas sombras.

É assim que o sol quase não toca o presente, oculto sob a folhagem que vem e vai. Basta um simples arranjo de notas ao ouvido, um vislumbre de imagem sujo de nostalgia, ou um toque do vapor perfumado. Basta alcançar a ponta do cipó, para arrastar de volta a árvore majestosa, a sombra das folhas que engole o presente.

Imparável como o avançar e o retrair do mar, as marcas do tempo retornam, se faz viva a personalidade única da época. E em agitadas águas de saudades e melancolia, sou obrigado a mergulhar. A falta de aviso sequer me dá tempo de fazer uma reserva de ar, mente e peito queimam em desespero imediato. Não sei o que me leva de volta a um mês de [março], quando percebo, já é o seu cheiro que me rodeia, uma mistura úmida de poeira, seiva de [cajueiros] e concreto molhado.

Já passa das duas da tarde, o brilho forte do sol reflete nas vidraças antigas do prédio do Centro de Artes e Comunicação da universidade, correntes frescas de ar sopram através dos corredores de ciências humanas e desembocam no jardim vistoso e movimentado no qual me encontro.

Restos do carnaval ainda pairam por todo canto, uma espécie de atmosfera rejuvenescida, que habita conversas cheias de risadas, se espalha nos resquícios de lixo nas ruas, no eco longínquo da música já silenciada, mas que como fantasma ainda se faz presente.

Sinto o frescor de um banho recente ainda contra a pele, a árvore acima de nós balança com a brisa e junto com os recortes de sol que nos ilumina, caem gotícula de água, restos da chuva do fim da manhã.

— São dois ônibus só até Camaragibe, minha filha, de lá ainda é preciso pegar outro até São Lourenço, é o mais infernal — reclama Luís. Vanessa e eu o ouvimos explicar seu trajeto até o campus, depois de uma aula qualquer, durante o meio do nosso primeiro período. Temos quinze minutos até a próxima e nesse intervalo, tomamos um pouco e ar em frente ao prédio. — Os moradores parecem não ter nenhuma educação sequer, estão sempre empurrando, esse último é terrível — Luís continua. A maneira engessada como ele fala me faz franzir o cenho, não parece natural.

Vanessa solta uma exclamação de horror. Para ela, que vive em Casa Amarela e pode sempre pedir um Uber quando o padrasto não está afim de dirigir, o cenário deve soar como um pesadelo. Então, Luís se volta para mim.

— E você?

Ergo a sobrancelhas, pego de surpresa, distraído com a escolha de palavras dele. Levo um instante até entender a pergunta.

— Eu venho a pé, tô morando bem perto daqui. Sou do interior, na verdade. Me mudei pra cá com meu namorado no começo do ano.

Não somos amigos, não ainda, pelo menos. Eles parecem se interessar pelo que eu digo, Luís principalmente. O semblante anseia por saber mais, entretanto é Vanessa quem pergunta:

— E vocês moram sozinhos? Então é um casamento — ela sorri para mim, de forma descontraída, na sua postura despreocupada. — Que pena, achei que vocês dois seriam meus parceiros de caça nas calouradas... — divaga ela.

— Isso não impede nada! — rebato, no mesmo tom divertido que Vanessa usa. —Ele estuda aqui também, os dois gostam de festas. Talvez você ganhe um parceiro a mais, mas nada de caça.

Ela suspira em um lamento fingido enquanto observa alguém na entrada do prédio.

— Casando antes dos trinta... Depois a gente que é sapatão é que é emocionada.

Rio. Estou prestes a dizer que não é necessariamente um casamento, mas Luiz se adianta:

— Eu fiquei em choque quando entrei aqui. Esses assuntos ainda não muito recentes para mim. Eu era evangélico, mas não continuo frequentando. Sai quando assumi a minha homossexualidade recentemente.

— Como é que foi? — indaga Vanessa.

— Sem problemas. Minha mãe adotiva aceitou muito bem, disse que sempre desconfiou. Até pediu pra saber se eu já tinha algum rapaz. Para a minha avó não falei nada, não devo satisfações a ela. Não vejo a hora de eu e minha mãe sairmos daquela casa...

Luiz divaga sobre si e suas vontades de aproveitar o mundo que reprimia e recuperar o tempo perdido, já que havia tantas possibilidades no campus cheio. Ele mal podia esperar para a próxima calourada onde "não teria limites ou vergonha na cara".

Paro de ouvir em algum ponto e não posso deixar de lembrar de como um grupo de amigos como nós parecia improvável no início das aulas. Eu sempre chegava exatamente na hora, sentava na frente e corria para casa ou ao lugar que Álvaro estivesse assim que liberavam a turma. Graças a minha paranoia de que se deixasse ele sozinho por tempo demais, aconteceria de novo, ele encontraria alguém interessante e...

Por isso, os laços de coleguismo na sala se formaram sem mim. As coisas mudaram quando as notas dos primeiros projetos saíram. Acabei fazendo tudo sozinho e conseguindo a pontuação máxima. Os elogios exagerados do professor de Redação, feitos de forma constrangedora na frente da turma inteira, serviram para quebrar o gelo e pareceram despertar a atenção de Luís. No dia seguinte ele já havia grudado em mim e me incluído em seu grupo para todos os outros projetos do semestre.

Não reclamo, gosto de ter companhia. E graças a ele me aproximei de Vanessa. Eles conseguem me manter distraído durante os intervalos, enquanto se divertem às custas das histórias que arrancamos uns dos outros.

— Tá quase na hora — diz Vanessa, checando o relógio de pulso. — E vocês sabem como é Bruna, né? Chamada logo nos dez primeiros minutos.

Luiz confere o visor do celular, então, franze o cenho.

— Er... o seu relógio deve estar errado, cinco minutos atrasado, pelo menos.

— Caramba. Então vamo logo — responde ela, levantando de forma abrupta e quase perdendo o equilíbrio. — Ou então a gente vai levar falta.

Sigo os passos apressados deles através do jardim. Apesar de não querer atrasar, não consigo sentir a mesma urgência que eles. Tenho sentido poucas coisas ultimamente, para ser sincero. Há uma estranha onda de calmaria dançando dentro de mim, até então desconhecida, algo que me deixa meio aéreo. Não é uma sensação ruim, pelo contrário. É uma mistura de pesar e alívio, como quando se leva um tombo feio. Apesar de carregar a dor dos machucados, ao menos o pior já passou. É como ter se livrado de uma apreensão absurda e agora sentir o resto do mundo mais leve. Diferente, mas leve. Não consigo dizer de onde a sensação vem, mas algo no fundo, uma voz segura de si, me diz que a sensação é falsa.

Com os meus devaneios, acabo ficando para que traz. Meus novos colegas, apressados, se quer se dão conta. É quando vejo Álvaro cruzando o Hall. A expressão concentrada está perto de se tornar uma carranca. Ele anda com passos firmes, em direção a saída, o cabelo bagunçado se agitando a cada movimento.

Ele me vê, mas finge que não, até que não seja mais possível me ignorar. Quando sigo até ele, Álvaro para e mesmo ao longe, noto um suspiro exasperado, que seria audível de perto, cheio de desprezo, me faria sentir tão pequeno, diminuto, ao ponto de desaparecer de vista.

Travo onde estou, é um sinal claro. Reconheço que o Álvaro que me deparo é aquele que me faz desejar desaparecer de vistas. Ele revira os olhos e corta o resto da distância entre nós. Engulo em seco. Ele meche no cabelo, impaciente, me olha de cima, mas não nos olhos.

— Já tá indo embora? — Me forço a dizer.

Álvaro solta o ar, enfia as mãos nos bolsos. Depois, muda, tira-as de lá e então cruza os braços em frente ao peito.

— É.

O canto da boca treme e automaticamente, começo a procurar em mim um defeito, um erro, que provoque tal reação nele como resposta.

— Mas você não tem mais aulas? — Pergunto, incerto. Álvaro olha ao redor. Evita ao máximo, mas por último, cede, fixa os olhos nos meus.

— Não mais — solta. Então, força um sorriso que não se encaixa no rosto, como se acabássemos de nos encontrar, como se nada houvesse sido dito, em voz alta ou por gestos do corpo. Como se não houvesse um metro e meio de distância entre nós.

— Então tá indo pra casa?

Dou um passo em frente e então, ele logo se afasta um pouco. Meu coração acelera, todos os nervos do meu corpo prevendo o ataque, a mudança brusca que surgia do nada e se despejava sobre mim, até que eu me desfizesse, até que eu fosse o nada.

— Não, Caio. Não vou pra casa — Álvaro responde. Na voz há um tom de petulância, como se falasse com um estranho inconveniente.

— Então... Onde você vai? — Tento fingir que nada daquilo me afeta, falar em tom descontraído, comum.

— Vou sair um pouco — Álvaro responde, por cima de mim. Me corta e deixa claro que não quer conversar.

Insisto:

— Onde?

Ele explode:

— Sair, não já disse? Isso já basta!

Engulo em seco, minha garganta trava, o sangue sobe e queima na face, de vergonha, quando uma dúzia de cabeças se voltam na minha direção.

— Olha só a cena que você tava fazendo — ele acusa. — Como tu é insuportável, impossível de conviver. Vou sair, pronto, só isso — Álvaro baixa o tom, mas já é tarde, temos plateia. — Para de ser tão pegajoso, que merda. Não é só porque você não tem uma vida que ninguém mais tem o direito de ter!

E com isso, vai embora, triunfante, enquanto eu continuo plantado no mesmo lugar. Os olhares não me abandonam, me imobilizam, enquanto tudo o que eu quero é correr.

A humilhação pública é só um dos tormentos que se retorcem dentro de mim. Mágoa e confusão, culpa e raiva de mim mesmo, apesar de que eu não mereça, de que não tenha feito nada errado. Contudo, esses pensamentos de alto misericórdia se desmancham em meio as raízes dominantes que Álvaro plantou.

Meu subconsciente obedece a ele. E de todos os pensamentos que me faz sentir nesse curto encontro, é a culpa que se sobressai e me domina. É ela que me envergonha, porque me sinto errado na história toda.

Quando a noite avança, não consigo dormir. A calmaria que me habitava pela tarde se desfez como neblina cortada pelo sol, o alívio substituído por uma surpresa desesperadora, como ter os pontos de uma cirurgia arrancados a unha. Ciúme e raiva amargam e me correm. É tarde, ouço a tranca da porta girar, abrir, fechar, mas não novo um músculo.

Escuto Álvaro entrar, os sapatos caem com um estalo, quando ele os deixa na sala e segue descalço até o banheiro. O chuveiro escorre por um longo tempo, assim como lágrimas involuntárias me molham o rosto, as primeiras da noite, que só agora se sentem no direito de cair.

Seco-as e seus vestígios há muito desaparecem quando Álvaro finalmente entra no quarto, evita fazer barulho e não acende a luz.

— Tá acordado?

— Tô sim — respondo, mas continuo parado. Sinto Álvaro sentar na beirada cama. Minutos se passam em completo silêncio.

O cheiro forte de sabonete contamina o ar, depois do longo banho onde ele se esforçou para apagar qualquer outro aroma.

— Desculpa por hoje cedo — Álvaro finalmente quebra o silêncio. — Foi mal ter brigado, eu não...

A indignação faz o meu rosto arder. Me sento. A escuridão só é quebrada pela luz fraca que entra pela janela, revelando a silhueta de Álvaro, ao alcance do toque.

— É quase de manhã — solto em resposta ao seu tom quase casual. Ele se volta para mim, agradeço não poder ver o seu rosto, nem ele o meu.

— Espero que não tenha se preocupado — diz ele. Em seguida alcança a minha mão, tento soltá-la, mas ele a mantém com força. — Sei que tô errado, desculpa.

— Eu não vou fingir que o teu escândalo é o único motivo para você me pedir desculpas — digo e escuto Álvaro soltar o ar. Sua outra mão alcança a minha e as duas me acariciam. O silêncio volta, eu apenas espero.

— Tire um dia bem ruim — diz ele, a voz rouca. Álvaro limpa a garganta e então continua. — Tava muito estressado, não queria conversar sobre nada. Acabei descontando em você, me arrependi assim que dei as costas. Eu... Precisava esfriar a cabeça, sei lá. Sai com o pessoal da sala, bebi um pouco.

Solto a minha mão, vasculho os lençóis até encontrar o celular na beirada da cama.

— São quatro e meia da manhã — aponto, a acidez carregada na voz. A claridade do visor ofusca a minha visão, mas até que Álvaro encontre suas palavras, meus olhos já se acostumaram outra vez com a escuridão e consigo distinguir sua silhueta curvada, como se pudesse se comprimir.

— Sei o que tá pensando, mas juro que não fiz nada de errado. Minha cabeça tem sido... um lugar bem complicado de estar, você sabe. Eu só precisava sair, juro. Não fiz nada do que tá pensando, juro.

Álvaro leva a minha mão ao peito, a aperta contra os batimentos e mesmo no escuro, sinto seu olhar suplicante vasculhar o meu rosto, exigir dele um sinal de que não há ressentimentos.

Ele mente, posso afirmar pela forma como meu interior reage ao contato, como uma corrente amarga se espalha pelo meu peito, garganta, faz meus olhos arderem, traz um peso no estômago que me faz querer vomitar. Sei que ele mente pela forma estranha que seu corpo me parece. Mudado, sujo, desonesto. Sei que mente pois as juras não me acalmam, não por completo, a súplica não atenua o sentimento de derrota, de não ser suficiente, como costumava fazer.

Mas além desses sinais, que nada mais são que intuição, sei que mente porque esse é o padrão que vem se estabelecendo. É o mesmo comportamento, o gatilho para as mesmas necessidades as quais ele já me confessou tentá-lo e depois de ceder, sempre volta a mim, com o mesmo pedido de desculpas, com a mesma voz suplicante.

— Você não acredita em mim — diz Álvaro. Não uma pergunta, uma constatação.

Não respondo, ele solta a minha mão e ela cai sobre a cama com um barulho fofo. O calor que o peito dele emana logo abandona minha pele. E de certa forma, isso faz eu me sentir pior. Lágrimas me voltam aos olhos mas afasto com veemência.

— Você não acredita nunca no que eu falo, pra quê tá comigo?

As palavras me cortam, a mágoa que carregam é afiada. Ele levanta da cama, caminha pelo quarto.

— Se tivesse um pouco mais de fé, as coisas seriam muito melhores, não só pra gente, mas pra mim também — Álvaro me acusa. Não é nem de perto o tom agressivo que usou no hall, esse é calmo, machucado, o lamento de um cão agredido. Sobre mim, o efeito é maior ainda.

Luto para manter as minhas convicções, mas elas se dissipam em meio a inúmeros outros argumentos de Álvaro, se desfazem a cada ponto novo que ele me mostra, a cada panorama da nossa relação que ele me obriga a ver. No fim, me leva a crer que sou eu quem tem o poder de facilitar as coisas, mas sempre escolho dificultar.

— Você quer terminar? — ele demanda. — Não acha melhor assim?

— Não — respondo, antes de sequer estar ciente da pergunta. — Não... — repito, agora convicto, incapaz de dizer algo diferente.

A perspectiva do abandono se abre diante de mim, a dor é tamanha que ofusca a de ser constantemente trocado, enganado.

Não acredito nele, mas quero tanto. Desejo tanto ter o Álvaro do ensino médio de volta, a esperança de essa fase terminar é tão forte, que basta a perspectiva dele se cansar de mim por não acreditar para que as traições se tornem bobas, afinal, eu tenho o poder de fazer as coisas mais fáceis, não é?

Não acredito nele, mas me convenço de que estou errado. A realidade em que Álvaro apenas me deseja e só a mim é tão mais agradável, por que lutar contra ela?

Assim, me agarro as mentiras, abraço a culpa de ser tão ciumento e paranoico, desconfiado. Me atenho as suas palavras confortáveis e afasto para o mais profundo da mente as minhas certezas, torcendo para que uma hora isso tudo passe, o passado volte. E assim, eu não tenha que lidar com a perda completa, pois disso tenho tanto medo...

Temo perdê-lo e temo a solidão. Temo a fúria que se formaria nele, temo a felicidade dele com outra pessoa, enquanto me afundo em tristeza.

— Se você diz que não fez nada não tem porque não acreditar — digo, a voz pesada e arrastada, transformando o ambiente de tensão, a silhueta enfurecida de Álvaro se desfaz em um abraço quente e aconchegante.

As lágrimas que tentava afastar vencem, escorrem como o último lamento contra a minha fraqueza, a minha escolha pobre e passiva.

O dia aos poucos clareia, um brilho cinzento e feio, que não ajuda em muito a afetar a escuridão. Álvaro me aperta, traz a minha cabeça ao peito e com carinho me consola.

— Não precisa chorar, tá tudo bem agora — ele beija o meu cabelo, entrelaça as pernas ao meu redor. — Me perdoa. Tudo tem me deixado com raiva ultimamente, mas eu juro que não vai acontecer mais. Juro que não vou explodir com você de novo.

O choro não para, toma conta de mim em soluços violentos. Álvaro me aperta no abraço, tenta me acalmar.

— Não vai acontecer de novo, vou fazer o melhor pra mudar — ele continua, ao meu ouvido. — Não chora... Vou mudar por você, vou mudar por que amo você, amo tá com você, só você, Caio...

É a sua voz que me acompanha de volta a consciência, pelos labirintos da mente. De olhos abertos, sozinho no quarto, ainda sinto os braços ao meu redor, o hálito morno batendo na orelha. Mas tudo o que tenho são as roupas desconfortáveis que usei na formatura, abarrotadas no corpo e a brisa quente que entra pela janela escancarada do meu quarto em João Alfredo.

O choro também e real, tão forte que me rouba o ar, o peito pesa da mesma forma que pesava na memória trazida no sonho. E entre um soluço e outro, relembro as feridas que me esforço para esquecer, entre cada lágrima, me pergunto como posso sentir sua falta, como posso continuar a carregar tanta culpa e lamentar o fim de alguém que sobre mim exercia tamanho poder.

Volto a me perder no sono, mas a angústia não me abandona. Não sei dizer se por um instante ela já me deixou. Ao menos não voltam as imagens, fantasmas de toques reais contra a pele. Há só um vazio estéril, porém, bem-vindo.


Notas Finais


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