—Zelda.... – Hilda chamou pela irmã, que estava acendendo outro cigarro – Você está bem?
—Porque não estaria? – A bruxa recostou a cabeleira ruiva na cadeira, observando as árvores que dançavam com o vento.
—Você parece estranha, ultimamente – A mais nova das Spellman suspirou, enquanto sentava-se ao lado da outra. Era um martírio ter que ser ela a conversar com Zelda naquela circunstância – Distante.
—A Academia tem me mantido ocupada – A ruiva respondeu, com cautela e Hilda voltou a suspirar – Você sabe, apesar de algumas bruxas terem se oferecido para ensinar aos alunos, ainda estamos com poucos professores.
Hilda se conteve em um último momento, fechando a boca que já se abria para disparar exatamente o que pensava. Porque, por Satã, Zelda precisava manter-se sempre afastada? Erguia aquelas malditas paredes ao redor de si e se recusava a deixar qualquer um passar.
Não que ela soubesse o que exatamente havia acontecido.
Sabrina lhe avisara sobre Lúcifer e a estranha mistura de sentimentos que alegava que não lhe pertenciam. E desde então, a mais jovem das irmãs não recebera nenhuma outra informação.
Não fosse pelo fato de que a rigidez de Zelda subia consideravelmente quando algo a incomodava, era pouco provável que se percebesse que estava carregando um peso extra. Ela tornara-se expert em esconder os próprios sentimentos. Suas dores ou amores, ou o que quer que fosse, eram mantidos calados sob grossas camadas de inflexibilidade e álcool.
—Você.... Você tem falado com.... Lilith? – Ah, como Hilda desejava ser um pouco mais firme em suas posições. Mas ali, bastou o olhar duro da irmã, para se arrepender do que dissera.
—Se, por um acaso, eu estivesse ouvindo qualquer ordem direta de Lilith, você saberia, irmã – A ruiva rebateu, com sua voz e expressão frias como gelo.
—O que acha que aconteceu com ela? – Ela voltou a perguntar e mesmo que estivesse encarando as próprias mãos, sentiu a raiva dos olhos da irmã.
—Eu não sei Hilda – Zelda falou pausadamente – Se você passasse menos tempo com suas perguntas estúpidas e romances idiotas e, mais tempo rezando, talvez ela se dispusesse a nos dar uma palavra.
Hilda sentiu os olhos se encherem de lágrimas, mentalmente se estapeava por ao menos tentar. Mas que tipo de pessoa seria se não o fizesse?
—Desculpe – Zelda pigarreou, recebendo um olhar tão surpreso da irmã mais nova, que se obrigou a voltar a observar as árvores – Não creio que qualquer reza faria Lilith responder agora.
E ali estava, Hilda percebeu.
A amargura em seu tom de voz, quase tão imperceptível como uma rachadura fina em uma camada de gelo e ainda assim, tão fatal quanto.
Hilda não saberia mais o que dizer. Talvez, para qualquer outra pessoa, aquela fosse uma fala comum e fútil, uma reclamação. Mas não para ela, que conhecia sua irmã tão bem quanto a palma de sua própria mão.
Zelda não reclamava, não chorava lamúrias e muito menos, lambia as próprias feridas diante de qualquer outra pessoa. Era uma abertura, uma ferida ainda sangrando.
Mas porquê?
Obviamente, seria inútil perguntar. O máximo que ela conseguiria era despertar outra vez no Fosso de Caim e passar horas retirando toda a lama de seu cabelo.
A verdade é que todos haviam caído no terrível vazio que é a espera. Desde o ressurgimento de Lúcifer, as Spellman continuavam esperando que alguma coisa acontecesse, seus silêncios eram carregados e as horas nas quais não estavam ocupadas, passavam com uma lentidão que as torturava.
E justamente nessas horas, elas tinham tempo mais do que o suficiente para pensar em tudo o que as incomodava naquele período.
Zelda estava em seu próprio inferno pessoal. Havia dentro dela uma batalha tão grande quanto a do próprio bem contra o mal. Lutava intensamente para entender o que estava sentindo, aquela maldita preocupação com Lilith que tornava suas noites tão insones e seus dias tão longos.
E mais do que isso, era com uma bravura fora do comum que tentava analisar a si mesma e concluir qual razão a levava a ter sentimentos tão intensos.
Paixão? Zelda Spellman nunca fora mulher de se entregar a tais coisas tão banais. Principalmente quando havia cedido à luxúria da forma como fizera com Lilith. E quando seus pensamentos atingiam esse ponto e a ruiva começava a tranquilizar-se um pouco, lembrava-se de que a luxúria também a fizera estar com Blackwood – tantas vezes – e ela não dedicava nem um mísero pensamento para o homem.
É claro que ela continuava a cumprir com perfeição suas obrigações na Academia. Mas cada segundo de silêncio entre uma aula e outra, cada hora gasta entre seus cigarros, a fazia retornar para sua contenda desesperada.
Se tornou comum que mesmo sem assunto, as três Spellman se reunissem na sala de estar após as refeições. Um acordo silencioso e estranho de que se Lúcifer aparecesse, poderia não haver outra oportunidade de estarem juntas.
Era onde estavam quando um baque estranho ecoou pela casa e Ambrose surgiu de repente, acompanhado por Prudence. Eles tinham sorrisos presunçosos e bastou que dessem dois passos para o lado, para revelar um Blackwood amarrado e amordaçado.
—Isso resolve uma parte do problema – Sabrina declarou, antes que qualquer outro tivesse tempo de dizer alguma coisa.
No dia seguinte, Ambrose já não suportava mais aquela situação.
Após terem deixado Blackwood preso no porão, sentaram-se na sala de estar e os últimos acontecimentos foram desfiados pela família, contados e recontados até que nenhum detalhe pudesse ter passado despercebido e, mais tarde, Sabrina o chamou em seu quarto e explicou ainda mais, fazendo-o entender a estranheza de Zelda.
—Então, quando você disse que isso resolvia parte do problema.... – Ele começou, forçando a prima a expor seu plano para o resto da família.
—Blackwood pode ser o novo recipiente para Lúcifer – Ela continuou, recebendo de Zelda um olhar exasperado – Não sabíamos de nenhum outro bruxo forte o suficiente, mas ele poderia aguentar.
—Parece bom, exceto pelo fato de que Lúcifer está caminhando por aí, alerta contra qualquer tentativa de ataque e nossos poderes estão minguando mais e mais a cada dia – A ruiva pontuou cada frase com seu sarcasmo, servindo-se de uma dose de whisky, a segunda ou terceira daquela tarde – Então sim, resolve parte do problema, mas não a que precisamos que seja resolvida.
—Lilith saberia o que fazer – Hilda comentou e se arrependeu no mesmo instante, sentindo os olhos frios da irmã sobre ela.
—Se conseguíssemos libertar Lilith, ela poderia nos ajudar a distrair o Lorde das Trevas – Sabrina voltou a falar, ignorando ambas as tias – Usaríamos esse momento para prendê-lo outra vez e fazer a transferência.
—E como, Sabrina, você pretende libertar Lilith? – Zelda questionou, tragando o cigarro tão profundamente, que parecia tê-lo levado de uma só vez.
—Eu não, tia. Você.
—Existe uma maneira de você se comunicar com Lilith, tia – Ambrose interferiu, antes que a ruiva explodisse com a sobrinha – Eu vi isso algumas vezes, antes da prisão domiciliar. É como uma viagem astral.
—Uma viagem astral me permitiria ver Lilith? – Seu tom deixava claro que não estava levando a sério nenhuma palavra daquilo.
—Sim. É uma espécie de ligação especial que um Sumo Sacerdote tem para com a entidade que serve – Ele pigarreou – É claro que para funcionar, sua servidão deve ser completa. Mas é usada quando se faz necessária uma orientação urgente ou algo parecido.
Zelda não respondeu. Distraiu-se por um instante lembrando da complexidade de sua servidão. A noite passada com Lilith fazia pulsar não só o meio de suas pernas, mas também lhe apertava o coração de uma maneira que ela não saberia explicar. Isso era evidente em suas orações desesperadas todas as noites.
—É perigoso – Hilda declarou – Lúcifer está com ela, não sabemos o que pode acontecer. Zelda pode cair em uma sessão de tortura e nós sabemos que o Lorde das Trevas tem poder mais do que suficiente para não deixar que ela retorne ao corpo.
—Não se ele estivesse ocupado – Sabrina franziu o cenho para o semblante pálido de Zelda – Ele atenderia meu chamado.
—Esqueça – A ruiva rebateu, sorvendo o resto do líquido em seu corpo – Não colocaremos você em risco, Sabrina.
—Precisamos fazer alguma coisa, tia – A menina teimosamente a encarou – Não podemos deixar que essa situação continue, que o coven perca completamente os poderes. Eu não suporto mais isso.
—E você acha que eu suporto? – Zelda se levantou – Ver o coven pelo qual eu sou responsável definhar a cada dia, saber que Lilith pode estar em uma sessão de tortura, como sua tia amorosamente comentou – Hilda arregalou os olhos – Você não faz ideia Sabrina, de como eu tenho procurado por uma solução.
—Na verdade eu faço – A menina respondeu, com os olhos subitamente marejados – Porque eu passei muito tempo buscando por uma solução parecida para Nick – Ela se aproximou da tia, colocando uma mão sobre o braço da mesma – Eu entendo como se sente.
O silêncio que veio depois, era quase insuportável.
O entendimento assoviou ao chegar em Hilda, fazendo-a parar as mãos – que até então se mexiam incansavelmente – e Ambrose permitiu que o queixo se deslocasse vários centímetros para baixo, pela ousadia da sobrinha.
E Zelda se sentiu exposta de uma maneira que ela não admitia para si mesma. Todos aqueles olhares em sua direção, compadecidos, assustados, cúmplices e..... Amorosos.
—A situação não é nada parecida – Ela declarou, tentando recuperar a postura – Não acha que está indo longe demais, quando compara uma.... Uma paixão adolescente, com a ligação entre um Deus e seu Sumo Sacerdote? Eu passo meus dias perguntando onde errei com você, Sabrina.
—Mas....
—Sabrina.... – Hilda chamou-a, com carinho e a jovem ficou em silêncio.
Prudence, que até então se mantivera escondida no cômodo ao lado, surgiu de repente.
—Eu acompanhei Blackwood de perto, por algum tempo – Ela sorriu, sem humor – Ele costumava dizer que uma das magias mais poderosas, é a ligação entre um Sumo Sacerdote e seu Deus, vocês estão parcialmente certos, mas estão pensando da maneira errada – Conforme falava, ela andava ao redor de todos eles, mostrando um pouco do narcisismo ainda não perdido – É claro que ele não se importava em fazer nenhuma vontade se não a dele.
—Prudence.... – Ambrose a chamou, sinalizando para que fosse direto ao ponto.
—O fato é que se Lúcifer mantém Lilith prisioneira e ela não foi capaz de vir até Zelda ainda, dificilmente fará alguma diferença que algum de nós vá até ela. Uma Bruxa de um Coven enfraquecido não é a criatura mais indicada para algo assim.
—O que sugere então? – Sabrina cruzou os braços, irritada.
—Uma invocação – Prudence deu de ombros – Zelda e Lilith aparentemente, possuem uma ligação intensa – A moça preferiu ignorar o olhar gélido lançado pela ruiva, enquanto os outros presentes preferiram ignorar suas palavras – Uma invocação, por si só, é uma magia poderosa que normalmente, necessita de magos poderosos para ser realizada. Estou certa?
—Sim – Zelda respondeu, a contragosto.
—Pois então, como não estamos em nosso melhor momento, usaremos a ligação entre Suma Sacerdotisa e Deusa para suprir nossa falta de energia – Ela suspirou, como se o tempo passado caçando Blackwood, houvesse eliminado seu gosto por explicar o que outros não sabiam – Em outras circunstâncias, Zelda poderia invoca-la sozinha.
—Usaremos nosso poder para fortalecer minha tia e ela o usara para invocar Lilith? Parece simples.
—Mas não é – Prudence pontuou o óbvio – Vou checar Blackwood.
—O plano dela é mais sensato – Ambrose comentou – Talvez o feitiço mais básico, seja o que vá nos ajudar.
—Zelds.... – Hilda chamou pela irmã, ao perceber que a ruiva não olhava para nenhum deles e muito menos parecia disposta a falar sobre qualquer coisa – A ideia não é ruim, você sabe? – A outra levantou as sobrancelhas – Não iremos encontrar uma forma segura de fazer isso, é melhor que ao menos façamos alguma coisa....
—Antes que nossos poderes tenham chegado ao fim – Zelda terminou a frase, com a boca apertada numa linha fina.
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