Era uma noite chuvosa de domingo, por volta das sete da noite, quando Katarina ouviu a campainha tocar. Estava na cozinha terminando de encher algumas bacias de pipoca quando Gabi e Giovanni chegaram. Eram seus amigos de infância, talvez os mais antigos, que logo a abraçaram, Gabi cheirando a framboesa e Giovanni a protetor solar, penduraram seus respectivos guarda-chuvas no varal e foram em direção a cozinha.
— Vocês podem me ajudar a separar os copos e talheres? — Pediu Katarina, apontando para a sala ao lado.
Gabi, dos cabelos longos, olhos amêndoados e pele bronzeada, depositava os talheres nas bandejas de biscoitos e salgados.
Já Giovanni, pálido, dos cabelos loiros quase brancos e olhos azuis, distribuía os copos na mesinha de chão que ficava em frente a TV na sala. Giovanni possuía uma condição de saúde rara chamada albinismo. Por isso só usava roupas longas, cheirava a protetor solar e usava óculos de sol até nos dias mais nublados. Não era fácil de lidar, principalmente na escola, sendo o bullying algo deveras recorrente em sua vida.
A campainha tocou novamente.
— Deve ser a Nia. — Disse Katarina, empolgada, mas ao abrir a porta, não era Nia, mas sim os gêmeos Noan e Naomi. Os abraçou de bom grado e os convidou para ajudar a levar o restante dos lanches para a sala.
Noan usava uma jaqueta jeans preta, os cabelos na altura dos ombros e unhas pintadas de preto. Já Naomi usava um camisa roxa e um short jeans curto, seu cabelo era azul escuro estilo long bob com uma franja que ia até o meio da testa.
A chuva estava cada vez mais intensa e vez por outra relâmpagos pulsavam forte o suficiente para causar interferência nas luzes da casa.
— Pelo jeito é um temporal. — Comentou Gabi olhando para a janela de vidro que ficava de frente a pia, conferindo se estava bem fechada.
— A Nia não responde, só falta ela chegar. — Disse Katarina conferindo em seu celular a última mensagem que havia enviado para a amiga.
— Talvez tenha acontecido algum imprevisto. — Sugeriu Noan, sentado no sofá ao lado de Giovanni todo encolhido dentro de seu moletom cinza.
— Ela não recebeu minha mensagem, deve estar sem internet e aconteceu algum imprevisto. — Gabi mostrou o celular para Katarina. O combinado era para que todos chegassem na casa de Katarina até às sete horas, já passava das oito e quarenta e nada de Nia chegar ou dar notícias.
— Vamos só esperar mais um pouco, okay? Talvez ela ainda venha, não quero que ela pegue o filme pela metade. — Disse Katarina. — Podemos ficar fazendo alguma coisa até ela chegar, jogo de cartas, de adivinhação, xadrez ou dominó. Podemos até jogar Ouija se vocês quiserem.
— Você tem um tabuleiro de Ouija? — Perguntou Noan.
— Não, mas podemos improvisar. — Katarina deu meia volta até a cozinha e voltou com uma tábua de madeira tamanho médio em suas mãos. Em seguida, retirou uma caneta de ponta grossa de dentro de uma bolsa que estava pendurada ao lado da porta e entregou para Naomi, que logo começou a desenha as letras de A a Z, os números de 1 a 9, com o zero no final; sim ou não no topo, "adeus" escrito bem abaixo das letras e nas bordas superiores desenhou o sol e a lua respectivamente.
Naomi era desenhista, sonhava em ser tatuadora, mas por causa de seu pai, que abobinava seu estilo, deve de deixar esse sonho de lado por um tempo. Não muito diferente de Noan, que sonhava em seguir carreira musical, até uma banda já teve, era um excelente guitarrista, mas que infelizmente tivera sua guitarra destruída pelo próprio pai.
Após terminar alguns detalhes no desenho, Naomi depositou a tábua no chão e todos se sentaram ao redor da mesma formando um círculo de cinco pessoas. Todos pareciam ansiosos com aquela ideia de jogar ouija pela primeira, exceto Giovanni, que não achava aquilo uma boa ideia. Mas por ser tímido, permaneceu calado apenas escutando o que seus amigos diziam.
Era costume dos seis se reunirem no último domingo de cada mês para poder assistir filmes juntos. Às vezes sete, quando o namorado de Gabi, Misael, conseguia folga do trabalho. E quase sempre eram filmes de terror, sendo os clássicos dos anos oitenta, como halloween ou A Hora do Pesadelo, os favoritos da turma.
Estudavam todos na mesma escola, Columbus Nobre, uma das escolas públicas mais requisitadas de Fortaleza.
— Quem vai ser o líder? — Indagou Noan.
— Eu. — Respondeu Katarina. — Eu que tive a ideia, nada mais justo do que eu ser a líder. — Katarina pegou um copo de vidro e o colocou bem no meio do tabuleiro. — Agora cada um tem que colocar dois dedos em cima desse copo.
— Vocês têm certeza que querem fazer isso? — Perguntou Giovanni.
— É só um jogo, Gi, não é como se do nada a casa fosse começar a pegar fogo. — Dizia Gabi. — Isso é coisa de Hollywood.
— É, o máximo que pode acontecer é o espírito se revoltar contra a gente e nos possuir. — Brincou Noan, embora não sorrise.
Todos colocaram dois dedos em cima do copo e permaneceram em silêncio, apenas esperando que Katarina se concentrasse para dar início ao jogo.
No fundo, apenas o som da chuva e dos trovões eram possíveis ouvir.
— Aqui estamos reunidos e eu gostaria de saber: tem algum espírito aqui? — Perguntou Katarina lentamente em voz baixa, quase murmurando. Todos estavam com os olhos fixados no copo, mas nada aconteceu. — Tem algum espírito aqui? — Repetiu Katarina, mas novamente nada aconteceu. O copo continuou intacto no lugar.
[...]
— Esse jogo não funciona. — Disse Noan.
— Talvez porque não tenha um espírito aqui. — Explicou Naomi.
— Tenta perguntar outra coisa. — Sugeriu Gabi. Katarina pensou um pouco.
— Devemos continuar esse jogo? Sim ou não?
Era como se sua voz ecoasse pela sala, competindo com o barulho da chuva contra o telhado e os trovões abafados que vinham do céu. Katarina bufou, desanimada. — Acho melhor pararmos por aqui, talvez só funcione com ouijas de verdade. — Mal terminara a frase e o copo se moveu com tudo no tabuleiro, fazendo todos se assustarem. Os olhos de Katarina se encheram de lágrimas quando conferiu para onde o copo havia se movido: "não" era a resposta.
— E-eu não entendi. Você quis para não continuar ou para não terminar? — Perguntou Katarina um pouco nervosa, mas novamente nada aconteceu. O copo permaneceu parado intacto, a todos ali com os braços esticados. — Por que você não responde? Não queremos incomodar você, apenas queremos saber se já podemos encerrar esse jogo. — Disse Katarina, dessa vez com a voz firme, sem hesitar.
No entanto, nada do copo se mover.
— E se for um espírito zombateiro? — Questionou Giovanni após sentir um frio em sua nuca. Katarina suspirou profundamente.
— Acho melh- — Mas teve sua fala interrompida pelo celular de Gabi tocando.
Todos se entreolharam apreensivos.
Era seu namorado, Misael. Com a outra mão ele atendeu.
— Oi.
— Eu não entendi o que você quis dizer, acho que a ligação caiu. — Dizia ele na outra linha.
— Como assim? — Perguntou Gabi, confusa.
— Ué, você não tinha ligado pra mim?
— Não.
— Ligou sim, era sua voz, eu só não consegui entender o que você disse.
Gabi tirou o telefone de seu ouvido para conferir as chamadas recentes, de fato, havia uma ligação feita
há cerca de dois minutos. Acontece que ela não havia ligado. Gabi ficou sem reação, precisando pensar um pouco antes de dizer algo.
— Depois eu falo com você.
— Tá tudo bem?
— Sim, eu só... Deve ter sido a chuva, o sinal tá péssimo.
— Tá bom, então. Qualquer coisa manda mensagem.
E desligou.
Ninguém havia tirado a mão do tabuleiro e Noan, que antes comida pipoca, tinha pedido completamente o apetite.
— Acho melhor a gente parar por aqui. — Disse Katarina, prestes a tirar os dedos do tabuleiro quando, de repente, um barulho vindo de outro cômodo, especificamente do corredor que dava acesso aos quartos, a assustou. Era como se fosse alguém batendo na porta com muita força e de forma frenética. De súbito, todos sentiram um choque em seus dedos que tocavam aquele copo, os fazendo se afastar de uma vez.
A janela da cozinha se abriu, trazendo consigo uma ventania forte e sombria que foi com tudo em direção a Giovanni, o fazendo se deitar com tudo no chão, logo começando a se debater como se estivesse tendo uma convulsão. Naomi soltou um grito de desespero e tentou proteger sua cabeça com as mãos, mas a força com que ele se debatia era quase que desumana.
Noan, tão assustado quanto, tentava segurar seus braços no lugar.
Gabi ligava para a emergência e Katarina foi até a janela, mas antes de fechá-la, através das inúmeras gotas que caíam do céu, pôde avistar uma criatura tenebrosa andando pelo jardim lateral de sua casa. Era como se fosse uma mistura de homem e cabra, pele escura azulada, olhos brancos e um sorriso enorme de bizarro no pouco que conseguira ver de seu rosto. Fechou a janela de uma vez. Suas pernas tremiam.
— Eles simplesmente não atendem! Por que eles não atendem? — Gritava Gabi para o telefone em suas mãos. A boca de Giovanni começava a espumar e seus olhos a revirar.
— Não vamos conseguir chamar uma ambulância aqui a tempo com uma chuva dessas. — Gritou Noan. — Precisamos tirar ele daqui! Agora!
Katarina procurava pela chave do carro de sua mãe. Ela havia viajado com seu pai para comemorar dez anos de casados, só voltariam na semana seguinte. A chave estava pendurada em um dos cabideiros de madeira da cozinha. As entregou nas mãos de Gabi, visto que ela era a única dali que sabia dirigir, mesmo ainda sendo menor de idade. Todos ali eram menores de idade, sendo o mais novo deles Giovanni, que tinha apenas quinze.
Ainda deitado no chão, seu corpo havia parado de se debater e sua boca de espumar. Devido a movimento, algumas ataduras havia se soltado de suas mãos, revelenado algumas queimaduras causadas pelo sol. Naomi sentiu vontade de chorar ao encontrar o amigo naquela situação.
Noan e Katarina a ajudaram a o pegar pelos braços o levar até o carro, que estava na garagem em frente a casa, enquanto Gabi os seguia com algumas bolsas e um guarda chuva. Em vão, pois todos acabaram ficando ensopados e tiveram certa dificuldade em o colocar no banco de trás.
Gabi ficou no volante, com Katarina ao lado lado. Já Naomi levava Giovanni deitado em seu colo no banco de trás, com Noan bem ao seu lado cuidando para que o corpo de Giovanni não balançasse tanto. Antes que Gabi pudesse dar partida, Katarina deu uma última olhada para o jardim, exatamente onde havia visto aquela criatura medonha. Mas já não estava mais ali, de
repente, aquela noite havia se tornado mais sombria do que imaginava.
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