18h35 – 14 DE ABRIL
Foi uma maravilha, Heejin percebeu.
Foi uma maravilha que a fez descer do trem com uma desconhecida em Viena, sem saber quase nada sobre ela, exceto seu nome.
Foi uma maravilha que a fez envolver os braços em torno da referida desconhecida e puxá-la para um beijo que fez seu coração doer e os lábios ansiarem por mais.
É incrível, ela pensou, memorizando a sensação da mão de Hyunjin entrelaçada com a dela enquanto caminhavam ao redor do Prater depois de escurecer. As luzes do parque de diversões emitiam um brilho encantador, refletido no rosto de Hyunjin. Heejin não pôde deixar de olhar.
– Você já pensou em como seria se você tivesse nascido em uma geração diferente? – Hyunjin perguntou, quebrando o silêncio agradável que elas estavam compartilhando. Ela estava olhando para a frente, balançando as mãos entrelaçadas enquanto caminhavam.
Heejin ponderou o pensamento.
– Eu não acho que isso importe tanto. – ela respondeu. – E embora busqueis nelas a liberdade de vossa privacidade, podereis assim encontrar rédeas e grilhões.
Hyunjin torceu o nariz adoravelmente.
– O que é isso?
– Kahlil Gibran. – disse Heejin. – Apenas significa que, quando você obtém a liberdade que deseja, acaba lhe dando diferentes algemas e responsabilidades que o reprimem novamente. Algo parecido. – Ela parou por um momento, procurando uma maneira melhor de colocar isso. – Veja os meus pais. Eles eram um desses jovens rebelde, revoltados contra tudo. Contra o governo, seus antecedentes conservadores católicos... E lá estava eu, nascida pouco tempo depois, com todo o privilégio da liberdade pela qual eles lutaram. Eu realmente não posso reclamar. Mas seria errado dizer que não estou lutando minha própria luta, sabe, ainda tenho meus próprios problemas para lidar. Eu nem sei quem ou o que é o inimigo. Então eu não acho que importa tanto, em que geração você nasceu.
Hyunjin assentiu em compreensão e Heejin sentiu o aperto em sua mão aumentar um pouco.
– Eu realmente não sei se há um inimigo. Quer dizer, todos os pais ferram os filhos. Pais ricos dão demais a eles. Pais pobres, não o bastante. Atenção demais, ou muito pouca atenção. Ou os deixaram, ou ficaram ensinando as coisas erradas.
Hyunjin parou de andar quando ela disse isso e ergueu as mãos entrelaçadas. Ela olhou para elas enquanto falava.
– Meus pais são só duas pessoas que não se gostavam muito. Eles decidiram se casar e ter uma filha, e eles fazem o possível para serem legais comigo, eu acho.
Heejin franziu a testa com a incerteza na voz de Hyunjin, pensando na possibilidade de odiar pessoas que você nunca conheceu. Sua mente lhe deu uma imagem de Hyunjin, uma criança com estrelas nos olhos e tanto amor para dar, apenas para passar metade de sua vida em uma casa que não queria nada com ela.
– Seus pais se divorciaram?
– Sim, finalmente. – ela respondeu, rindo um pouco. – Deveriam ter feito isso muito antes, mas ficaram juntos por um tempo para o meu bem-estar e da minha irmã. Muito obrigada. – Ela fez uma careta assim que disse isso, zombando da afirmação e fazendo Heejin rir. Ela provavelmente ouviu a desculpa várias vezes para odiá-la com paixão.
– Lembro-me da minha mãe uma vez. Eles estavam tendo uma grande briga e ela me disse, bem na frente do meu pai, que ele realmente não queria me ter. Que ele ficou furioso quando soube que ela estava grávida. Que eu seria um grande erro. – Ela disse isso com indiferença, como se estivesse evitando sentir qualquer coisa. De alguma forma, isso só fez a carranca de Heejin se aprofundar. – E acho que isso realmente moldou meu jeito de pensar. Sempre vi o mundo como um lugar onde eu não deveria estar.
– Isso é tão triste. – disse Heejin, não sendo capaz de se conter.
O rosto de Hyunjin era inescrutável, e Heejin ainda se via odiando isso. Ela queria saber o que ela estava pensando - como ela estava se sentindo. Seria correto dizer que ela merecia coisa melhor? Que por alguma razão, Heejin queria dar a ela o amor que ela não teve a chance de receber?
Para sua surpresa, Hyunjin abriu um sorriso com suas palavras.
– Eu acabei me orgulhando disso. Como se minha vida fosse minha própria conquista. Como se eu estivesse invadindo a grande festa.
– É um jeito de ver. – disse Heejin, um pouco insegura. – Meus pais ainda são casados e acho que são felizes. Mas acho que é saudável se rebelar contra tudo que veio antes. Sabe, ando pensando ultimamente... Você conhece alguém que esteja num relacionamento feliz?
– Sim, acho que sim. – Hyunjin disse pensativa. Então, ela se aproximou de Heejin, como se fosse contar um segredo. – Mas acho que mentem um para o outro.
Heejin cantarolou em concordância.
– Sim, eu sei o que você quer dizer. Minha avó, era casada com esse homem e sempre pensei que ela tinha uma vida amorosa tranquila. Mas ela acabou me confessando que passou a vida toda sonhando com outro homem que ela sempre amou. Ela apenas aceitou seu destino. É tão triste! Ao mesmo tempo, adoro a ideia de que ela tinha essas emoções e sentimentos que jamais pensei que tivesse.
Hyunjin soltou a mão dela e começou a andar para trás alguns passos à frente de Heejin, encarando-a enquanto ela falava.
– Eu garanto a você, foi melhor assim. – ela disse, completamente séria. – Se ela o conhecesse, ele acabaria por desapontá-la.
As sobrancelhas de Heejin franziram. Ela não gostava muito da ideia de presumir o pior das pessoas.
– Como você sabe? Você nunca os conheceu.
– Eu sei, eu sei. – Hyunjin concordou, levantando as mãos em sinal de rendição. – É só que as pessoas colocam projeções românticas em tudo. Não é baseado em nenhum tipo de realidade.
– Projeções românticas? – Heejin repetiu.
– Sim.
– Tá brincando né? – Heejin perguntou com uma risada. – E a Dona Romântica na roda gigante? ‘’Oh, me beije. O pôr do sol. Oh, tão lindo.’’
Hyunjin fez beicinho com a provocação dela, andando até o lado dela e envolvendo um braço em volta do ombro dela.
– Tudo bem, tudo bem, pare. Me fale sobre sua avó. O que dizia sobre ela?
Apresentada com a oportunidade de perturbá-la ainda mais, Heejin não parou de provocar. Pelo menos, até que Hyunjin a calou beijando sua bochecha.
19h40 – 14 DE ABRIL
Cansadas de caminhar, as duas logo se viram sentadas uma ao lado da outra em um café ao ar livre, a poucos metros do Prater.
Hyunjin tinha um braço em volta da cadeira de Heejin, que fazia o possível para se distrair da proximidade olhando para as pessoas que passavam. Havia um par de frades, murmurando entre si. Uma cigana lendo as palmas das mãos dos fregueses do café a algumas mesas delas. Algumas carruagens passaram também, e Heejin pensou em quantas pessoas aqui eram visitantes como elas - passando, sem saber se teriam a chance de voltar.
– Ei. – Hyunjin chamou suavemente, chamando a atenção de Heejin de volta para ela. Heejin se virou para encontrar seus olhos, impressionada com o quão abertamente vulneráveis eles pareciam.
– Posso te contar um segredo? – ela perguntou.
– O que?
– Venha aqui. – Hyunjin sussurrou, inclinando-se para o ouvido de Heejin.
Heejin se aproximou, apenas para Hyunjin se inclinar totalmente em sua direção e roubar um beijo de seus lábios. Foi leve e curto, mas o suficiente para lhe causar um curto-circuito por dez segundos inteiros. Elas ficam assim por um momento, olhando nos olhos uma da outra.
Quando se separaram, o olhar de Heejin vagou pelo café mais uma vez, desta vez, infelizmente, fazendo contato com a cigana que ela viu antes. A mulher começou a caminhar em direção a elas e Heejin segurou um suspiro.
– Uh-oh. – disse Heejin, mordendo o lábio.
O olhar de Hyunjin passou de seus lábios de volta para seus olhos, e fixou-a com um olhar questionador.
– Acabei de fazer contato visual. – sussurrou Heejin. Hyunjin respondeu com um gemido baixo, deixando cair a cabeça na mesa do café assim que a cigana chegou.
Apesar do pavor de Heejin ao chamar sua atenção, ela achou a cigana muito interessante. Ela estava com os cabelos trançados, com um lenço que cobria boa parte da cabeça. Ela usava uma saia longa plissada, uma blusa justa e uma expressão no rosto que as pessoas mais supersticiosas costumavam ter. Como se soubessem de algo que Heejin não sabia. O que, dada a situação, provavelmente seria mesmo.
– Aí está ela. – Hyunjin murmurou em tom de zombaria, fazendo Heejin bater em seu colo para calá-la.
– Ich moechte deine hand lesen. – disse a mulher em alemão.
– Uh, inglês, francês?
A cigana estendeu a mão para as mãos de Heejin em resposta.
– Você quer que sua palma seja lida?
– Sim. Quanto custa? – Hesitante, Heejin estendeu a mão.
– Para você, cinquenta. Está bem?
Heejin assentiu, observando enquanto a cigana pegava sua mão e roçava o dedo na palma da mão. Depois de um momento ela lançou um olhar para Hyunjin, que simplesmente revirou os olhos.
– Você está numa viagem e é uma estranha nesse lugar. – disse a cigana, fazendo Heejin redirecionar sua atenção.
– Você é uma aventureira. Alguém que busca. Uma aventureira em sua mente. Está interessada no poder da mulher, na força profunda e na criatividade da mulher. – Ela fez uma pausa e deu a Heejin um olhar de satisfação. – Você está se tornando essa mulher, mas precisa se conformar com as estranhezas da vida. Somente se encontrar a paz em si mesma, encontrará a verdadeira conexão com os demais.
Assim como Heejin pensou que tinha terminado, ela apontou para Hyunjin com a cabeça.
– Ela é uma estranha para você?
– Acho que sim. – respondeu Heejin, insegura. Hyunjin era uma estranha para ela? Por todas as definições da palavra, ela deveria ser, mas Heejin não pôde deixar de sentir que era errado dizer isso. De alguma forma, ela conhecia Hyunjin. De uma forma que superou o tempo e a experiência e todas as coisas mundanas que definiam um relacionamento.
Sua linha de pensamento parou quando a cigana soltou sua mão e agarrou a de Hyunjin.
– Oh, você vai ficar bem. – a cigano garantiu a Heejin. – Ela está aprendendo.
A testa de Hyunjin enrugou com a declaração da cigana, mas antes que ela pudesse dizer uma palavra, a mulher bateu palmas e as estendeu com as palmas abertas.
– Certo... Dinheiro. – ela esclareceu, e Heejin foi rápida em entregá-lo a ela.
A cigana então se afastou, contando o dinheiro que lhe deram, e Heejin pensou que era isso. Mas, de repente, ela se virou e chamou as duas, com um sorriso no rosto e os braços erguidos.
– Vocês duas são estrelas. Não se esqueçam! – ela gritou, acenando com as mãos. – Quando as estrelas explodiram há bilhões de anos formaram tudo que existe nesse mundo. Tudo o que conhecemos é poeira estelar. Então não se esqueçam, vocês são poeira estelar.
Havia um sorriso em seu rosto, uma espécie de olhar de paz que Heejin atribuiu ao contentamento. Isso, ou a felicidade de provavelmente ter conseguido algum dinheiro fácil.
Quando a mulher se virou para sair, Heejin ouviu Hyunjin rir ao lado dela.
– Isso é muito legal e tal, mas espero que você não leve isso mais a sério que um horóscopo em um jornal diário. – disse ela, com uma carranca firme no lugar.
As sobrancelhas de Heejin franziram em confusão, notando brevemente o quão diferente Hyunjin parecia agora de quando ela estava prestes a beijá-la antes.
– Como assim? – Heejin perguntou. – Ela sabia que estou de férias, que não nos conhecíamos. – ela não pôde deixar de rir do que veio a seguir. – E que eu vou me tornar uma grande mulher.
As linhas na testa de Hyunjin suavizaram um pouco, e ela deu de ombros.
– Não sei. Mas o que foi aquilo de ‘’eu estou aprendendo’’? Aquilo foi super condescendente. Ela nem estava lendo a minha mão. Se oportunistas assim tivessem que dizer a verdade, ficariam sem trabalho. Entende? – Hyunjin virou-se para Heejin em busca de apoio, mas tudo o que Heejin deu foi um olhar divertido.
Era interessante vê-la tão irritada com algo que queria fingir que não se importava. Sendo recebida pelo silêncio, Hyunjin continuou.
– Quero dizer, apenas uma vez, eu adoraria ver uma velhinha ir até a cartomante, e quando ela chegasse lá toda animada em ouvir seu futuro, a mulher diria; – Hyunjin agarrou a mão de Heejin e imitou a forma como a cigana traçou os dedos na palma da mão. – ‘’Amanhã e todos os seus dias restantes, serão exatamente como hoje. Uma tediosa coleção de horas. E você não terá novas paixões, nem novos pensamentos, nem novas viagens. E quando morrer, será completamente esquecida. 50 pratas, por favor.’’
Quando Hyunjin soltou sua mão, Heejin já sentia desacordo se formando no fundo de sua garganta. Mas de alguma forma, ouvir o discurso de Hyunjin parecia vê-la se fechar em si mesma, como um animal ferido atacando depois de lamber suas feridas. Então, Heejin decidiu deixar baixo.
– É engraçado como ela quase não notou você. – disse Heejin, pegando a mão de Hyunjin e entrelaçando-a com a dela. – Ela era muito sábia e intensa. Na verdade, adorei o que ela disse.
Hyunjin sorriu fracamente.
– Claro, você paga para ouvir o que te faz sentir-se bem consigo mesma. O crack meio que funciona da mesma forma, não? Você quer encontrar alguns aqui em Viena?
Hyunjin deu a ela um olhar exageradamente sugestivo, sobrancelhas levantadas com um enorme sorriso no rosto, fazendo Heejin rir.
– Você é tão…
– Talvez eles chamem de poeira estelar por aqui!
Foi a vez de Heejin calá-la com um beijo.
20h40 – 14 DE ABRIL
Depois de vagar pelas ruas de paralelepípedos do café, Heejin se viu dentro de uma igreja, sentada em um banco ao lado de Hyunjin.
As igrejas na Europa sempre tiveram os mais belos projetos arquitetônicos, então ao ver o prédio vazio, Heejin não resistiu em pedir a Hyunjin para entrar. Ela não ficou desapontada - penduradas nas paredes antigas havia belas esculturas e pinturas, com candelabros flutuando no teto.
– Eu visitei uma velha igreja como essa com minha avó há alguns dias atrás. – disse Heejin, virando-se para olhar para Hyunjin, que estava olhando para o altar na frente deles. – Embora eu rejeite a maioria das ideias religiosas, não consigo deixar de me emocionar pelas pessoas que vem aqui, perdidas ou sofrendo, com culpa... procurando algum tipo de resposta. Me fascina como um único lugar pode reunir tanta dor e felicidade por tantas gerações.
– Você é próxima da sua avó? – Hyunjin perguntou, desviando o olhar do altar.
Heejin sorriu com a pergunta. Ela pensou em como, de alguma forma, essa situação era obra de sua avó. Ela está sentada ao lado de uma desconhecida do trem em uma igreja desconhecida em algum lugar de Viena, tudo porque ela decidiu visitar sua avó, o atraso que a fez reservar uma viagem para Budapeste em vez de Paris.
– Sim. Acho que é porque sempre tenho a estranha sensação de que sou uma mulher muito velha deitada prestes a morrer. Sabe, de que minha vida é apenas as memórias dela ou algo assim.
– Isso é louco. – Hyunjin disse, admiração se infiltrando em sua voz, como se ela tivesse acabado de descobrir alguma estranha coincidência. – Sempre penso que ainda sou uma garota de 13 anos que não sabe ao certo como ser adulta, fingindo viver minha vida, fazendo anotações para quando realmente precisar ser um. Como se estivesse num ensaio para uma peça do colégio.
Heejin ponderou sobre a ideia, decidindo que fazia sentido, de alguma forma. Às vezes, Hyunjin tinha a tendência de olhar e agir com a inocência de uma criança - como quando ela olhou para Heejin durante toda a sua permanência na cabine de escuta, sem saber que Heejin estava totalmente ciente. Como se a criança dentro dela estivesse ressurgindo, depois de ter sido forçada a crescer rápido demais.
– É engraçado. – disse Heejin, sorrindo para a imagem de uma Hyunjin de treze anos. – Então, lá na roda-gigante, foi como... uma mulher muito velha beijando uma garota muito jovem, certo?
Hyunjin respondeu com uma risada, o olhar viajando de volta para o altar na frente deles. Heejin não pôde deixar de olhar para ela - algo sobre a foto diante dela parecia tão... de outro mundo. Como se ela estivesse sonhando e observando tudo se desenrolar. Mesmo com todas as obras de arte etéreas ao seu redor, o foco de Heejin se concentrou na bela estranha ao seu lado, brilhando sob a luz dos candelabros da igreja.
Hyunjin parecia ter notado seu olhar, virando-se para enfrentar Heejin mais uma vez.
– Você sabe alguma coisa sobre os Quakers? A religião Quaker? – Hyunjin perguntou.
Heejin balançou a cabeça negativamente.
– Bem, eu fui a um casamento Quaker uma vez, e foi fantástico. – Lá está novamente, aquele olhar distante nos olhos de Hyunjin. Parecia estranho tê-lo direcionado a ela. – O que eles fazem é que os noivos entram e se ajoelham diante de toda a congregação e só olham um para o outro. Ninguém diz nada, a não ser que sintam que Deus os leva a fazer ou dizer alguma coisa. Então, após cerca de uma hora onde somente trocam olhares, eles estão casados.
Seguiu-se uma pausa significativa, a quietude envolvendo as duas.
– É lindo. Eu gosto disso. – disse Heejin suavemente, sem quebrar o silêncio. Ela, no entanto, timidamente desviou o olhar quando Hyunjin colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha.
Muito rapidamente, o momento passou e Heejin ouviu Hyunjin rir para si mesma.
– Ah, eu tenho uma história para contar. É tão horrível, no entanto.
– O que? – Heejin perguntou, a voz ainda baixa. Parecia errado falar muito alto - ouvir a voz dela ecoar contra as paredes parecia um sacrilégio de alguma forma. Como se falar muito alto pudesse dissipar a névoa de sonho que cercava as duas.
– É meio inapropriado dizer isso aqui. – Hyunjin começou. – Bem, eu estava dirigindo por aí com um amigo meu. Ele era um grande ateísta, e paramos ao lado de um sem-teto.
– Meu amigo pegou uma nota de 100, colocou pra fora da janela e disse: ‘'Você acredita em Deus?'’ O cara olha para ele e pro dinheiro, e ele diz: '’Sim, acredito.’' Meu amigo diz: '’Resposta errada'’. E fomos embora.
Heejin não pôde evitar a carranca que se espalhou por seu rosto.
– Isso é maldade, não?
Hyunjin encolheu os ombros, como se dissesse que não havia muito que ela pudesse fazer sobre isso agora de qualquer maneira.
– Sim, foi. O carro dele quebrou mais tarde, alias. Eu gosto de pensar que o sem-teto teria rido.
21h07 – 14 DE ABRIL
Desde que ela conseguia se lembrar, Heejin sempre associou rios e oceanos com calma. Ela se distraia enquanto olhava para a água, ou apenas observava as ondas quebrando na praia.
Hoje à noite, ela está sentindo um tipo diferente de calma - caminhando ao lado do Danúbio, agarrada ao braço de Hyunjin e vestindo sua jaqueta. Realmente não parecia calma. Verdade seja dita, na verdade, beirava a saudade. Era possível ser nostálgico por um momento em que ela estava atualmente?
Seus pensamentos desapareceram ao sentir uma forte pressão em seu dedo.
– Ai! – Heejin exclamou, em conflito entre diversão e confusão - Hyunjin a havia mordido.
Como se viu, é apenas a maneira de Hyunjin chamar sua atenção.
– Você estaria em Paris agora, se não tivesse vindo comigo? – ela perguntou, ainda sem largar a mão de Heejin na dela.
Heejin pensou sobre isso, correndo as horas em sua cabeça.
– Não, ainda não. O que você estaria fazendo?
– Eu provavelmente estaria pelo aeroporto lendo revistas antigas, chorando no meu café porque você não veio comigo. – Hyunjin disse com uma voz chorosa, salpicando a mão de Heejin com beijos leves - cada um enviando correntes de eletricidade direto para a espinha de Heejin.
– Awww. Acho que provavelmente eu teria saltado do trem com outra pessoa. – Heejin brincou.
– Ah, é? Ah, estou vendo. Então, sou apenas uma desconhecida idiota, momentaneamente decorando sua tela em branco, hein? – Hyunjin a encarou com um beicinho nos lábios.
– Estou curtindo muito. – Heejin riu e beliscou sua bochecha.
– Eu também. – Hyunjin disse, sorrindo de uma forma que a fez parecer tão contente, como se ela pudesse desaparecer do mundo neste segundo, e ela não teria absolutamente nenhum arrependimento.
Heejin entendeu o sentimento. Ela está bêbada neste momento, esta noite com uma estranha é algo que ela não vai esquecer tão cedo.
– Estou feliz, porque ninguém sabe que estou aqui, e não conheço ninguém me contaria todas as coisas ruins que você já fez.
– Sim? – Hyunjin respondeu brincando. – Vou te contar algumas.
– Sim, tenho certeza. – Heejin revirou os olhos.
– Mm-hmm. Tem muitos esqueletos neste armário.
– Me poupe. A gente ouve tanta merda sobre as pessoas. Sempre me sinto como o general de um exército quando conheço novas pessoas. Especialmente quando eu saio com eles. – Heejin divagou, instantâneos de seus relacionamentos fracassados voltando para ela em massa. – Traçando minha estratégia e manobras. Conhecendo seus pontos fracos, o que os machucaria, os seduziria, os faria felizes. É horrível.
Heejin parou seus passos e se virou para Hyunjin. Para seu crédito, ela parecia estar ouvindo.
– Se estivéssemos sempre juntas, qual seria a primeira coisa em mim que te irritaria? – Heejin perguntou.
– Não. Não vou responder a essa pergunta. – Os olhos de Hyunjin se arregalaram em alarme
– Por que?
– Eu só... namorei com uma garota que sempre me perguntava isso. Continuei me esquivando, mas ela continuou insistindo, então finalmente disse: 'Não acho que você encare bem as críticas’' Ela ficou furiosa e terminou comigo. Hyunjin franziu o nariz ao dizer isso, distraindo momentaneamente Heejin. Por que ela tinha que ser tão adorável? – Essa é uma história verdadeira. Tenho certeza de que ela só queria uma desculpa para me dizer o que achava errado em mim. É isso que você quer?
– O que? – Heejin disse, surpresa. Essa não era a intenção dela, mas algo a estava incomodando. Ela simplesmente não achava que valia a pena mencionar.
– O que há em mim que te aborrece? – Hyunjin perguntou, cutucando o braço dela. – Vamos, está tudo bem. Diga-me.
– Nada, mesmo. – Heejin desviou.
Insatisfeita, Hyunjin não parou.
– Se tivesse que dizer algo, o que seria?
Heejin resistiu ao impulso de apontar que Hyunjin apenas fez sua pergunta. Em vez disso, ela decidiu ser honesta.
– Se tivesse que ser algo, se eu tivesse que pensar nisso…
– Sim?
– ...Eu meio que não gostei muito da sua reação diante da cigana. Você deu uma de metido a besta. – Heejin disse em uma respiração, olhando para Hyunjin ao seu lado enquanto eles continuavam andando.
Não havia um traço de ofensa na expressão de Hyunjin - na verdade, ela parecia fascinada.
– Metido a besta?
– Sim. – Heejin murmurou.
– Como assim metido a besta? – Hyunjin perguntou em voz alta.
– Você parecia uma criança choramingando porque toda a atenção não estava focada em você...
Desta vez, Hyunjin pareceu se ofender, interrompendo-a.
– Certo, escute. Aquela mulher te roubou descaradamente...
– Você agiu como uma criança passando por uma sorveteria chorando porque sua mãe não comprou um milk shake ou..
Heejin não teve chance de terminar a frase quando uma nova voz se juntou à conversa, fazendo-a pular para o lado de Hyunjin.
– Aeaehh, entschuldigung. Eine Frage, eine Frage. Hallo! Eine Frage. Ich moechte 'was fragen, eine Frage.
Surpresa, Heejin se virou para trás para ver um homem vestido com um terno azul marinho estranhamente formal. Ele estava sentado nos degraus que desciam para o rio, com um caderno ao lado e um cigarro aceso entre os dedos.
– Ich moechte ‘was fragen, eine Frage, – disse o homem, apontando para as duas.
– Eu entendo um pouco, mas ela não, desculpe. – disse Heejin em inglês, puxando Hyunjin junto com ela enquanto ela se aproximava do homem.
O homem assentiu em compreensão.
– Ok... uh, posso lhes fazer uma pergunta?
– Sim, claro. – Hyunjin respondeu, olhando para Heejin com uma expressão que decididamente não tinha certeza. Heejin deu de ombros.
Após sua resposta, o semblante do homem mudou de hesitante para confiante, como se ele finalmente estivesse em seu elemento. Com um pequeno sorriso no rosto, ele disse:
– Queria fazer um trato com vocês. Em vez de pedir dinheiro, peço a vocês uma palavra. Vocês me dão uma palavra, eu pego a palavra, e escrevo um poema com a palavra dentro. E se gostarem do meu poema, se sentirem que ele acrescenta algo às suas vidas de algum modo, então, podem me pagar o quanto quiserem. Escreverei em inglês, claro.
Heejin olhou para Hyunjin para ver o que ela pensava, ao que ela respondeu com um encolher de ombros.
– Está bem. – Heejin respondeu pelas duas. Honestamente, uma pequena parte dela estava animada para ouvir o poema. Afinal, ela queria ser escritora. Um jornalista, mas ainda assim.
– Então... Escolham uma palavra. – disse o homem.
– Uma palavra… – De alguma forma, todo o repertório de vocabulário de Heejin desapareceu e ela ficou com uma palavra; – Milk shake.
– Milk shake? – Hyunjin repetiu interrogativamente. – Eu ia dizer ‘’metido a besta’’, mas tudo bem. Milk shake.
O homem riu, chamando a atenção delas de volta para ele.
– Milk shake... – Ele fez uma pausa, como se revirasse a palavra em sua cabeça. – Ok, milk shake.
Heejin sentiu Hyunjin agarrar seu pulso com força.
– Ok, então vamos deixar você sozinho um pouco. – disse Hyunjin, puxando Heejin para o outro lado da passarela. O homem as cumprimentou com um aceno de mão, já muito absorto em escrever em seu caderno.
Uma vez que elas estavam a uma boa distância, Heejin aproveitou o tempo para ler a expressão de Hyunjin. Ela estava brava? O conjunto apertado de seus lábios e a preocupação em seus olhos diziam o contrário - se alguma coisa, ela parecia agitada.
– Tenho que dizer, gosto dessa variação vienense de mendigo.
Heejin sorriu levemente. Era uma coisa recorrente com Hyunjin, seu cinismo. Ela entendeu de onde veio, mas se alguém perguntasse a Heejin o que ela achava do homem, ela diria que ele estava vivendo uma vida boa. Fazer o que ele queria em seus próprios termos, não era o que todos desejavam?
– Gostei do que ele disse sobre acrescentar algo às nossas vidas.
– Mm-hmm, sim. – Hyunjin disse casualmente, olhando para o homem por um momento. –Então, estávamos tendo nossa primeira briga lá?
Heejin rebobinou a conversa em sua cabeça e tentou determinar se era uma briga. Realmente não parecia - era mais um desentendimento do que uma briga.
– Acho que não. – respondeu Heejin inocentemente.
– Acho que sim. Acho que estávamos. – Hyunjin disse provocando, a preocupação em seus olhos começando a desaparecer. Outra coisa recorrente. Como alguém que gostava de se expressar abertamente, Hyunjin era um quebra-cabeça que Heejin desejava resolver. Não era algo que ela queria consertar - Heejin não poderia fazer nada do tipo com ninguém - apenas alguém que ela queria entender mais.
– Mesmo se estivéssemos. – Heejin começou. – Por que todos pensam que conflitos são tão ruins? Muitas coisas boas surgem dos conflitos.
– É, acho que sim. – Hyunjin concedeu. – Não sei. Às vezes penso que, se pudesse aceitar o fato de que minha vida devia ser difícil, não teria absolutamente nenhum problema com conflitos. E ficaria feliz quando algo legal acontecesse.
– É por isso que ainda estou na faculdade. É mais fácil ter algo para lutar contra. – Heejin considerou a ideia.
Hyunjin só conseguiu cantarolar em resposta, a conversa sendo interrompida mais uma vez pelo homem. Ele as chamou, e as duas observaram enquanto ele rasgava um pedaço de papel de seu caderno e corria na direção delas.
– Tudo bem. – disse o homem, entregando o pedaço de papel. – Olhem o poema.
Hyunjin pegou de suas mãos, mas antes que ela pudesse abri-lo, Heejin pegou de volta e ofereceu ao homem.
– Pode ler para nós? – Heejin perguntou.
O homem olhou para o papel em sua mão por um momento antes de pegá-lo e desdobrá-lo. Ele estava olhando para o papel com tanta admiração, como se não fosse ele quem escreveu em primeiro lugar. Deve ser uma experiência e tanto, pensou Heejin, dar uma parte de si para completos estranhos. Provavelmente parecia estranho tê-lo devolvido a ele também.
Depois de um tempo, ele começou a ler.
– Desilusão do sonhar acordado
Cílios de Limousine.
Ah, querida, com seu lindo rosto
Derrame uma lágrima no meu corpo de vinho
Olhe para esses grandes olhos
Veja o que significa para mim
Bolos e milk shakes.
Ele soltou uma risada com a palavra.
– Sou um anjo desiludido
Sou um desfile de fantasias
Quero que saiba o que penso
Não quero que adivinhe mais
Você não sabe de onde eu vim
Nós não sabemos para onde vamos
Jogados na vida como afluentes de um rio
Fluindo rio abaixo, pegos pela corrente.
Eu te levo. Você me levará
É como poderia ser
Você não me conhece?
O homem devolveu o papel a Hyunjin, olhando para as duas enquanto dizia a última linha.
– Não me conhece até agora?
Há silêncio por um momento, e Hyunjin foi a primeira a quebrá-lo.
– Isso foi ótimo. – ela disse, pegando o pedaço de papel dobrado e enfiando-o no bolso da jaqueta - a jaqueta que Heejin estava usando no momento. Ela então pegou sua carteira, fazendo Heejin voltar aos seus sentidos. Havia um sorriso espalhado em seu rosto, e ela não pôde deixar de pensar nas palavras do homem antes. Se você acha que isso acrescenta algo à sua vida, pague-me o que quiser.
Heejin abriu o zíper de sua bolsa em busca de troco e entregou ao homem.
– Aqui. Obrigada e boa sorte.
– Obrigada. – disse o homem com um sorriso.
Eles então se separaram, com o homem contando o dinheiro em suas mãos enquanto se afastava.
– Foi maravilhoso, não? – Heejin disse, uma vez que o homem estava fora do alcance da voz. Ela olhou para Hyunjin, que parecia pensativa. Sua expressão se iluminou quando ela percebeu que Heejin estava a olhando.
– Sim, sim. Foi ótimo. – ela disse distraidamente.
Lá estava de novo. Heejin esperava que Hyunjin soubesse o quão horrível mentirosa ela era agora.
– O que foi?
– Ele não deve ter escrito aquilo agora. – Hyunjin disse, soando como se ela não tivesse certeza se Heejin estava pronta para ouvir. – Ele escreveu, mas provavelmente apenas inseriu essa palavra.
Heejin se viu soltando uma risada - parecia uma coisa de Hyunjin de se dizer. Claro, o que ela disse pode ser verdade, mas o oposto também pode ser verdade. E dada a capacidade de escolher em que acreditar, Heejin prefere acreditar no último. Não havia muito mal nisso, e o que há a perder em ter um pouco de fé?
– O que você quer dizer? – Heejin perguntou, esperando ouvir mais de seu raciocínio. Surpreendentemente, Hyunjin simplesmente levantou as mãos em sinal de rendição e disse:
– Nada. Eu amei. Foi genial. Eu me pergunto o que ele teria escrito se eu conseguisse dizer '’metido a besta’' primeiro, não?
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