Sublaqueum, ano 879 D.C
Região do Lazio, Província de Roma.
Século IX
Mosteiro Sacro Speco (San Benedetto)
Os fios negros caiam confundindo-se com o manto de igual cor. A Tonsura Petri era o que distinguia os religiosos das ordens contemplativas ou mendicantes. Não se tratava de apenas raspar o topo da cabeça, mas sim a aceitação do seu chamado espiritual, receber esta espécie de coroa indicando sua verdadeira vocação, abdicando as tentações mundanas, vivendo no regime de clausura e acatando aos cinco preceitos Beneditinos: Pobreza, Castidade, Obediência, Oração e Trabalho.
Sasuke, diferente dos demais não viveu uma vida de purificação e destinada ao clérigo, muito pelo contrário.
Vindo de uma família rica da cidade fracionada de Ardea, era dado à luxúria e promiscuidade. Detentor das melhores festas, bem como frequentador assíduo das melhores tabernas e prostíbulos locais, junto do seu irmão mais velho, Itachi Uchiha, esbanjava arrogância por onde quer que passasse; plantando inveja e colhendo muitos inimigos.
Voltava com sua cavalaria pela cadeia montanhosa de Sublaqueum, próximo ao Mosteiro de Sacro Speco, cerca de seis meses atrás. O caminho tortuoso pela floresta de carvalhos e cadeias rochosas era o mais rápido para chegar a capital Roma, onde teria de levar pessoalmente o bispo da cidade de Genzano a pedido de sua religiosa mãe. Entretanto o bispo nunca chegaria a Roma para o Terceiro Concílio com o papa Alexandre III, pois foram surpreendidos por saqueadores que roubaram e dizimaram praticamente todos, exceto Sasuke que fora encontrado quase sem vida três dias depois por Monges Beneditinos.
Ficou desacordado por sete dias sob os cuidados do Mosteiro e dado como morto para a família em Ardea.
Respirou a vida pela primeira vez naquela manhã de março, sentindo a presença divina. Foi ali, naquele momento, que sua vida de pecados se extinguiu e entendeu que Deus lhe preparava para algo maior, sem sombra de dúvidas entregou-se de bom grado e tornou-se um homem temente a Deus e aos seus desígnios.
Escreveu aos pais, certo de sua vocação, abdicou de toda e qualquer riqueza e promiscuidade, ingressando assim na vida religiosa acatando o lema: ”Ora et labora et legere” — “ Ore, Trabalhe e Leia.”.
Espalmou os fios agarrados ao escapulário negro assim que se levantou, observando a luz do sol passar pelas frestas das abóbadas de berço; era a única forma de se ter um pouco de luminosidade nos cômodos e corredores daquele imenso lugar. Em diferentes partes daquela construção de pedra e paredes grossas havia tochas com o propósito de deixar o local menos escuro e sombrio. Concentrou-se em seguir o caminho até os bancos em pedra para ajoelhar-se e agradecer a Deus até que a cerimônia de aceitação fosse findada, pois assim como ele mais treze novos irmãos fariam parte da ordem beneditina.
Reuniram-se no imenso salão comunal para a ceia que aconteceu no mais absoluto silêncio após as preces de graças dirigida pelo abade Hidan, responsável por toda Ordem. Sasuke sentia-se em paz e útil como nunca em sua vida.
[...]
Terminava o manuscrito solicitado pelo irmão Kakashi, segundo abade mais velho na hierarquia Monástica. Sasuke como copista deveria escrever bem apertado já que os pergaminhos eram caros mesmo sendo fornecidos por Roma. Nem notou quando o irmão Gaara adentrou o cave sagrado, aguardando pacientemente que Sasuke terminasse sua rotina como copista. Sasuke enrolou o pergaminho fazendo uma breve oração e guardando na cúpula feita dentro das rochas. Afastou-se arregalando os olhos diante da figura estagnada.
— Bom dia irmão, Sasuke! Hora das atividades da manhã. — Gaara pausou com seu semblante tranquilo. — Irmão Hidan pediu para que eu viesse comunicá-lo de seus ofícios.
Sasuke meneou a cabeça, tinha apreço ao jovem colega por ter sido o primeiro a estabelecer um diálogo e por consequência do próprio ter sido responsável por sua introdução na vida religiosa. Gaara quem cuidou dos seus ferimentos quando fora resgatado e desde então mantinham essa relação de cumplicidade.
Sasuke havia se acostumado com a vida diária no Sacro Speco e gostava daquela ambiente de quietude e obrigações, apesar de viverem em regime de claustro, o que para o Sasuke de antes seria como a morte, mas o de hoje agradecia a distância que tinha do mundo lá fora, repleto de desgraças e sodomia. Saiam apenas se houvesse necessidade, e mediante as tarefas designadas, mas para os monástas quanto mais tempo estivesse nos Sagrados Caves, orando e estudando, melhor.
Desceram até a imensa floresta para buscar a água riacho abaixo. Trocavam amenidades sobre a missa dirigida pelo sumo sacerdote vindo de Roma, Don Francesco Appilari, quando Sasuke parou abruptamente ouvindo sussurros e gemidos. Estranhou encarando Gaara que assentiu mediante a desconfiança do Uchiha.
Caminharam lentamente ajeitando suas vestes, preocupados com o que os esperava, engoliu seco ao observar na beira do riacho um corpo estirado com marcas de sangue e agressões. Aproximou-se encarando o Sabaku, puxou lentamente o corpo para que não engolisse a água já que a correnteza começava a subir tocando o pulso do homem para verificar se ainda havia indícios de sua pulsação.
— Deus. — Sasuke exclamou quando sentiu seu pulso ser segurado com demasiada força pelo homem de cabelos castanhos e olhos peculiarmente acinzentados, indicando não pertencer àquelas terras. Encarou-o, tentando assimilar o que seus lábios pronunciavam fracamente.
“Tywyll a dwfn yw dechrau pob peth,
ond nid eich pen.”
A voz fraca reverberou em um dialeto desconhecido para o jovem monge copista. Sasuke encarou Gaara que deu de ombros. Observou os trajes do homem, buscando alguma similaridade com as tribos ao norte ou sul de Lazio, mas era apenas um homem trajando as típicas togas da província de Roma.
— Consegue me ouvir? — Sasuke proferiu ao notar que o homem fechara os olhos. — Consegue me entender?
— Irmão Sasuke ele está com ferimento grave no abdômen, acredito que não sobreviva mais de um dia. — Sasuke o encarou, pondo as mãos no ferimento para tentar conter o sangue.
— Irmão Gaara, o que seria do seu povo sem o Altíssimo? Já dizia o profeta Habacuque capítulo dois, versículo quatro — “Eis o soberbo! Sua alma não é reta nele, mas o justo viverá pela fé”. — Tenhamos mais fé em nosso Deus. — Gaara empertigou e apenas meneou a cabeça. — Agora vamos, me ajude a levá-lo para dentro.
Fizeram todo o trajeto com cautela, pois o caminho até o mosteiro era repleto de rochedos íngremes, uma sensação de enforcamento para os que viam de fora aquela imensidão rochosa.
Passaram pela pintura da Madona e sua criança no hall principal, indo de encontro à caverna dos pastores onde Kakashi ensinava um pouco mais sobre a doutrina cristã. Encarou o grupo de monges dispostos em plena oração, tão concentrados que nem notavam a presença deles na entrada do cave. Irmão Hidan que chegava espantou-se com a cena indo ao auxílio.
— Onde o encontraram? — indagou preocupado.
— Perto do riacho, irmão. — Gaara respondeu. — Foi irmão Sasuke que o avistou, ele balbuciou algumas palavras e desmaiou. — Hidan encarou Sasuke que apenas afirmou com um gesto simples. — Bem, vamos levá-lo ao dormitório, prestaremos os devidos socorros e depois pedirei a Kakashi que venha ter com ele a palavra. — Hidan correu os olhos entre os dois. — Lembrando em manter no absoluto siulêncio, não conhecemos o forasteiro e como sabemos há muito interessados nos segredos por trás desses muros. — Sasuke estranhou a postura de Hidan, não contestou tal atitude, em respeito aos preceitos de obediência e a hierarquia, mas sentiu-se tentado a fazer.
Em suma, acreditava na bondade e caridade independente de quem quer que fosse e foi justamente isso que o incomodou, afinal Hidan havia julgado um ser humano sem realmente saber o que tinha ocorrido, e o pior de tudo um enfermo debilitado que não tinha a menor chance de defesa.
[...]
Na segunda noite de cuidados, Sasuke notou uma melhora significativa no homem constatando que a febre cedera. Ficou responsável por todos os cuidados destinados ao tal desconhecido juntamente com Gaara, que revezava as acolhidas.
— Sede... — foi a primeira palavra que o monge conseguiu entender, porque o tal homem dissera num latim tão perfeito quanto o dele. Encheu um copo generoso com água fresca armazenada na moringa de barro, auxiliando-o a beber todo o conteúdo. O homem engasgou tossindo repetidas vezes.
— Devagar. — Sasuke proferiu, ganhando a atenção do enfermo que assentiu respirando com dificuldade. Sua expressão era de dor, mas não desgrudava os olhos de Sasuke, parecia lê-lo de alguma forma.
— Me chamo... — ele pausou, colocando mão sob o abdômen. — Neji. — retirou sua mão, estendendo a dele para apertar a de Sasuke. O monge o encarou.
— Vou refazer seu curativo. — apenas proferiu sem dar muita atenção. — Dói? — indagou pressionando a ferida e recebendo um arfar em resposta. Ainda estava muito inflamada e se continuasse assim não restaria mesmo muito tempo de vida. Aquele fato era o que chamavam de visita da saúde, a melhora que antecede a morte.
— Eu vou morrer. — o homem afirmou, ganhando a atenção de Sasuke. — Eu sei que sim. Sabia quando vim para Roma e também sabia que outro continuaria a minha missão, um homem temente a Deus. — Neji o encarou. — Posso ver isso em você, essa sede por conhecimento e descobertas, seu lugar não é aqui, apesar de ter sido necessário que estivesse aqui para que nossos caminhos se cruzassem.
— Está devaneando. — Sasuke enfatizou, limpando a ferida, mas com o coração apertado diante de tudo que era dito por Neji. — Vou terminar de limpar sua ferida e trazer-lhe algumas providências. — o monge disse e finalizou o curativo. — Fique quieto e não fale mais asneiras ou alguém poderá ouvi-lo. — Neji riu amargo.
— Você ainda não me disse seu nome. — Neji pediu mais uma vez.
— Me chamo Sasuke, irmão Sasuke. — suspirou por fim.
— Muito bem Sasuke, escute o que lhe direi, quando você voltar não estarei mais neste plano e como sei? — ele parou, estreitando seus orbes cinzas para o monge. — Era meu destino quando desembarquei em um navio na Toscana. — Sasuke arregalou os olhos. — Tudo o que você precisa saber está dentro do tronco no grande carvalho depois do rio. — Neji tossiu uma placa de sangue. — Preciso que você pegue o que está lá e me prometa que não deixará ninguém tomar posse daquilo. — encarou Sasuke seriamente. — Ali está todo o propósito de vidas, Sasuke. Ali pode ser a destruição do que você entende por sua fé. — Neji trincou a mandíbula levando as mãos no ferimento que emanou sangue.
Sasuke correu ainda sob o efeito das afirmações vinda daquele misterioso homem, preocupado viu que Neji apresentava um quadro crônico de hemorragia, o encarou tocando a ferida, mas foi contido.
— Me prometa, Sasuke. — encarou-o, implorando mais uma vez ao monge. — Eu sei que você é o propósito de tudo isso, eu vi seu manto negro nos sonhos e esse olhar dúbio de homem que já fora do mundo, que pertence a ele e que já esteve diante da morte.
— Prometo. — proferiu diante do desespero daquelas palavras que o atingiram em seu âmago, impressionado de fato com o que ele dissera e sabia sobre si. Talvez fosse um bruxo ou um demônio testando sua vocação, ele não sabia ao certo, mas aquele olhar lhe transmitia algo beirando ao místico.
Nem notou quando Gaara entrara, o monge de olhos claros era silencioso, isso era um fato, mas esse tipo de conduta sempre a espreita como se estivesse o vigiando tinha se tornado muito incômodo.
— Irmão Gaara. — a voz grave de Sasuke ecoou — Algum problema? — indagou.
— Não apenas vim me certificar se precisa de algo. — voltou seus orbes na direção de Neji e arqueou a sobrancelha. — Já comunicou ao abade que o viajante acordou? — Gaara encarou os dois e notou Neji cerrar os olhos.
— Na verdade estava indo fazer isso neste momento e pegar mais faixas para tentar estancar os ferimentos. — Sasuke levantou-se. — Pode cuidar dele enquanto faço isso? — Sasuke inquiriu à Gaara, que apenas assentiu.
O Monge caminhou apressado até o cave onde Kakashi se recolhia, mas não o encontrou, precisava contar-lhe sobre o que ouvira e rogava aos céus que ele acreditasse.
Caminhou pelos escuros corredores onde só o vento e seus sussurros podiam ser ouvidos, há essas horas a grande maioria dos monges já haviam se recolhido em seus dormitórios.
Quando tomou o corredor que levava ao dormitório em que Neji estava hospedado, percebeu vozes e as silhuetas iluminadas pelas tochas, ao adentrar o quarto se impressionou com Kakashi, Hidan, Gaara e o sumo sacerdote que dava a extrema unção no homem de cabelos castanhos. Ouviu o último suspiro de Neji e estranhou uma cruz verde reluzir bem na testa do rapaz e desaparecer em seguida. Piscou aturdido, mas sem desviar os orbes do local.
— Irmão Sasuke? — a voz do abade Kakashi inquiriu, chamando a atenção do monge. — Infelizmente o jovem não resistiu. — ele pausou se aproximando. — Irmão Gaara me disse que o rapaz estava falando com você assim que ele entrou no dormitório, o que conversavam?
Kakashi parecia interessado e até mesmo receoso, o que fez Sasuke repensar sobre o que falaria. Todos estavam estranhos desde que Neji fora encontrado e trazido para as dependências do mosteiro, preferiu investigar por si só pedindo perdão a Deus por mentir ao prosseguir o que seu coração lhe determinou.
— Balbuciou um idioma desconhecido e depois fechou os olhos, acredito que tudo tenha sido fruto dos delírios acometidos pelo estado febril. — encarou os demais. — Agora se me dão licença, prepararei as fossas e pedirei que o irmão Joseph faça o invólucro. — Sasuke se retirou rapidamente, sentindo o coração palpitar, mas em seu íntimo sabia que algo de muito estranho pairava no ar.
Dormir aquela noite tornou-se uma tarefa muito difícil para o jovem monge, toda vez que fechava seus olhos a figura de Neji aparecia lembrando-o de sua promessa. Todas aquelas coisas que ele lhe disse, o fato do Sacro Speco estar com um ar mais sombrio, as divagações de Kakashi só lhe fizeram ter a certeza que lhe escondiam algo.
Colocou o escapulário e o capuz, aproveitando da camuflagem natural que suas roupas faziam de acordo com a escuridão das dependências do Sacro Speco. Passou pelas portas de madeira sendo açoitado pelo vento frio da madrugada. Optou pelo caminho por entre as rochas, por achar mais seguro e de rápido acesso a floresta. A mata era densa depois do riacho, além é claro da pouca iluminação, dificultando chegar até seu destino. Não podia deixar amanhecer, pois a quantidade de pessoas transitando nas dependências do Mosteiro pela manhã era bem maior. Já cansado e sentindo o suor pender de sua face avistou o grande carvalho no coração da floresta, apalpou toda extensão dando de cara com um vão mínimo enfiou a mão puxando um pequeno frasco, alguns pergaminhos e uma espécie de livro com capa de couro de algum animal. Tateou mais o lugar que agora jazia vazio.
Retornou rapidamente, escondendo os pergaminhos, o livro e o frasco dentro do seu manto negro, constatando que realmente Neji estava falando a verdade. Assim que pisou no pátio central tomou a entrada pela Capela de Nossa Senhora, rumando direto aos corredores de seus aposentos. Fechou a porta de madeira encostando-se a ela e deslizou seu corpo até embaixo, agradecendo a Deus por ter chegado são e salvo. Retirou o frasco e os pergaminhos guardando por dentro do colchão de feno, estudaria o conteúdo do material após os afazeres do dia, principalmente para não levantar suspeitas.
O dia transcorreu tranquilo mesmo que o monge não conseguisse se concentrar. Estava muito disperso e o receio de alguém ter percebido só o preocupava ainda mais. Após o jantar se recolheu em seu quarto, levando consigo uma candeia de sebo de carneiro, o que levantou especulações que foram sanadas já que o próprio era um copista e estava sempre atolado de afazeres religiosos.
Assim que entrou no cômodo fechou a porta, colocando a candeia acesa em cima do banco de madeira talhada próximo a cama. Sentou-se sentindo o odor forte da candeia, que era um pouco disperso pela brisa que adentrava a pequena janela no alto da parede. Puxou o pequeno frasco transparente com um líquido rubro que lembrava a sangue vivo.
Sasuke engoliu seco analisando-o. Logo em seguida colocou o frasco sobre a cama e pegou os pergaminhos. Assim que abriu o primeiro notou uma grafia forte e um dialeto que não compreendia, eram anotações embaralhadas e cheias de símbolos. Abriu o segundo e encontrou algo mais legível, ali tinham palavras em Latim, Etrusco, Grego e algo como Aramaico. Sasuke conhecia algumas dessas línguas, principalmente o Aramaico por ser um dialeto presente em algumas escrituras antigas e como copista tinha acesso à maioria.
Rolou os olhos até o final da folha, encarando os dizeres anotados algo similar a do primeiro pergaminho. Mas o que chamou sua atenção foi a tradução ao lado do que parecia uma frase.
— Tywyll a dwfn yw dechrau pob peth, ond nid eich pen. — leu se assustando com o som de sua voz, era exatamente o que Neji proferira quando ele o encontrou. Observou ao lado a escrita traduzida num perfeito Latim. — “Escuro e nebuloso é o início de todas as coisas, mas não o seu fim.” — sentiu como se já tivesse lido isso antes. Mas onde?
Fixou seus orbes negros na caligrafia desenhada tentando absorver onde de fato tinha lido aquilo, mas nada lhe vinha à mente. Cerrou os olhos suspirando e tendo a certeza que estava entrando num caminho sem volta, mas não pensava em retornar tinha chegado tão longe para desistir, e foi com esse pensamento que mergulhou naqueles pergaminhos estudando cada traço, cada letra, cada ponto.
[...]
O tempo nos claustros era medido através do toque dos sinos e das horas canônicas algo adotado desde o Elucidarium, uma espécie de manual para o Clero escrito por um teólogo de estilo escolástico chamado Honorius Augustodunensis. Era comum para os monges nem sentir o tempo passar e ainda mais para Sasuke que se mantinha empenhado em desvendar os segredos daqueles manuscritos.
O verão chegava ao fim e com ele as primeiras folhas de carvalho formavam um arco na copa das árvores indicando que o outono iniciara. A província de Roma sofria com uma epidemia estranha que assolava a população, até agora eram 35 casos e 18 mortes no total. Os enfermos eram destinados aos mosteiros e boa parte estava instalada no Sacro Speco. Essa doença eram associada pelo Clero como castigo divino. Para a Igreja toda pessoa acometida pela doença tinha algum pecado oculto e hediondo, cabendo à justiça divina a cobrança.
Sasuke revezava entre cuidar dos doentes e estudar os pergaminhos. Até o momento, tudo o que o monge havia compreendido naquele emaranhado de caligrafias e símbolos era algo sobre o povo Celta e uma prática conhecida há milênios como Alquimia, diretamente relacionada ao Santo Graal e uma pedra cuja comparação em demasia a Última Ceia de Jesus com os apóstolos. Puro misticismo que estava deixando o monge sem saída.
Certa tarde retornando da Véspera, direcionou-se ao cave litúrgico procurando alguns manuscritos de antigos monges do Sacro Speco. Ele bem se lembrava de ter lido algo relacionado à Alexandria, o Reduto dos Alquimistas. Buscou nas cúpulas mais antigas datadas por símbolos cristãos e algarismos romanos.
Sentiu uma dor crônica no abdômen seguido da costumeira tosse seca que o acometia há umas semanas, pôs as mãos sobre os lábios sentindo o gosto de ferrugem. Expeliu uma grande quantidade de sangue pelo nariz e boca. Estagnou limpando o canto dos lábios e as mãos no manto negro. Respirou fundo entendendo o que realmente acontecia, estava doente.
Abriu o pergaminho e passou a fazer as anotações se espantando a cada linha escrita. De acordo com o monge Nicolai, havia uma busca incansável por um elixir cujo apenas algumas gotas eram a cura e restauração do espírito. Havia relatos de outros povos, como os amarelos e celtas, algo sobre magia e ciência, tudo muito difuso e complexo. Finalizou anotando o que foi interessante e retornou para seus aposentos, estava com a respiração enfadada desejando repousar um pouco.
— Irmão Gaara? — assustou-se com a presença de Gaara saindo do seu aposento. — O que faz no meu quarto? Posso lhe ajudar? — indagou, tentando não demonstrar irritação, Gaara estava se tornando cada vez mais invasivo.
— Dei sua falta na ceia, e vim a pedido do irmão Kakashi averiguar se estava tudo bem, já que o irmão teve muito contato com os doentes…
— Estou ótimo. — Sasuke o cortou. — Estou jejuando pelos enfermos. — o monge proferiu mais uma mentira, notando que aquilo já virara hábito que adquirira junto a sua obsessão por conhecimento. — Agora vou repousar um pouco, com licença irmão. — passou pelo Sabaku sem esperar uma resposta positiva e fechou a porta.
Correu até a pedra falsa acoplada na parede e verificou tudo ali, buscando seus pergaminhos, o frasco e bem como o diário de Neji com algumas partes traduzidas. Suspirou constatando que nada fora tirado do lugar ou revirado, teria de buscar outro esconderijo para suas pesquisas. Deitou-se ainda com o frasco e o diário de Neji nas mãos absorto em pensamentos quando um lampejo rompeu seus devaneios. Elevou o corpo sentando-se sobre as pernas, abrindo as suas recentes anotações. Rolou os olhos sobre as letras e símbolos pairando sobre a parte grafada Elixir e Cura.
Se ele estivesse certo Neji havia descoberto o elixir da cura feito a partir da tal pedra filosofal, que os antigos afirmavam não ter forma distinta. Encarou o frasco e tossiu mais uma vez, apertando-o até os nós dos dedos ficarem brancos. Talvez… Pausou ponderando. Abriu o frasco sentindo o odor forte que fez arder seus olhos, não conseguia distinguir, mas considerou ser o pior cheiro que já sentira. Cerrou os olhos refletindo no seguinte passo, se toda aquela loucura fosse verdade, ele poderia ajudar muitas pessoas com suas enfermidades incuráveis. Sorveu três gotas do líquido de sabor salobro.
De repente um zumbido atingiu seus ouvidos e um calor tomou seu corpo de modo alucinógeno. Rasgou o manto, expondo todo o corpo alvo na esperança de aplacar tal sensação. O ar tornou-se denso e difícil de respirar e uma dor dilacerante fez seu coração palpitar. Cambaleou até a cama esbarrando no diário de Neji, que caiu no chão aberto ao seu lado. Sasuke ainda com a visão turva leu na caligrafia desenhada de Neji
— Immortalitatis. — sussurrou antes de se render a escuridão.
[...]
O cheiro forte de podre adentrou suas narinas, o monge elevou os braços aos olhos sentindo o peso das correntes. Assustado sentou, encarando o local nunca visitado, mas muito conhecido. Os gritos de agonia dos presos por prática de heresia eram ouvidos e um tormento para sua sanidade. Aproximou-se das barras de sua cela clamando por atenção. Sentou-se juntando as mãos, orando a seu Deus que intercedesse por ele.
O tempo passava e Sasuke tinha mais certeza de que haviam descoberto sobre os pergaminhos. Pouco antes do final da noite a presença de Gaara o fez ficar em alerta. Levantou-se na certeza de ver um rosto amigo.
— Irmão Gaara! — em seu rosto o alívio pairou. — Me ajude... Eu não entendo…
— Não entende mesmo, irmão Sasuke? — Gaara esboçou um sorriso irônico. — Destacou-se tanto a ponto de se tornar copista do Sacro Speco, obediente e caridoso, abriu mão de uma vida de luxos e sodomia, um exemplo a ser seguido. — Gaara concluiu. — Tudo o que fazia era ofuscado por você, se eu fizesse qualquer manuscrito, os seus eram de destaque por sua clareza e dom de profetizar. — Sasuke encarou perplexo. — Fui eu, Sasuke, eu quem o denunciou, você é tão transparente que eu percebi que havia algo errado.
— Por quê? — Sasuke soltou um sussurro. — Porque tanta inveja e tanto ódio, somos irmãos...
— Não. — ele pausou, aproximando-se da grade. — Não tenho um irmão sujo como você, um herege que vai contra a vontade de Deus! Quando Irmão Hidan me procurou para informar sobre o forasteiro, que o tal homem era da Ordem Alquimista e havia fugido de Roma com uma coisa muito importante, eu simplesmente passei a sondá-lo e vi o quanto você e sua bondade enfadonha estavam sempre presentes. Passei a desconfiar quando os peguei aos sussurros antes de sua morte, que sinto lhe informar que de natural não teve absolutamente nada. — ele riu ardiloso.
— Você matou Neji? — Sasuke soltou abismado com aquela confissão.
— Bom entenda como quiser, ele se negou a dizer onde estava o elixir, então fiz o que me foi solicitado em nome de Deus. — ele encarou Sasuke com puro cinismo.
— Não justifique sua inveja e cobiça em nome do senhor. — esbravejou Sasuke.
— Disse o homem que queria brincar de ser Deus. — riu com desgosto a cada palavra proferida. — Achei as anotações do diário daquele herege quando entrei no seu quarto e o encontrei caído, entreguei tudo a Kakashi e Hidan que me parabenizaram! Você está olhando para o novo copista e quanto a você, apenas mais um herege condenado à morte! — olhou-o com desdém. — E sua família manchada por um homem como você!
— Não fale da minha família, seu abutre! — rosnou contra a grade.
— O que vai fazer Sasuke? — ele riu. — Há essa hora a bela família Uchiha está sendo interrogada pela Santa Inquisição, e você imagina o que acontece aos Hereges… — Gaara soltou uma risada alta se afastando.
— Gaara! Minha família não! — Sasuke berrava a plenos pulmões, vendo o ruivo se afastar. Sentiu seus olhos flamejarem e uma dor latente na parte frontal da cabeça. Cerrou-os e os abriu no mesmo instante, seus orbes que foram tomados pelo tom escarlate acometendo-o por visões límpidas.
Viu como Gaara o encontrou. O complô contra ele. O elixir nas mãos de Hidan. O pacto entre os três. O esconderijo que usaram para guardar todo material inclusive o frasco. Finalizando no rosto apavorado de sua mãe ao se deparar com a Santa Inquisição. Caiu levando as mãos aos olhos, perplexo.
— Deus, no que eu me tornei? — gritou desesperado.
Durante o outono inteiro, foi açoitado, amordaçado, queimado, torturado, mas manteve seu voto de silêncio tanto que foi condenado à fogueira como praticante do ocultismo. Estranhamente seu corpo reagia cada dia mais forte, mesmo privado de alimentação, seus machucados cicatrizavam com uma rapidez absurda, além dos sintomas da doença sumirem por completo. A palavra imortalidade ainda beirava sua mente mais nítida e palpável agora. Se fosse verdade, ele voltaria e faria todos pagarem por seus atos.
O solstício de inverno iniciou e com ele a imensa fogueira em Ardea foi montada em praça pública, Sasuke como castigo seria queimado com os pais, já o irmão mais velho seria crucificado ao entardecer para servir de exemplo aos que pecam contra as vontades de Deus.
Viu o momento em que o veredito dado pelo sumo sacerdote ressoou em meio à multidão e as labaredas tomaram seu corpo e o de seus pais. Ouvia nitidamente os gritos de Fugaku, e o lamento de sua mãe. Algo que nunca mais esqueceria. Ainda em chamas jurou vingança a todos aqueles que tramaram, desejando ele mesmo lhe causar todas as dores, venderia sua alma ou o resto dela ao demônio se fosse preciso. Dominado pelo rancor e o ódio cerrou os olhos abraçando a acolhedora escuridão ainda podendo ouvir a voz de Neji sussurrar em seu ouvido.
Esse não é seu fim, Sasuke.
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