História Blue - Estrela da Manhã

"O Estrela da manhã é o melhor lugar para aquela criança que não se encaixa na vida exemplar das famílias da nossa nação. Um lugar confortável, que sabe a melhor maneira de ensinar disciplina, respeito e bom comportamento para os estudantes que aqui residem. 
Nós contamos com uma ampla equipe que trabalha de forma interdisciplinar para oferecer a melhor educação,  sempre priorizando o carinho e a simpatia como ferramentas de ensino... Afinal,  a mão educadora é  aquela com a qual se pode contar para te tirar do abismo,  não aquela que te oprime.
Nossas acomodações são de primeira qualidade: quartos duplos em pavilhões separados para ambos os sexos,  salas de aula climatizadas,  espaços culturais, salas de estudos.... "

(…)
Esse era o único comercial que passava na pequena tela  da cabine do trem.  Eu podia recitá-lo de cor, após quatro horas de viagem,  mas duvidava que o colégio fosse  tão pacífico e cheio de boa vontade.  Nós, que estávamos viajando de tão longe para lá estudar,  éramos nada mais que pessoas que a sociedade queria remoldar...  Ou,  em alguns casos como o meu,  apenas fingir que não existia. 

O dia estava amanhecendo.  Da janela da pequena cabine daquele trem,  a paisagem era tão diferente que, aos meus olhos, nem parecia mais pertencer ao mesmo país. Meus companheiros de viagem, que nem fiz questão de saber os nomes, estavam dormindo,  então,  por alguns momentos, tive aquela vista deslumbrante só para mim e tentei registrar no caderno que ganhei para as aulas de artes. 

Era inverno  e, tudo que se podia ver era um mar de neve e árvores mortas,  com um céu roseado no fundo.  Em algumas regiões,  o solo, teimoso,  contrariava o clima tão ameno e produzia flores pequeninas e coloridas...  Pequenos pontos de vida e alegria naquele cenário monocromático invernal.  Eram como os poetas andarilhos recitando poesias épicas às crianças do subúrbio,  ou mesmo encontrar um livro naquele mundo decadentemente digital. 
(…)

Após mais algumas horas,  chegamos na estação final, localizada dentro do campus do Estrela do amanhã. Eu podia sentir minha barriga roncar,  mas o único lanche que deram fora no início da viagem,  e tudo ali parecia caro demais para eu gastar o pouco dinheiro que tinha.  

Após pegar minha mala e a mochila,  desci do trem,  olhando em volta.  Era enorme...  Somente a estação parecia ser maior que todos os lugares que vivi juntos.   Tudo era muito claro,  e havia telas interativas para todos os lados,  passando comerciais educativos e anúncios da diretoria. 
-hey, menina.  Seu cartão estudantil -um homem nervoso me puxou pelo braço.  Desajeitada,  peguei o cartão e entreguei a ele.  Ele fez uma careta,  apontado para uma fila  pequena de pessoas mais a esquerda.  -você vai com eles. 

Eu apenas assenti. Não precisava perguntar,  sabia desde pequena sobre como era feita a divisão de pessoas.  Primeiro, os com sobrenomes importantes,  segundo,  os com sobrenomes comuns,  e, por último, aqueles sem nenhum nome… Eu estava entre esses e, além de mim,  somente três alunos estavam naquela fila. 
- I05991e,  senhora -disse à mulher,quando chegou minha vez.  Ela pegou o meu cartão  e logo me escaneou.  
-olhe para a tela.  -assim que fiz como ela mandou,  um avatar digital meu apareceu na tela.  Era exatamente como eu e, logo abaixo, havia um saldo negativo. -Como seu patrocinador não depositou nada, apenas a mensalidade,  o custo da viagem foi debitada no seu salto vitae.  Com esse saldo,  você fará tudo aqui.  O dinheiro externo não tem valor.  A cada atitude exemplar,  um determinado valor é depositado,  a cada atitude indisciplinada,  um valor é descontado.  Alimentação,  higiene e qualquer suprimento que necessite também poderá ser comprado com seu vitae.  O E.M oferece uma refeição diária para alunos com saldo negativo e 3min de banho sem aquecimento.  Alguma pergunta? 

Eu a olhei espantada.  Como eu já podia chegar ali sem direito a nada?  Como a viagem que me obrigaram a fazer poderia ser descontada de mim? 

-Não, senhora-baixei a cabeça.  Ela me entregou um kit básico de higiene e me mandou seguir com os outros alunos.  Como sempre,  eu era como um nada em meio aos outros e, de alguma forma,  preferia ser assim. 

Andava de cabeça baixa,  seguindo pelos túneis subterrâneos até o primeiro andar do prédio principal.  Haviam nos dado um mapa de como chegar nos quartos e nos auditórios onde seriamos apresentados aos professores no anoitecer. Eu estava meio perdida,  por isso peguei o mapa. Assim que dei o primeiro passo,  trombei em algo,  derrubando minha mochila,  o mapa e alguns livros da outra pessoa, além de algo quente, provavelmente café, que fez minha pele arder. 
-Desculpa!  Desculpa! - disse, já me abaixando para pegar os livros. 
-Essas crianças, já insolentes e nem chegaram ainda! Não olha para onde anda, menina?  -o senhor dizia, bravo.  Ele era da minha altura, por volta de 1,60, baixo para um homem adulto. Tinha cabelos cinzas, assim como o bigode,  e uma barriga enorme. 
-Calma,  Gaspar.  A menina não fez de propósito, não é mesmo? -uma voz suave se abaixou para me ajudar. Ele tinha pernas compridas e um tom gentil e jovial. 
-Sim, senhor...  Quer dizer, não senhor... Não foi de propósito -disse, sem coragem de erguer o olhar novamente para ver quem estava me ajudando. 
Ele pegou os livros de minha mão, dando para o outro homem e logo me devolveu o meu caderno.
-Você tem um bom material aí,  acho que fará bem em pegar disciplinas artísticas. 
-Obrigada... Eu preciso ir. Me desculpem novamente… até…
-Menina, vá cuidar do seu braço- o de voz áspera disse,quase me xingando,  mas não entendi no momento.  Apenas fugi deles,  demorando bastante para encontrar o meu quarto. 

Somente quando cheguei lá que vi sobre o que ele estava falando.  O meu braço estava vermelho onde o café caiu...  Mas não devia ser nada demais. 

Eu já estava atrasada para as apresentações.