História Blue - O armário esportivo

Os primeiros dias naquele lugar não haviam sido fáceis.  Além do corpo docente extremamente rígido e impiedoso,  havia a questão social.  Alguns, com uma boa família (seus patrocinadores)  conseguiam ter certos privilégios, sem precisar se esforçar muito para ter do bom e do melhor; outros,  como eu,  já haviam chegado ali endividados,  e,  nem mesmo entrando em vários clubes,  participando de atividades extra curriculares e tirando boas notas,  poderiam ter metade daquilo. 

O despertador tocou de madrugada,  me fazendo querer estar morta,  naquele momento. A menina que dividia quarto comigo, auto intitulada Camille, reclamou, como fazia todas as manhãs, mas logo voltou a dormir.  Ela era como eu, sem um nome de batismo,  mas com sua simpatia e boa lábia já havia feito amizades por todo o internato...   E até recebia visitas noturnas,  além de uma ajuda de seus novos amigos riquinhos. 

Eu, ao contrário,  estava apenas me concentrando em fazer o máximo de atividades possíveis.  Se fosse bem em todas, pelos meus cálculos,  no final do mês já teria quitado minha dívida e poderia ter,além de água quente para o banho,  ao menos três refeições diárias. 

(…)
Me levantei e, após  sair do quarto, fui até o banheiro, no último último andar do prédio de dormitórios femininos. O banheiro ocupava o andar inteiro e era dividido em três partes: os chuveiros,  os armários e o vestiário. 
Como só  podíamos vestir uniformes,  o armário não era grande e nele havia espaço para dois uniformes básicos, dois de esportes e um casaco para os dias de neve. O meu era perto da área dos chuveiros,  estava um pouco enferrujado, mas tinha a vantagem de eu não ter de andar até o vestiário para me trocar. 

-Bom dia,  Io5991e,  como vai seu dia?  -Ash,  meu amigo virtual, disse,  assim que desbloqueei a porta do armário com minha digital. Na parte interior da porta,  a tela se acendeu  e pude ver o rosto que eu criei para ele, sorridente. 
-Uma merda-respondi,  pegando minhas roupas.
- Você gostaria de ver seu planejamento diário? Ou ouvir uma música durante o banho? 
-Quanto vai me custar a música? 
- 5vitae. Você pode recuperar isso com mais meia hora de corrida. 
-Certo. -disse e fechei a porta,  indo para um dos chuveiros. Eu poderia dizer que ele era a pessoa que eu mais "conversara" desde que entrei ali. 

 Após meu banho rápido e frio,  fui me vestir. O uniforme era uma espécie de macacão estilo prisioneiro,  vermelho, para as meninas e azul, para os meninos.  Era quetinho, mas nada bonito. 
Coloquei minha pulseira digital e fui ouvindo o restante da música, enquanto andava em direção ao ginásio esportivo.  
Como era muito cedo, não havia ninguém ali e era uma boa hora para me exercitar e ganhar um pouco mais de vitae.  Exercícios físicos e de nível tecnológico eram os que mais valiam vitae,  por isso estava matriculada em muitos deles.

Estava pronta para ligar a esteira,quando ouvi um barulho vindo do armário. Aquilo era estranho,  ninguém ficava ali naquele horário. 
Peguei um taco de basebol e andei devagar até lá,  pronta para bater em quem quer que estivesse ali... Ou o que. 
-não seja um fantasma... Não seja um fantasma -eu repetia,  um tanto apavorada. 

Assim que entrei,  vi duas sombras se movendo, muito próximas, e logo usei o taco  com toda a minha força,  acertando em algo e logo ouvindo um grito.  Eu gritei junto, creio,  e, por um momento depois,  o silêncio pairou sob o cômodo escuro e uma voz feminina começou a gritar um nome, desesperada. 
-Theo!  Theo! Você acertou ele, sua idiota! 
Acendi a luz rapidamente,  olhando as duas figuras.  Havia uma menina seminua,  desesperada e um rapaz caído no chão.  Ele estava inconsciente devido ao golpe direto na cabeça. 
-oh, merda -eu disse,  com os olhos arregalados. Aquilo ia ser ruim para todos nós. 
-olha o que você fez!  -a menina falou, meio histérica, passando a mão nos longos cachos  dourados e pegando o macacão do chão,  começando a vestí-lo.  -Quem é você?  O que está fazendo aqui? 
-Isso não importa.  Precisamos  levar ele para a enfermaria. -comecei a ajeitar o macacão dele, que estava aberto em toda parte de cima. 
- Tira as mãos dele!.. Enfermaria?  Não, não podem saber de nós...  O Bradley vai me matar!
-Bradley?  Não era Theo?! 
- idiota,  meu namorado... Ele não pode saber que estava com esse aí. 
-oh... 
-Além de isso manchar meu currículo! 
-oh,  você é nojenta-eu disse, irritada -Sai logo daqui, ou eu mesma direi para esse Brad qualquer coisa. 

A menina saiu, ainda me xingando. Suspirei.  Ela estava certa,  isso seria bem ruim pro currículo, tanto deles, que estavam quase se comendo ali,  quanto pro meu, que agredi alguém. 
Terminei de fechar o macacão dele e suspirei.  Não podia o deixar ali. 

Sentei no chão,  com vontade de chorar e comecei a pensar em como o levaria até a enfermaria. 
- Você não deve ser tão pesado- eu disse, por fim, grunhindo.  Ele era magro, bem alto e tinha uma estrutura não muito atlética, embora seu corpo fosse bem definido e proporcional.

 Me posicionei atrás dele e, após me levantar, tentei o puxar pelos ombros.  O arrastei por poucos centímetros, até que vi seu rosto se contorcer num sorriso e as mãos dele agarraram meus braços, me puxando para perto e me fazendo ajoelhar no chão,  com o rosto bem próximo ao dele. 

Wait...  We are Spiderman and Mary Jane or what? 

O olhei de perto, sentindo a respiração dele no meu rosto.  Tentei mudar de posição, mas os braços dele em minhas costas me impediram. 
-Você  tem belos olhos,  menina que tentou me matar-ele disse baixo,  grunhindo após mexer a cabeça -e uma boa mão -disse de forma sugestiva, com um sorriso de canto de lábios. 

Ele me parecia familiar.  Eu não reconhecia os traços gentis do rosto dele, mas sabia que já tinha ouvido aquela voz. Será que era de alguma turma que eu fazia aula?  Duvido. Parecia ser mais velho que eu. De onde, então? 

- Me solta! Você tem de ir à enfermaria!  -reclamei,  me mexendo,  tentando disfarçar minhas bochechas rubras. 
- Você acha? - ele riu, me derrubando de vez no chão e engatinhando rapidamente para me prender sob o seu corpo - Uma caloura atrapalha meu encontro e me bate…hm, acho que ela deve ao menos mostrar um pouco de...  Caridade, não acha?  -ele disse, roçando os lábios nos meus.  O cabelo ondulado dele caia em cascatas em volta do meu rosto e a cor negra do mesmo fazia um belo contraste em sua pele  olivada. 
- o... O que?!- eu disse exasperada,  tentando me livrar dele, mas falhando. Ele riu, se aproximando para me beijar e eu,  instintivamente , dei uma cabeçada nele,  no local onde havia batido anteriormente. 
-ouch-ele reclamou, parando o que fazia. Com lágrimas nos olhos, devido a dor que eu também senti,  aproveitei a brecha para sair debaixo dele e, quando ia fugir, ouvir uma gargalhada e o vi sentado, rindo. 
- Gostei de você haha, mas não precisava de tanto. Não achou que eu ia mesmo fazer aquilo, não é? -ele riu novamente. 
- Eu não te conheço. Numa situação dessa não há espaço para achismos, Idiota -eu disse, com raiva. 
-Calma,  gatinha. Agora venha cá e ajude este homem a chegar até a enfermaria. -ele afastou o cabelo dos olhos. 
-Vá a merda -eu disse,  continuando a andar. Minha cabeça também doia um pouco. 
-Hey, vamos lá -ele se levantou,  cambaleando um pouco e eu grunhi.  Ele havia levado duas pancadas... Podia mesmo estar passando mal. 
-Você é mesmo um idiota.  -eu disse e fui até ele,  deixando ele se apoiar em mim, enquanto andávamos. 

Pensando bem, eu preferiria que o barulho tivesse vindo de um fantasma.