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História Bored - V. Ignora o passado


Escrita por: Eycharistisi

Notas do Autor


Vou estar afastada do mundo cibernético durante uns dias, portanto deixo o capítulo mais cedo :P

Capítulo 6 - V. Ignora o passado


As salas de aula eram iguais a tantas outras: havia três filas de mesas, cada uma com quatro carteiras de dois lugares. A mesa do professor estava no canto junto das janelas, ao lado do grande quadro branco aparafusado na parede. Suspenso sobre as nossas cabeças, estava um projetor de PowerPoint apontado também na direção do quadro. As paredes eram decoradas por algumas impressões de quadros conhecidos, neste caso, Guernica, de Picasso.

Os alunos começaram a sentar-se, parecendo saber quais eram os seus lugares. Helena e Katerine sentaram-se juntas. Armin e Alexy também. Kentin parecia estar sozinho numa carteira, mas não tive muita vontade de me sentar junto dele. Preferi sentar-me na carteira mais próxima da porta. Estava na frente da sala, mas na ponta mais afastada da mesa do professor. Era bastante conveniente.

Lancei um rápido olhar aos colegas em meu redor enquanto a professora organizava os seus materiais. Não esperava ver nada de interessante, mas uma rapariga sentada na carteira à minha esquerda chamou-me a atenção. O seu cabelo era branco. Completamente branco. E não era a única! Na carteira atrás de mim, estava um rapaz de cabelo igualmente branco, cortado de forma assimétrica e com as pontas do lado direito tingidas de negro. Atrás dele, vi um rapaz com o cabelo pintado de verde. Eram cores tão invulgares…

A voz da professora colocou termo às minhas contemplações quando deu início à aula. A maioria dos alunos e professores já se conheciam, por isso as apresentações eram dispensáveis. A professora saltou diretamente para a chamada, enunciando os nomes e esperando que os alunos se pronunciassem. “Alexy?” “Presente.” “Armin?” “Presente.” “Bia?” “Presente.” “Castiel?” Nada. A professora ergueu o olhar da folha de presenças para examinar os rostos dos alunos, mas voltou a baixá-lo com um suspiro enfadado. Presumi, pela sua reação, que era habitual o tal Castiel faltar…

A lista continuou e, por fim, chegou ao meu nome. Anunciei-me presente e preparei-me para ser soterrada com perguntas e lamentos, mas a professora limitou-se a erguer o olhar na minha direção e dirigiu-me um pequeno sorriso.

— Como veem, temos uma aluna nova na turma — disse aos restantes — Sejam simpáticos.

— Se não forem, levam uns sopapos — acrescentou Alexy, ao fundo da sala.

A professora fingiu que não ouviu, deu-me as boas vindas e continuou a marcar as presenças. Não me pediu para apresentar à turma ou referiu a morte da minha mãe. Adorei-a só por isso.

Terminada a chamada, falámos dos critérios de avaliação e do programa de estudos.

— Vamos começar a nossa matéria com Fernando Pessoa e seus heterónimos — dizia a professora, provocando exclamações de desagrado na maior parte da turma — e depois vamos falar de “Memorial do Convento”. A propósito, já leram o livro? Eu disse-vos para o lerem nas férias!

— É muito grande — queixou-se uma voz masculina.

— Justamente por isso! Se tivesses começado o livro nas férias, não terias de o ler todo de uma vez!

A discussão continuou, mas eu não lhe prestei atenção. Estava ainda a pensar em Fernando Pessoa. O programa de estudos do internato era diferente e, por isso, eu já estudara Fernando Pessoa. Era o único poeta cujas obras eu suportava ler. Pessoa era um mestre das palavras, capaz de inserir na frase mais estapafúrdia, aparentemente sem sentido, a maior lição de vida. Era um génio e eu respeitava a sua inteligência.

A aula terminou com um pequeno teste de diagnóstico, tão simples e básico que se tornava ridículo. Entreguei a minha folha de respostas quando chegou a hora de saída e abandonei a sala na companhia de Helena e Katerine.

— O que achaste da primeira aula, Eko? — perguntou-me a segunda enquanto percorríamos o corredor até às escadas.

— Normal — murmurei.

— A stôra pode parecer simpática, e até dá boas notas, mas tem pavio curto — avisou Helena.

— Sim, ela só faz um aviso — continuou Katerine — Se continuares a fazer asneira, marca-te falta e manda-te para a rua. Ou pior, para a direção.

Helena e Katerine estremeceram num gesto idêntico, como se uma corrente de ar maligna tivesse passado por elas ao som da palavra “direção”. Optei por ignorar. Não estava interessada em prolongar a conversa.

Segui as duas raparigas escadas abaixo, absorta nos meus próprios pensamentos. Mantive o rosto virado para baixo para evitar os olhares dos alunos que seguiam apressada e alegremente para o exterior. Eram tão agitados… tão barulhentos… Fechei os olhos por breves instantes, desejando com toda a força descobrir-me noutro lugar quando os voltasse a abrir. O meu lado racional sabia que era inútil rogar por milagres, mas não faria mal tentar, pois não? Infelizmente, nada aconteceu. Voltei a abrir os olhos com um pequeno suspiro aborrecido e… ups…

A t-shirt vermelha com uma caveira alada que envolvia um peito masculino, largo e musculado, estava perigosamente perto do meu nariz, a meros centímetros de distância. Ergui rapidamente o olhar para murmurar um pedido de desculpa, mas o detentor do peito fenomenal não me deu tempo para isso.

— Mexe-te — exigiu com maus modos — Estás no caminho.

Franzi o sobrolho e recuei ligeiramente para poder olhar melhor o rosto do rapaz.

Era alto e portador de uma beleza selvagem e ameaçadora. O cabelo vermelho vivo caia liso até quase tocar os ombros cobertos de cabedal negro. Os olhos cinzentos eram duros, frios, afiados como uma lâmina. Vestia maioritariamente preto, exceto pela t-shirt vermelha.

Ele ergueu uma sobrancelha impaciente, esperando a minha reação. Helena colocou-se entre nós nesse instante, lançando um olhar zangado ao rapaz.

— Ninguém está com paciência para aturar o teu mau-humor, Castiel, abstém-te de abrir a boca.

— Queres mesmo falar de mau-humor? Eu só disse à gaja para sair do caminho e tu vens logo com sete pedras na mão…

Helena abriu a boca para responder, mas eu impedi-a com um gesto da mão.

— Deixa — pedi com um suspiro aborrecido — Vamos embora.

— Não me pedes desculpa, tu? — perguntou o rapaz na minha direção — Não recebeste educação em casa?

Eu virei lentamente a cabeça na sua direção. Ele só podia estar a gozar comigo…

— Recebi, mas prefiro guardá-la para quem é igualmente educado.

— Foda-se, o que é que eu disse de mal?

— Castiel, por favor… — Katerine tentou intervir, pacificadora, mas eu não a deixei terminar:

— As pessoas educadas pedem “com licença”, para o caso de nunca teres reparado…

— Não percas tempo a tentar explicar-lhe, Eko — pediu Helena — Ele não percebe, é um caso perdido.

— Olha lá… — começou o rapaz, endireitando os ombros com uma expressão ameaçadora. Eu cortei-lhe a palavra, impedindo-o de continuar.

— Já tinha reparado — murmurei com um suspiro — Vamos embora…

Helena segurou o meu braço e contornámos o rapaz, ignorando o seu protesto zangado. Terminámos de descer as escadas e chegámos ao recreio, seguidas de perto por Katerine.

— Não ligues ao Castiel — disse Helena, guiando-me em torno do pequeno jardim — É um idiota chapado, como pudeste ver…

— Custa-me crer que namoraste com ele, Lena — disse Katerine — Não sei o que raio viste nele…

— Namoraste com aquilo? — indaguei, apontando com o polegar por cima do ombro, para o edifício onde se encontrava Castiel.

— É — confirmou ela, não parecendo particularmente satisfeita — Estava aborrecida, ele é super giro e pensei que se tornaria mais suportável com o tempo, mas nope. Nem lá perto. Tornou-se ainda mais chato, se é que isso é possível…

— Devias ter visto a forma como a Lena terminou o namoro com o Castiel, foi épico! — disse Katerine, entusiasmada — Ela deixou-lhe uma mensagem bem bonita escrita no tampo da mesa…

— Vamos mudar de assunto — pediu Helena, enquanto entrávamos no polivalente — Eko, nós vamos ao bar comprar o nosso lanche. Vens connosco?

— Já aqui estou — notei, encolhendo os ombros.

Helena disfarçou um pequeno sorriso e continuou a andar. Atravessámos o polivalente, regressámos ao corredor de entrada, virámos à esquerda e percorremos o corredor até ao fim, encontrando as escadas que levavam ao andar de cima. Subimos e deparámo-nos com um conjunto de pequenas mesas redondas diante de um balcão de self service. Os alunos pegavam num dos pequenos tabuleiros de cores garridas, deslizavam-no na frente dos vários mostradores, tirado a comida que desejavam, e detinham-se junto à funcionária para pagar. O único método de pagamento aceitável era feito através do cartão escolar e, como eu ainda não tinha o meu, não podia recorrer àquele tipo de serviço. Inconveniente…

Helena e Katerine juntaram-se à fila para recolher o seu lanche e eu sentei-me no meio do conjunto de mesas, mordiscando as bolachas que trouxera de casa. Entretanto, observava os outros alunos e notava como pareciam felizes por estar ali. Tinham razões para isso. Estavam num sítio que conheciam, rodeados pelos amigos com que cresceram e seguros de que encontrariam uma família feliz e completa à sua espera quando voltassem para casa. Tinham um pai e uma mãe de quem gostavam e talvez um verdadeiro irmão. Não sabiam o horror que era viver numa situação como a minha. Sem mãe, sem rumo, sem futuro…

— És tão falsa, Eko! — exclamou uma voz alegre, arrastando-me de volta à realidade — Sais da sala e nem dizes nada a ninguém… Quase parece que não tens saudades nossas!

Ergui o olhar das minhas bolachas para encontrar Alexy ao meu lado, puxando uma cadeira para se sentar junto a mim. Armin e Kentin estavam de pé do outro lado da mesa e o primeiro não parecia propriamente satisfeito.

— Queres alguma coisa, Ale? — perguntou Armin.

— Um folhado misto. Queres alguma coisa, Eko? — acrescentou o rapaz de cabelo azul na minha direção.

— Não, obrigada…

— Tens a certeza? — insistiu Kentin.

— Absoluta.

— Deixa-a — pediu o gémeo de cabelo negro ao rapaz de olhos verdes — Não vale a pena… Vamos para a fila.

Kentin parecia confundido com o tom de voz do amigo, mas seguiu-o quando este se encaminhou para a fila do bar. Alexy virou-se para mim, abrindo um sorriso.

— Então, Eko, conta-me como foi a  tua vida nestes últimos sete anos!

Eu encolhi os ombros, devolvendo a minha atenção às bolachas.

— Nada de especial…

— Nada de especial? Foram sete anos, querida, tenho a certeza de que aconteceu muita coisa!

— Tu tens alguma coisa para contar sobre esses sete anos? — volvi, erguendo uma sobrancelha.

Alexy endireitou os ombros e bateu as mãos, como se estivesse a preparar-se para começar um discurso longo e muito bem ensaiado. Iria mesmo contar-me tudo o que acontecera naqueles sete anos?

— Ora bem, o que aconteceu foi o seguinte: quando me disseram que tu e a tua mãe tinham fugido, eu não me preocupei muito. Achei que era só uma brincadeira ou uma birra inocente e que vocês regressariam quando a situação acalmasse. No mínimo, achei que arranjarias maneira de enviar um bilhete aos teus bons amigos de infância a dizer que a separação era temporária e que virias visitar-nos assim que pudesses. Fiquei horas sentado ao lado do telefone, semanas a correr para fora de casa quando via o carteiro chegar, convencido de que nos tentarias contactar de alguma forma. Fiquei tão paranóico que comecei a sonhar contigo e achei que era telepatia, vê lá tu! Porém, o tempo foi passando, eu fui perdendo a esperança e, inevitavelmente, tive de admitir derrota. Foi aí que começaram as noites de choro agarrado à almofada e os dias passados sem comer. Sentia-me desfeito por dentro por ter perdido aquela que sempre encarei como minha irmã, era como se me tivessem arrancado o coração do peito, mas tu provavelmente não compreendes o que estou a dizer porque sei que não nos vias da mesma forma. Eu já imaginava que não ficarias muito feliz por nos ver, mas acho que uma parte de mim ainda tinha esperança de retomar a relação que tínhamos no passado, e foi por isso que doeu, bastante, ouvir o Armin dizer que tu nos consideras uma má influência, uma infeção e sei lá mais o quê. Foi nessa altura que comecei a perguntar-me sobre o que diabos estou aqui a fazer. Tu não queres a minha companhia e eu não quero perder o meu tempo, mas…

— Alexy — chamei, tentando conter o discurso ininterrupto que ele proferia sem sequer parar para recuperar o fôlego antes da frase seguinte.

— Não, não, espera, deixa-me terminar. A melhor parte ainda está para vir; a parte que prova que sou mesmo um idiota. Dizia eu, tu não queres a minha companhia e eu não quero perder o meu tempo com quem me virou as costas, o problema é que não sou capaz de ignorar-te porque sei que estás triste pela morte da tua mãe. Precisas de todo o apoio possível e, apesar das facadas que já me deste nas costas, eu continuo a amar-te imenso…

— Já chega! — exclamei, sobrepondo a minha voz à sua — Já percebi, estás revoltado, não precisas de bater mais.

— Não? De certeza?

— Eu já percebi — garanti, evitando revirar os olhos — Acredites ou não, eu também estava triste pela separação no início… mas isso passa-te, vais ver.

Alexy endireitou-se na cadeira com o queixo caído, chocado.

— Tu… és uma grandessíssima cabra!



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