As últimas noites tem sido mais quentes, ainda que não sejam tão quentes como o verão, estou confortável para usar apenas um suéter fino, enquanto fumo na escada de incêndio. É aqui onde tenho estado todas as noites em que não trabalho. Exceto por Lee e minhas colegas de quarto, tenho evitado todas as outras pessoas, e focado apenas no trabalho. Estou na minha sétima xícara de café e oitavo cigarro, esfregando freneticamente as articulações dos meus dedos, e me esforçando ao máximo que posso para manter minha mente vazia e tranquila. O que é uma puta ironia, já que não tenho sido capaz sequer de dormir. Apesar de tudo, me sinto calma no momento. Encosto minha cabeça contra a parede fria e fecho os olhos, pelo que parece ser uma eternidade.
– Bonnie! — a voz grave e alta de Laura de tira do meu transe – Tem um homem no telefone procurando por você! No telefone, acredita? Nem sabia que isso ainda era usado.
– Estou indo. — apago o cigarro, que já está queimando até o filtro. Mesmo com a bomba de cafeína que tomei, ainda não sinto a energia que esperava. É sempre mais complicado entrar por essa janela que do que sair.
Enrolo meu dedo indicador no fio do telefone antigo, e quando atendo, reconheço de imediato a voz do outro lado da linha.
– Bonnibel? — ele pergunta.
– Hunson. — respondo, pressionando minhas têmporas – Bem, isso é uma surpresa. A que devo a honra?
– Primeiramente, gostaria de me desculpar pelo horário, acredito que você esteja tentando aproveitar sua folga.
– Sem problemas. — interrompo. Minha curiosidade é maior do que qualquer outra coisa no momento.
– É possível encaixar em sua agenda um almoço ou jantar? — é direto ao ponto – Existem algumas coisas que eu gostaria de discutir com você.
Fico em silêncio por alguns segundos ainda em choque, porque essa é a última coisa que eu imaginaria acontecer.
– Claro. — respondo, finalmente – Amanhã, por volta das três da tarde, funciona para você?
– Certo. Tudo bem. Você teria algum outro número de contato?
– Sinto muito. — minto, sem pensar duas vezes – Meu celular quebrou.
– Certo. — ele fala novamente, faz uma breve pausa, mas não consigo identificar a emoção em sua voz – Tudo bem, você conhece o Noitosfera?
– O escritório ou o restaurante? — apoio minha cabeça contra a parede, emocionalmente exausta de toda e qualquer interação social – Conheço os dois, na zona sul.
– Te vejo no restaurante amanhã, então. Obrigado pelo seu tempo, Bonnibel. — e antes que eu possa responder, a ligação foi encerrada.
Fico mais alguns instantes com o telefone na orelha, antes de esboçar qualquer reação que seja. Assim que o coloco de volta no gancho, minhas preocupações são interrompidas pela agitação irritante de Caroço.
– É o seu novo sugar daddy? — tem na mão uma garrafa de champagne, que eu tenho certeza que era minha. Parece muito mais fácil não discutir, então relevo.
– Não. — ainda estou um pouco confusa – Era Hunson Abadeer. Era o pai de Marceline.
– O que ele queria?
– Sinceramente? Eu não faço ideia. Mas acho que estou prestes a descobrir. — dou ombros, pegando a garrafa de sua mão e me servindo uma taça.
– Bonnibel, bobinha. Você precisa sair de casa. — Laura me encara, com pena. Como eu odeio essa sensação – Você está fedendo a cigarro e café, não faz nada além de dormir. Preferia quando você chegava em casa de manhã, com a sua walk of shame rotineira.
– Eu também. — mas sinceramente, não tenho vontade de debater minha vida sexual, então levanto minha taça – Enfim, saúde?
***
É a primeira vez em semanas que eu me arrumo. E por poucos segundos, encaro o espelho com a total consciência do quão bonita eu sou. É claro que esse pensamento não dura muito tempo, e logo estou refletindo no quão derrotada tenho parecido nas últimas semanas. Estou aplicando o rímel, torcendo para que o assunto tão urgente que Hunson tem para tratar comigo, seja trivial e rápido.
É claro que sei que estou errada. Mas você pode culpar uma garota por sonhar?
O restaurante Noitosfera é um dos diversos estabelecimentos da família Abadeer, nesse lado do estado, está localizado apenas ele e o escritório. Todos carregam o mesmo nome, a mesma estética sombria. Ainda sim, uma refeição nesse restaurante é provavelmente o valor do meu aluguel do mês. A parte mais irônica de tudo isso, é que terei uma refeição digna de um rei depois de descer de um ônibus, que eu paguei com o meu cartão universitário.
Não posso negar que fico maravilhada quando paro na frente do estabelecimento. É incrivelmente bonito e bem planejado. É ainda mais incrível o quanto Hunson é fisicamente parecido com Marceline. Sentado de costas para mim no saguão, com um charuto na mão, por um segundo parece que estou encarando as costas dela. Assim que escuta o click dos meus saltos, ele se levanta.
– Bonnibel! — a aparência dele é horrorosa. Ainda que esteja em seu terno bem cortado, Hunson parece cansado e com olheiras profundas. Surpreendentemente ele se aproxima para um abraço. Retribuir é um pouco estranho – Fashionable late.
– Sinto muito, meu ônibus atrasou. — mas ele não parece estar prestando atenção nos meus problemas simplórios. Seu rosto parece cansado, bem, é de se esperar que sim considerando seu dinheiro e posição social, mas é que tem algo diferente em seu cansaço. Uma melancolia.
Enquanto o sigo pelo restaurante até uma área mais reservada, tento absorver o máximo possível do ambiente ao meu redor. Vazio. Não é o que se espera de um restaurante como esse, pelo que ouvi por aí, uma reserva para o brunch leva meses.
– Eu reservei todo o restaurante. — é como se pudesse ler os meus pensamentos. Marceline estava certa, o cara é assustador.
– Percebi. — em um ato de cavalheirismo, Hunson puxa a cadeira para mim. Agradeço silenciosamente antes de me sentar. O atendimento é muito rápido e impecável, antes mesmo que eu possa me acomodar confortavelmente, um garçom me serve café.
– Acredito que não se importa se eu fumar, certo? — ele pergunta, me oferecendo um cigarro, tirado de uma cigarrilha que parece cara. Ele acende, e logo embarca em um monólogo – Sei que deve estar se questionando o porquê dessa reunião. Tomar o seu tempo é a última coisa que eu gostaria de fazer, mas… Eu preciso saber o que aconteceu entre você e a minha filha.
A tonalidade dos seus olhos fica mais clara, mais suave. Sua voz, pela primeira vez desde que o conheci, parece vulnerável. Sopro a fumaça para o teto e antes que possa responder preciso tomar fôlego.
– Eu gosto da sua filha, Hunson. — não consigo olhar em seus olhos, então encaro meu cigarro queimando lentamente – Eu não consegui aguentar. Eu tentei, de verdade, entender o ponto de vista dela. Eu tentei empurrar com a barriga toda a bebedeira, as brigas em bares e o cheiro de whisky. Mas eu já passei por isso antes e ver Marceline se destruir, como a minha mãe fez… Não dá, eu tenho meus limites. Nós terminamos. Eu fui voltei para a minha república, de onde eu nunca devia ter saído. E honestamente Hunson, embora eu já tenha passado da fase de buscar aceitação, e certamente não estou em busca de permissão, não quero que pense que eu sou uma interesseira, então estou disposta a devolver todos os presentes caros que Marcy me deu. Desde que não tenha que me encontrar com ela, evidentemente .
– Não acho que você seja uma interesseira, Bonnibel. — ele responde após uma pausa curta, como se estivesse digerindo as minhas palavras continua – Suportar os ataques de fúria, a incansável embriaguez dela não é algo que dinheiro nenhum compre, eu conheço a minha monstrinha. — pressionando os dedos contra os olhos, acredito ver uma lágrima escorrer, mas não tenho certeza – Eu suponho que tudo isso seja culpa minha. Eu amava a Lucille, com toda a devoção que uma pessoa pode prestar, e quando ela morreu foi como se meu mundo se transformasse em pedaços. Afastei as minhas filhas como se isso fosse apartar toda a dor, porque quando eu olhava para aqueles rostinhos inocentes eu sabia que nunca seria tão bom quanto a mãe delas.
– Eu conheço a sensação. — eu penso na foto de Rose na minha carteira, e o quão desesperador é perder o seu mundo.
– Keila me permitiu reconstruir a relação. E como não poderia? Ela era só um bebezinho. Marceline nunca me perdoou, e eu não a culpo. Mas eu convivo com a agonia do "e se?" E se eu fosse um pai mais presente? E se eu estivesse lá quando minha filha precisou? Ela ainda seria uma alcoólatra?
Não sei o que dizer, então o encaro em silêncio. Com toda a compaixão que ainda me resta, embora não seja muita, eu consigo entender.
– Você perdoou os seus pais? — ele pergunta.
– Não. Mas eu sinceramente não dou todo o crédito dos meus traumas a Rose. — dou ombros, quando o primeiro prato é servido agradeço a garçonete – Não é como se a vida tivesse sido fácil para ela também. A heroína foi só um modo de escape.
– E o seu pai?
– Eu não menti quando disse que não o conheço. Minha mãe engravidou cedo, ele fugiu e ela estava presa com dois gêmeos. — a comida é deliciosa, o que alivia um pouco toda a tensão do assunto — Mas não é como se ele fizesse falta, ela costumava dizer que ele que apresentou as drogas para ela. — eu paro meu raciocínio por alguns segundos, ainda abalada por toda essa conversa – Hunson, se me permite a impertinência da interrupção, mas eu não acredito que você tenha me chamado aqui para debater suas faltas paternas.
Ele solta uma risada fraca, que soa pelos meus ouvidos como um pedido de socorro. Eu só não consigo identificar…
– Você me lembra ela…— sua voz é vacilante – A minha Lucille, foi uma das poucas pessoas a não ter medo de mim, à levantar à voz e não me chamar de senhor Abadeer. Não me admira que Marceline tenha se encantado por você. — Hunson limpa a garganta e levando outro cigarro a boca, sinto minha alma escapar do meu corpo, como se eu soubesse – Você tem razão, eu não te chamei aqui para contrapor a ideia de pai do ano. Me perdoe. Eu quero que você guarde todos os presentes que minha filha te deu. Assim você vai ter bens físicos para se lembrar.
– O que você quer dizer com isso? — de repente estou ultra consciente do meu peso, do meu corpo e da minha própria mente, como um presságio de um ataque de pânico, sinto minha boca seca e meu coração prestes a atravessar o peito.
– Marceline desapareceu.
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