História Caçada - O Pulo do Tigre

Aquela manhã começou com uma chuva fraca caindo, o vento gelado entrava pela pequena janelinha que se localizava em baixo da minha cama de solteiro, fazendo com que eu me enrolasse até a cabeça com o cobertor velho que eu usava.

Todo o meu ser implorava por mais algumas horas de um bom sono, mas eu tinha trabalho para fazer e acima de tudo, meu estômago reclamava de fome e o cheiro dos ovos mexidos de Anne me fizeram sair da cama.

Depois de ter que esperar Cadence, umas das bailarinas que dividia o trailer comigo, sair do banheiro, consegui fazer minhas higienes matinais, mas ainda sem sorte com a água quente, tomei o banho mais rápido que alguém poderia tomar.

Vesti uma suéter verde que tinha remendos em quase todos os lugares, uma calça jeans preta um pouco surrada mas que me ajudaria com o frio e as mesmas botas pretas de sempre. Trancei meus cabelos e sai em direção ao refeitório, sendo guiada pela minha fome.

Coloquei minhas mãos no bolso e fiquei olhando os carros passando apressados pelas ruas. Não tinham muitas pessoas na rua devido ao frio e as árvores balançavam com o vento. Me peguei tentando entender o sonho da noite passada e cheguei a conclusão de que tudo foi resultado do minha estranha conversa com um tigre.

- Um dólar pelos seus pensamentos.

A voz de Matt me assusta, me fazendo pular para o lado enquanto ele ria alto. Tentei controlar meu coração, que batia rápido em meio peito. Olho para Matt que ainda ria, fazendo covinhas aparecerem em seu rosto.

Sua jaqueta esportiva e seu jeans desbotado deixava o garoto mais bonito do que ele já era. O vento afastava seus cabelos do rosto, deixando os olhos azuis mais brilhantes. Suas bochechas estavam vermelhas devido ao frio, deixando Matt com um ar angelical.

- Primeiro que você não tem um dólar, Matt. – Digo com as mãos na cintura. – Segundo, porque você me assustou?

- Bem, é verdade que não tenho dinheiro, já que o meu salário acabou na primeira semana do mês...

 O salário que o Benzini nos dava era tão ridículo que mal dava para um mês inteiro. Ainda acho que o velho gordo nos acha seus escravos.

- ... E eu vi você andando e parecia tão distraída que eu pensei: Porque não assustá-la?

Revirei os olhos para Matt e lhe dei um soquinho no ombro, mas ri junto com ele. Ele se aproximou de mim e passou o braço pelos meus ombros, como sempre fazia quando andávamos juntos.

- Sorte sua que eu estou com fome, Donovan, porque ao contrário você ia levar uns tapas. – Isso fez com que Matt me olhasse, com um sobrancelha levantada.

- Até parece que você conseguiria, “baixinha”. – Matt riu e eu fechei a cara para ele. – Tudo bem, desculpe Mia, não vou mais implicar com você.

- Bom mesmo. – Tento fazer minha voz sair birrenta, enquanto cruzava meus braços.

- Mas eu estava pensando...

- Uau! E você pensa? - Essa foi a minha vingança.

- Muito engraçado, Campbell. Agora me deixe terminar. – Nós já nos aproximávamos do refeitório, e meu estômago começou a se animar. – Ontem o Benzini falou que não ia ter apresentação hoje, porque Jordan vai treinar o tigre para o novo número, então eu achei que nós podíamos sair para dar uma volta pela cidade, talvez até ir ao cinema, tenho um pouco de dinheiro guardado e acho que dá até para pipoca.

Sair com Matt ia ser legal, afinal eu me sentia bem ao seu lado, pois ele era meu melhor e único amigo. Tínhamos crescido juntos, e eu confiava a ele todos os meus segredos. Matt era realmente muito especial para mim e talvez essa seja a nossa única chance de sair como adolescentes normais, já que o senhor Benzini nunca tinha nos dado férias.

E eu estava pronta para responder um “Sim Matt, nós podemos sair, mas só se você me comprar a pipoca grande com muita manteiga”, quando um par de olhos dourados invadiu os meus pensamentos.

Kishan. Eu queria visita-lo novamente essa noite, talvez até levar meu caderno para desenha-lo e quem sabe hoje eu não conseguiria me aproximar dele sem nenhuma interrupção?

- Huum... Eu queria muito Matt, mas tenho trabalho para fazer agora que tenho que cuidar do tigre.

O sorriso de Matt se fechou e ele parecia desapontado e chateado, me fazendo querer bater a cabeça em uma parede por ter magoado ele.

- Eu entendo, Mia. Quem sabe da próxima vez? - Ele tenta sorrir de novo, mesmo sabendo que não iria ter uma “próxima vez”.

- É, quem sabe...

Fizemos o caminho que ainda faltava para o refeitório em silêncio, enquanto eu mergulhava em pensamentos confusos.

Tentei puxar conversa com Matt novamente, mas quando vi ele já tinha se afastado e agora comia sentado na mesa junto com seu pai. Peguei um prato de plástico comecei a enche-lo com ovos mexidos e bacon, depois peguei um copo de suco e me encaminhei até a única mesa totalmente vazia ali, longe das conversas animadas e dos planos que as pessoas faziam para aquele dia livre.

Depois de acabar com toda a comida em meu prato, fiquei brincando com o copo em minhas mãos, pensando no porquê das coisas não serem mais fáceis.

- Mia?

 Olho para cima e vejo Jordan me encarando com um sorriso no rosto. Deixo o copo na mesa e me volto para o homem em minha frente.

- Oi Joe! Algum problema?

- Não, eu só queria que você me ajudasse com o tigre, já que o senhor Benzini quer o número pronto até o final do dia.

Jordan parecia pronto para sair correndo a qualquer momento, via-se que ele não queria ter que virar domador de um tigre e eu o entendi, pois havia uma grande diferença entre cachorros inofensivos e tigres intimidadores.

- Claro que eu ajudo, Joe. Esse é o meu trabalho, né? - Digo me levantando e levando o prato e o copo descartável até o lixo.

- Ótimo! Muito obrigada, Mia. Vou estar na tenda do tigre, me encontre lá assim que terminar suas tarefas.

O resto do dia eu tentei me concentrar nas tarefas que eu tinha que fazer, mas eu estava agitada demais com a expectativa de ver meu tigre novamente.

Matt passou por mim quando eu alimentava os cachorros no canil, mas ele ignorou minha tentativa de conversar, me fazendo perceber o quão chateado ele estava.

Já era de tarde e eu me encontrava parada na frente da tenda de Kishan. Sentada na mesma caixa de madeira que eu usei na noite passada, fiquei vendo Jordan na sua tentativa falha de fazer o tigre saltar para um trapézio.

Era uma cena engraçada de se ver, pois Joe dava ordens ao tigre negro, com sua voz visivelmente assustada, enquanto Kishan continuava sentado no trapézio colorido lambendo sua pata peluda e olhando para domador com uma cara de tédio.

- Mia, por favor, pegue um pouco de água para o tigre, talvez ele esteja com sede. – Jordan gritou para mim, enquanto eu tentava reprimir o riso.

“Duvido muito que Kishan queira cooperar.”, penso, indo até uma mangueira e enchendo o balde com água.

- Pule para o próxima trapézio! Vamos lá! – Chacoalhei a cabeça, rindo, vendo Jordan balançar os braços tentando fazer Kishan se mover.

Deixo o balde com água perto do tigre negro e recebo seu olhar brincalhão, o dourado dos seus olhos pareciam mais brilhantes. Podia se ver o quanto ele estava se divertindo fazendo Jordan de bobo.

- Só pule para o próximo trapézio! – Jordan parecia cansado e provavelmente tinha percebido que não ia conseguir ter seu número até o final do dia.

Olhei novamente para Kishan que agora tinha aberto a grande boca, como se estivesse bocejando. Ele me olhou por um momento e depois para Jordan e fez a última coisa que eu pensaria que ele faria.

Com um salto gracioso, ele pulou para o trapézio seguinte que estava a uns dez metros. Seu corpo se esticou, me deixando boquiaberta com o movimento. Apoiado nas patas, pousou majestosamente na base de madeira, deixando tanto eu como Jordan surpresos.

- Você viu isso, Mia? Ele pulou! Eu consegui! – Joe pulou de alegria, me fazendo rir.

- Foi realmente muito bem, Joe. – Digo, olhando para Kishan que parecia se divertir com alegria de Jordan.

- Acho que vou parar por hoje, você conseguiria colocar ele de volta no jaula, Mia?

- Claro! – Aquela simples afirmação saiu com mais entusiasmo do que o esperado.

- Vou tomar um banho, tome cuidado Mia.

E assim Jordan saiu andando, me deixando sozinha com o enorme tigre que continuava sentado no trapézio. Me virei para encarar seus olhos dourados e peguei a corda que pendia amarrada em seu pescoço.

- Você não devia judiar tanto de Joe assim, deixar o coitado esperando três horas por um salto? Que feio, Kishan.

O tigre deu um rugido baixinho, enquanto eu puxava o corda em direção à tenda. Kishan parecia um cachorrinho pronto para brincar. Veio trotando em minha direção, esbarrando seu grande corpo em minhas pernas.

- Ei! Você é meio grandinho para essa coisa de se esfregar nas pernas! – Brigo com ele, depois de ter recuperado o equilíbrio.

Andei em silêncio, observando o tigre andando ao meu lado. Me senti como se estivesse levando um dos Border Collies para passear. Felizmente Kishan não deu trabalho para entrar em sua jaula, então eu não precisei suborna-lo com carne.

Kishan me encarava enquanto eu tentava mover a porta da jaula para fechá-la. Olhei para o tigre por um momento e me detive. Lá estava aquela vontade de tocá-lo novamente.

Me aproximei devagar e estendi minha mão direita, receosa com o reação do animal que me estudava sentado. Eu sabia que agora eu só precisava estender os dedos para finalmente tocar-lhe o pelo, mas meus membros tinham travado e eu não me movia, sentindo meu coração bater rápido.

O tigre negro agitou sua calda peluda em expectativa, mas eu não me movi e parecendo saber que eu mal conseguia respirar, Kishan tomou um impulso e se levantou, andando preguiçosamente até mim.

Arregalei os olhos quando ele enfiou a sua grande cabeça embaixo da minha mão estendida, fazendo cócegas com seus pelos sedosos. Sorri ao sentir um sensação de leveza tomar conta de mim e logo ouvi Kishan ronronando enquanto esfregava sua cabeça em minha mão e eu entendi isso como um sinal para coçar-lhe o pelo.

Mexi os dedos e comecei a afagar sua cabeça e sua orelha, sentindo minha mão formigar com o contato.

- Seu pelo é tão bonito. – Digo baixinho, ainda com um sorriso bobo no rosto.

- Ah! Muito obrigada! Eu lavo ele todos os dias com um shampoo especial! – Uma voz masculina invade meus ouvidos.

Soltei um grito alto e pulei para traz, encarando assustada Kishan que parecia mais confuso que eu.

Eu provavelmente estava ficando louca, mas por acaso o tigre tinha acabado de falar comigo?

Continua...