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História Caminho da Discórdia - O trabalho dela


Escrita por: sttardust

Notas do Autor


oi!
tem gente precisando de babador nesse capítulo, mas é compreensível

boa leitura 💚

Capítulo 14 - O trabalho dela


P.D.V. Guilherme

Ela tinha razão!

Aquele é o lugar que eu deveria conhecer. Um lugar para eu errar, para eu praticar sozinho, para eu ver se consigo segurar as pontas dessa faculdade tão difícil sem meus pais soprando no meu ouvido a todo instante. Por que eu recuei? Por que não consegui dizer sim?

Não consigo pensar em outra coisa desde que cheguei no dormitório após o almoço. Curiosamente, tenho a tarde livre; poderia regular meu sono, mas não tenho vontade de dormir agora. Está sufocante permanecer aqui dentro, não só fisicamente.

Sei que só rejeito o internato por medo. Mesmo já tendo passado da metade do curso, ainda não lidamos diretamente com pessoas, ainda não sabemos como construir essa relação direta com pacientes, que pode ser a parte mais agradável, mas também a mais arriscada, de lidar com vidas frágeis todos os dias. Acho que tenho medo de descobrir que não sirvo nem pro que eu pensava que deveria servir.

Mas Eris também não sabia. Ela se vestiu de coragem e foi atrás do emprego sozinha, sem ninguém ao seu lado para fazer incentivo — o do diretor Edward com certeza não conta. E ainda foi generosa o bastante para estender sua mão a mim, para me auxiliar enquanto ela mesma ainda precisa de auxílio. Pensando por esse lado, é um grande privilégio ter alguém ao meu lado para me dar esse empurrão. E se eu não tive coragem de aceitar com um incentivo, será que aceitaria sem?

Eu sei minha resposta. Eu me conheço. Foi uma grande besteira ter dito não. Só agora que vejo.

Sento-me na beira do colchão e entrelaço os dedos das duas mãos. Fico respirando fundo enquanto olho pensativo para meu celular repousado na escrivaninha. Pego para ver a hora na tela de bloqueio. Já vai dar uma e meia. Ela disse que começa a trabalhar às duas. Também disse que o endereço fica no site da universidade. Que eu poderia procurá-la a qualquer hora.

Foi ela quem me chamou. Eu não vou estar me metendo em lugar nenhum.

É hora de ter um pouco de coragem, e de agir com a liberdade que sempre quis.

Pego apenas minhas chaves e o celular. Saio do quarto deixando a porta bater atrás de mim e descendo rápido pelas escadas em direção ao estacionamento.

Dirijo por cerca de vinte minutos pela cidade, tirando proveito do trânsito leve. Quando chego à rua indicada no GPS, me surpreendo por ser tranquila e até meio escondida, com arbustos cercados nas calçadas e casas com portões altos. Um lugar extremamente silencioso.

Estaciono o carro em algum canto permitido e ando pela calçada em direção ao hospital. Um cachorro branco, mas meio sujo, vem do lado oposto e é o único que cruza o meu caminho.

Reparo numa ambulância velha e provavelmente desativada estacionada na frente do prédio. Olho para cima, reparando na fachada antes de entrar. É uma arquitetura bem antiga: larga, pintada com tinta branca descascada em alguns pontos, janelas quadradas com bordas de madeira escura e vidros um pouco amarelados. Nem todas as janelas estão abertas. São duplas as portas de entrada, do mesmo feitio das janelas, mas apenas uma está aberta, e são antecedidas por poucos degraus de pedra. É um pouco apertado para entrar.

Ao passar por essa porta, encontro um corredor normal de hospital público, só que vazio. O chão com pisos brancos e lisos, cadeiras encostadas na parede amarelada, lâmpadas não muito fortes, e uma escada no fim desse corredor. Ao meu lado direito, um balcão baixo, com diversos papéis em cima, um computador simples, canetas, carimbos e, é claro, uma recepcionista jovem, de cabelos louros escuros e olhos claros, vestindo uma camiseta branca de mangas até os pulsos. Ela me observa chegando e mostra um sorriso simpático.

— Oi, moço. Precisa de ajuda?

É uma pergunta e tanto.

— Oi… Acho que sim. — Apoio os braços sobre o balcão. — Uma colega minha trabalha aqui e ela me convidou para acompanhar o trabalho dela hoje. Nem sei se pode fazer isso, mas…

— Você é da faculdade? — pergunta em tom alto enquanto tecla no computador.

— É, sou.

— Então pode sim. Qualquer aluno é sempre bem vindo. — Continua teclando. — Quem é a sua colega?

— Eris. — Imagino que mais ninguém se chame assim por aqui.

A funcionária logo reconhece.

— Ah, aquela gracinha de menina. — Sorri fraco e, de repente, me estica por cima do balcão um adesivo de visitante, o qual colo na camisa preta. — Ela já está aqui. Tenta procurar por ela nos vestiários.

— E onde fica isso?

— Pode subir por ali. — Ela aponta para a escada no fim do corredor. — É no segundo andar, você vai ver as plaquinhas nas portas. É o vestiário feminino.

— Obrigado pela ajuda! — Tento retribuir um sorriso.

Sigo em frente e subo as escadas até chegar no tal corredor do segundo andar. Há várias portas, todas fechadas e pintadas de branco. Vou na qual a recepcionista falou, do vestiário feminino. Pensando que seja um lugar grande e com muitas cabines para os trabalhadores se aprontarem, seguro na maçaneta e abro a porta tranquilamente. Mas quando vejo com clareza o que está na minha frente, tomo um susto, meus olhos se arregalam e o coração pula de susto.

Fecho a porta de volta. Fico ali de pé e nervoso. Tomo um pouco de ar e, em seguida, abro a porta novamente. Mas bem pouco, apenas o suficiente para pôr um dos meus olhos e espiar.

A primeira imagem continua ali, tão surpreendente e errada, mas tentadora.

Eris está sentada em uma espécie de banco de madeira sem encosto, de frente para um grande armário de metal cinza, com vários cofres fechados, apenas um aberto, o que está de frente para ela. E ela… ela está de costas para mim, sem nem notar minha presença aqui. Está sem blusa e sem sutiã, suas costas aparecem totalmente lisas pra mim. Consigo ver que veste apenas uma calça de pano fino branco. Seu braço esquerdo está estendido para frente enquanto que, com o direito, ela passa um creme pela extensão do esquerdo, se massageando e espalhando o creme. Vejo um tubo de hidratante repousado no banco, bem perto de seu corpo. E ela passa pelo braço, pelo ombro, pelo pescoço, e depois troca de direção, colocando creme na mão esquerda para espalhar pelo braço direito. Seu cabelo está preso num coque pequeno e alto, deixando sua nuca livre, e há apenas alguns fios de cabelo grudados ali.

Tento não fazer nenhum barulho. Eu sei que isso é errado de diversas formas, mas é tão difícil parar de olhar! Não estou vendo nada demais, é apenas suas costas. Prometo mentalmente que, assim que ela se mexer para mudar de posição, eu saio daqui.

Então vejo-a se levantar. Saio imediatamente de frente da porta, encostando-me na parede. Começo a pensar como seria terrível se alguém me pegasse no flagra. Ela está ali tão inocente, fazendo uma coisa tão normal, e eu aqui sendo um depravado, um idiota. Começo a me sentir mal de verdade por tê-la observado. Que grande estúpido!

Volto pra frente da porta. Dessa vez, olho apenas para o chão, pois minha intenção é somente fechar essa porta e sair daqui. Mas meus olhos parecem ter vida própria, eles se levantam e olham para ela novamente. Eris agora está de pé, ainda de costas, e tem um sutiã de renda branco sobre o banco. De repente é como se eu conseguisse sentir também o cheiro doce de seu hidratante.

Estou ficando louco demais.

Consigo então, bem lentamente e cheio de cuidado, fechar a porta. Ela não repara em nada. Afasto-me dali e ando pelo corredor, passando a mão pelos cabelos e rodando em círculos, fazendo de tudo para permitir que a coisa não fique ainda mais dura pro meu lado. Essa foi por pouco.

Eu deveria pedir desculpas, mas talvez fazê-la saber que fiquei lhe espionando em um momento particular poderia deixá-la com má impressão de mim. Vou tratar de esquecer tudo o que vi aqui, deletar todas as imagens. Só sei que isso vai ser bem difícil.

Fico uns dois minutos andando pelo corredor. Por mais que eu queira deixar Eris em paz, e deixá-la terminar suas coisas, eu não posso ficar sozinho aqui, ninguém me conhece e daqui a pouco alguém pode chegar e pensar que sou um invasor. Por isso dou umas respiradas até estar de frente para a porta novamente.

Dou duas batidas na porta. Ouço sua voz calma pedindo para esperar lá de dentro. Dou um passo para trás e fico olhando para o chão e imaginando se ela está correndo para se vestir ou se pelo menos já pôs aquele sutiã branco.

Maldição.

Então a porta se abre. Vejo uma luz dourada que vem lá de dentro formar um ângulo em meus sapatos. Olho para cima. Eris me reconhece e arregala os olhos. Sim, ela já está vestida, uma camiseta branca sem mangas agora acompanha sua calça da mesma cor. Seus sapatos são fechados e fofos, também brancos.

— Oi — cumprimento primeiro.

— O que você está fazendo aqui?

A expressão dela é de surpresa, mas não uma surpresa boa.

— Bom… Você me convidou e… — As palavras ficam difíceis de sair pois minha mente só consegue relembrar a imagem de cinco minutos atrás. — Sabe, eu precisava desse incentivo. Demorei a perceber que seria ainda mais difícil de encarar depois. Eu quero aceitar a sua ajuda.

Ela apoia uma mão sobre o peito, vejo seus olhos mais escurecidos. Por que agora ela parece até assustada?

— Não tem problema nenhum esperar o seu tempo — diz.

— Eu sei. Mas eu quero aproveitar que você está aqui. Essa pode ser a diferença.

Seus olhos, mais uma vez tão chamativos, parecem retratar algum tipo de emoção muito profunda. Ela assente devagar, mas não toma nenhuma atitude. Interpreto que, de forma alguma, ela não estava esperando me ver aqui hoje. Talvez seja esse o problema.

— Posso voltar outro dia. Deveria ter respondido na hora certa.

— Fica — ela fala firme e sorri fraco. — Eu disse que você poderia vir quando quisesse. Vamos subir juntos. — Ela faz uma pausa breve. — Preciso de mais uns dois minutos, você pode esperar? — pergunta-me.

Ela já está linda e cheirosa, será possível que fique melhor?

— Pode esperar? — ela pergunta mais uma vez. Estou tão distraído!

— Claro.

— Já volto… — Ela dá um passo para trás, voltando para o cômodo e fechando a porta sem força.

Quando ela some, eu respiro fundo e esfrego o rosto. Não vim aqui pra isso. O que eu fiz foi tão errado, não quero ficar lembrando da cena. Faço uma promessa mental de não olhar mais pra ela com outro tipo de pensamento.

Mas a vida é cruel. Fica difícil olhar para outra coisa a não ser ela. Ela abre a porta depois de algum tempo e ressurge toda vestida de branco, terminando de vestir um jaleco por cima de suas outras roupas. Seus cabelos agora estão soltos acima dos ombros, reparo em um leve brilho em seus lábios. Parece uma médica de verdade. Está muito bonita.

Ela aperta um pouco seus olhos e me olha pensativa:

— Você está bem?

— Tô… Por quê?

— Não sei. — Ela sorri nervosa. — Que bom que você veio.

— Eu que agradeço o convite. Desculpa a confusão.

Ela se vira de costas para trancar a porta, colocando a chave na fechadura. Eu desvio meu olhar, vou até caminhando em frente, para sair pela porta pela qual entrei. Talvez a saída seja evitar contato visual. Minha mente está indo longe demais, começando a criar fantasias e intensificando a vontade de ficar com essa garota.

Eris aponta para a escada no fim do corredor, indicando que é por ali que vamos subir. Ela dá alguns passos na frente e eu a sigo.

— Você comeu? — Ela pergunta de repente, olhando para mim acima do ombro.

Não sou eu que faço essa pergunta?

— Comi um pouco, e você? — pergunto.

— Eu também. — Ela sorri fraco.

Passamos a subir uma escada de mármore sujo em um corredor apertado e escuro. O som dos nossos passos estalando contra o chão ecoa pelo corredor inteiro. Quando terminamos de subir, Eris empurra uma porta e chegamos em mais um corredor. Mas esse é diferente: bem mais iluminado, com janelas abertas decoradas com cortinas finas que voam conforme o vento fraco que vem de fora; há vidros por toda a extensão do corredor, eles deixam à mostra duas grandes alas com pacientes deitados em camas separadas, mas com mesmas formas e cores. Todas têm ao lado um frasco com soro e remédios ligado a sondas que furam os braços de cada um; vejo pequenos armários para os seus pertences e, o mais importante, vejo os pacientes e duas pessoas de branco trabalhando. Devem ter cerca de vinte pacientes dentro de cada ala. Acho que estava esperando um número menor.

— Essas são as alas que nós podemos ficar. Às vezes nas de cima também, mas só em casos especiais. — Eris sussurra enquanto caminhamos juntos pelo corredor. Olhamos para dentro das instalações. — Isso porque essas pessoas que estão internadas aqui não correm nenhum risco, a princípio — ela segue sua explicação. — São apenas casos de estudo. Tiveram alguma reação inesperada, não respondem a tratamentos ou estão se recuperando, quase indo pra casa. Se por um lado isso é bom, porque não tomamos muitos sustos, por outros é ruim, porque eles sabem que não têm nada e ficam te importunando para os liberarmos pra casa.

Eu rio fraco. Vejo através dos vidros da ala esquerda alguns pacientes. Alguns dormem, outros têm acompanhantes; alguns têm disposição e mexem nos celulares, conversam entre si; outros estão simplesmente cabisbaixos, fitando o nada. Já de cara é diferente das cenas que eu via no hospital da minha família.

— Nossa rotina é cuidar deles. — Eris me diz enquanto olha através do vidro da ala à direita. — Cuidar de um modo restrito, porque não podemos intervir nos tratamentos sem autorização. Mas os técnicos estão sempre por aqui para nos ajudar, os médicos fazem visitas sempre nos finais dos turnos, e se precisarmos eles aparecem quando chamamos. Nós preenchemos muitas fichas, fazemos relatórios para os monitores, ajudamos quando nos chamam para algumas manobras. Mas, quanto a eles, na maior parte do tempo só querem alguém que os conforte. É complicado estar aqui dentro.

— Não sei se vou servir pra fazer isso… — admito sem graça. — Acho que não sei conversar com pessoas que estão sofrendo tanto.

— Vai por mim, eu também não sabia — ela me tranquiliza. — Mas precisamos de coragem pra começar. Se eles gostarem de você, pode ser que peguem leve.

Ela me tira um sorriso fraco. Mas a verdade é que estou tenso. Estar nessa posição de apoio a alguém que precisa de você parece assustador. Como é que eu posso ajudar verdadeiramente? Eu não sei. Estando aqui, diante da dor e da doença tão perto, eu pareço não saber de nada.

Damos mais uns passos para frente e ficamos parados nas portas de entrada da primeira ala. Ainda estou olhando para dentro. A primeira cama à esquerda tem um senhor idoso deitado, os cabelos bem branquinhos, olhos pequenos, a pele toda manchada com sardas marrons. Ao seu lado, uma mulher curva, os cabelos mal tingidos de loiro, mas também quase todo branco, vestindo uma saia preta e camisa de mangas brancas; os olhos escuros, sérios, duros. Chama a atenção um colar de pérolas em seu pescoço. Ela olha meio irritada para o acamado, como se não quisesse estar ali, e ele simplesmente se mantém quieto, a boca meia aberta e uma sonda passando por seu nariz. Um parece estar muito, muito distante do outro. Na outra extremidade, uma mulher com rosto fundo, magro e escurecido e de cabelos castanhos bem curtos está sentada com as pernas para fora da cama, e sua perna esquerda é uma prótese mecânica. Ela olha triste para o chão, de vez em quando olha para os outros pacientes, mas tudo nela parece sombrio.

— Está pronto? — Eris me pergunta. Sua voz parece um sopro de vida num ambiente amortecido.

— Não.

Ela me mostra um sorriso bobo.

— Relaxa. Vem aqui — chama e se afasta. Passo a segui-la até um canto do corredor com uma pia e objetos de limpeza. Lavamos e secamos as mãos. Em seguida, ela me pede para esperar e some através de uma porta em um canto ainda mais distante. Quando volta, está trazendo um capote branco e duas máscaras de proteção, entregando-me um de cada. — Toma, pode vestir.

Ponho primeiro a máscara sobre meu rosto e depois visto o capote por cima da minha roupa, encaixando um braço de cada vez. Eris se põe atrás de mim e me ajuda, dando um nó firme na faixa.

— Se eu te ver sem máscara lá dentro, posso proibir que você entre aqui mais uma vez.

Seu tom ameaçador me diverte.

— Ah, é? E você já conseguiu proibir alguém?

— Não, mas deveria. — Ela volta pra minha frente, agora também usando máscara. — Eu sei que não é por mal, mas às vezes o pessoal se descuida aqui dentro, e eu só me preocupo com eles. Alguns têm imunidade baixa e não queremos criar um problema novo.

— Claro — concordo.

— Também temos uma paciente especial que precisa de uma atenção maior. Vou te apresentar a ela. — Suspira. — E agora, já está preparado?

— Acho que sim. — Apesar do coração tenso e do corpo rígido, não posso passar o resto do dia com essa ansiedade. — Posso ficar na sua aba?

— Pode! — Ela ri. — Vem comigo!

Finalmente, entramos para a primeira ala. De imediato, sinto a temperatura mais baixa e o cheiro de produtos hospitalares. Eris caminha pelo corredor, e eu logo atrás dela. Ela cumprimenta e me apresenta às duas técnicas de enfermagem, Beth e Eurielle. Elas acenam, bem simpáticas. Feito isso, nós prosseguimos para a parte mais posterior da ala. Noto que Eris acena para alguns pacientes que a saúdam.

Paramos na frente de uma cortina branca. Antes que me pergunte o que pode haver por trás, Eris puxa devagar, abrindo caminho e me chamando com a mão. Como sempre, vou atrás dela.

Ali surge mais um leito como os outros, com dispositivo de soro, armário de pertences, mesa de cabeceira, mas aqui há mais aparelhos, vejo um monitor cardíaco e uma máquina de ventilação mecânica em descanso. A paciente tem uma carga tão diferente. Ela é negra, seus cabelos pretos estão bagunçados e ralos na raiz. Ela tem dois curativos tampados com esparadrapo perto do pescoço. Seus olhos estão fechados, mas ela não parece estar dormindo. Há sondas ligadas ao soro e a dois remédios diferentes. O que chama atenção também é um volume em sua barriga, mal disfarçado pelo cobertor azul que a está cobrindo. Ela parece bastante fraca.

— O quê ela tem? — pergunto baixo, não aguentando a curiosidade.

— Essa é a Ebba, tem trinta anos, o marido dela também é professor na faculdade, dá aula para os calouros. Ela está grávida.

Isso explica o volume embaixo do cobertor.

— É uma gravidez de risco?

— Sim, porque no mesmo dia que ela descobriu a gravidez, descobriu também um tumor na tireoide.

Tomo um susto. Olho imediatamente para Eris e ela me olha de volta.

— Sério isso? — pergunto meio incrédulo.

— Sim…

— Puta merda…

— Ela não está fazendo o tratamento porque as drogas que usam são muito pesadas para o organismo, podem comprometer o bebê. Ela escolheu prosseguir a gravidez. — Eris fala baixo e calmamente. — Alguns dias são bem difíceis. Os remédios que damos para diminuir suas dores praticamente não fazem efeito, ela sente muita dor. Chora muito, grita muito. Quando ela tem uma crise, é terrível.

— Mas o bebê dela pode nascer com uma complicação, até doente, mesmo sem fazer o tratamento — rebato.

— Eu sei. Ela sabe também.

— Ela já parou pra pensar na hora do parto? A criança pode nascer morta, o câncer não tratado vai proliferando todas as células, principalmente na tireoide.

— Eu sei, Guilherme. Como eu disse, o marido dela é professor e sabe de tudo, passou tudo pra ela também. Mas ela se nega a desistir do filho.

Eu respiro fundo e olho para baixo. Tento organizar meus pensamentos. Todas as possibilidades passam pela minha cabeça, e todas ruins. Essa mulher não deve nem conseguir se mexer sem sentir dor, imagina dar à luz. Sinto um nó na garganta, um aperto no peito.

— Quanto tempo tem a gestação? — pergunto baixo.

— Acho que está completando vinte e oito semanas.

— É um baque… — digo enquanto penso em palavras melhores, mas não consigo dizer mais nada.

— Eu sei… — ela diz e vira de frente pra mim. — É por isso que temos que tomar cuidado. Essas pessoas estão sofrendo e contam com a gente para se sentir um pouco melhores. Precisamos pelo menos tentar ajudar da melhor maneira.

— Você tem razão.

— Vamos lá… — Ela respira fundo e anda na direção contrária à minha, para voltar à parte não restrita da ala. — Quando as enfermeiras saem, cobrimos as vagas delas, mas temos uns minutos de intervalo também. A maior parte do dia fico fazendo umas planilhas no computador. Vou te mostrar como é.

Pouco tempo aqui e já pareço que perdi todas as palavras.

— Obrigado, Eris.




Ela não mentiu quando disse que poderia ficar na sua aba o dia inteiro. Eu mais pareço uma criança com medo num ambiente novo, que não sai de perto da mãe.

Eris se senta atrás de uma mesa com computador, me põe ao seu lado, e me mostra todas as anotações e relatórios que produz durante o dia. Tudo isso enquanto não tira os olhos dos internados e das enfermeiras que regularmente perguntam se podem sair com os pacientes ou realizar alguma atividade. Ela se levanta para ver Ebba a cada hora, mas ela continua só dormindo. De vez em quando, algum médico aparece, conversa com ela e com os pacientes, e como continua tudo em ordem, volta ao seu outro posto. Em outras vezes, os internados chamam diretamente por ela, então ela se levanta e muito pacientemente conversa com cada um até que a situação se resolva.

Fico surpreso com o quanto ela é acostumada com tudo. Na verdade, ela é atenciosa, cuidadosa, dedicada, inteligente, gentil. É perfeita para o que está fazendo. Ajuda sem reclamar, dá sem pedir nada em troca. Sorri, mesmo que com os olhos, para todos, mede temperatura, verifica os remédios e os travesseiros. Parece mais um anjo. Ela faz perguntas que estão previstas nos prontuários de cada paciente e anota as respostas junto com os dados que recolhe. Tudo isso sem parar para sentar nem um minuto. Ela é muito admirável, e eu me pergunto se ela sabe disso.

Ela acaba de voltar de uma vistoria. Segura um copinho de café e uma pilha de documentos, que deposita sobre a mesa antes de se sentar.

— Tenho que revisar tudo isso, acredita?

— Quer ajuda?

Pego uma das fichas, mas devolvo só de ver o monte de termos complicados. Ela ri baixinho.

— Por que você tem que fazer isso? — pergunto.

— Daqui a pouco a minha monitora passa aqui pra recolher — explica ela. — Eles atualizam os boletins de estados deles todos os dias.

Ela pega um dos documentos e se debruça para ler, segurando uma caneta para acompanhar melhor as letras tortas sem alinhamento.

— Acredita que estou sobrevivendo sem óculos? — falo aleatoriamente.

— Como assim? — Ela olha para mim.

— Quando eu tinha uns treze anos, meus olhos pararam de enxergar para perto. Então, eu tenho que ler de óculos. Mas eu deixei em casa.

— Em casa onde? No dormitório?

— Quem dera. Foi em River.

Ela ri mais alto dessa vez.

— Mas como isso é possível?! Esquecer seu próprio óculos!

— Às vezes eu posso ser bem distraído.

Olhamos juntos para a tela do computador quando surge uma mensagem de chamado.

— Opa. Seu Augusto está chamando.

— Pois é. — Olho na direção dele, é o senhor quietinho que estava recebendo a visita de uma mulher loira quando chegamos. Eris me disse que era a esposa dele, uma mulher muito ríspida e impaciente. — Ele estava dormindo esse tempo todo.

— Vai lá falar com ele — ela diz, me causando surpresa.

— Eu?

— É! Você já viu como eu faço.

— Mas sozinho? Como é que eu vou ajudar ele?

— Não sei. — Dá de ombros. — Precisa saber o que ele quer primeiro.

— Eu não tenho certeza se… — começo, mas ela me interrompe.

— Vai, Guilherme! Pode me perguntar se tiver alguma dúvida.

Ela com certeza é uma pessoa mais corajosa que eu. Mas está coberta de razão em me incentivar.

Respiro fundo e me levanto. O paciente está perto, mas a forma lenta que me arrasto até ele faz parecer que está a quilômetros. É a primeira vez que vou lidar com isso sozinho, então penso que é natural. Parece até mentira que meu pai não está aqui para soprar no meu ouvido.

Seu Augusto me lança um olhar simpático quando me aproximo.

— Oi! Posso ajudar o senhor?

— Acho que está na hora de tomar o meu remédio — responde, sendo sua voz baixa e fragilizada.

O remédio! Está aí uma coisa que eu não sei. Já tem um medicamento sendo transportado por suas veias, o dispositivo bem ao lado de sua cama ainda cheio. Chego mais perto para ler num quadro de anotações, dizendo que toda sua dose já foi posta. Então, ele não tem que tomar mais nada.

— O senhor está com dor?

— O tempo todo.

E agora?

Penso em chamar a Eris aqui agora mesmo, mas ela não vai segurar minhas pontas o tempo todo. Respiro fundo e prossigo a leitura de seu quadro.

Seu Augusto tem oitenta e quatro anos e sofre com problemas cardiovasculares. Em sua ficha há a informação de que foi indicada uma cirurgia, mas sua família não autorizou que fosse feita. Ele mantém a comorbidade controlada através de medicamentos e sempre que sua saúde se deteriora, ele volta ao hospital. Penso que ele já deve ter estado aqui tantas vezes que já deve estar entediado.

— Posso chamar seu médico para vermos o que fazer — respondo.

— Você não é médico, né?

— Não… — Solto um riso nasal. — Dá pra ver de longe, não dá?

— Não. É porque nunca vi você por aqui antes.

— O senhor quer se sentar um pouco? — ofereço ajuda. — Ficar tanto tempo deitado assim faz mal.

— É, pode ser.

Ele se mexe bem devagar, levantando suas costas do colchão. Ele aperta seus olhos, deve estar sentindo dor quando se mexe. Seguro em uma de suas mãos e ajudo a se posicionar.

— Eu só vim conhecer o hospital — retomo o assunto. — Ver como funcionam algumas coisas.

— E não vai ficar depois?

— Não sei. — Dou umas batidinhas em seu travesseiro. — Não sei nem se deveria estar aqui.

E nem se deveria estar dizendo essas coisas.

— Deveria ficar.

— É mesmo? Por quê?

— É difícil ver jovens com essa paciência por aqui — responde após terminar de se sentar. — Obrigado, viu?

Depois dessa, meu coração sente até uma pontada de felicidade.

— De nada. — Dou um passo para trás. — Vou pedir ajuda pro senhor.

— Pede um lanchinho também!


Notas Finais


~

obrigada por acompanharem.
até o próximo!


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