Encaro a casa à minha frente e quase me sinto tentada a aceitar o convite de Kiba para morar com ele em seu alojamento, não ligando para o fato de que seriam mais de doze horas atrás do volante.
Eu odeio dirigir.
O que soa ridículo, já que sou uma boa motorista.
Desistindo da ideia de ir até meu namorado — ou quase isso — , suspiro fundo. Descolando minha bunda da porta do carona, pego minha mala no banco dos passageiros e bato a porta do meu carro, indo na direção da casa do meu avô. O meu único laço sanguíneo agora, já que, há doze horas, eu havia aberto mão do meu pai.
Não dava mais para mim.
Hiashi atingiu o fundo do poço; mais um pouco, ele me levaria junto.
Pode parecer cruel abandoná-lo daquela forma, contudo, estava cansada das agressões físicas e psicológicas que sofria frequentemente na mão do homem que deveria me proteger.
Meu avô não era a minha opção, visto que tenho uma boa grana guardada e poderia me ajustar em qualquer casa pequena, em Kiri; porém, quando se é menor de idade e o pai não vale o pão que o diabo amassa, isso significa estar nas mãos do conselho, e Kurenai é uma pedra no sapato quando se trata de ajudar o próximo. Hizashi logo se tornou a pessoa mais responsável do planeta quando a assistente social — Kurenai, o meu carma — achou ele escondido nessa pocilga de cidade.
Mal sabendo ela que o velho nunca me aceitou, já que minha mãe (que, por um acaso, deu no pé com outro) abriu as pernas para o meu pai com quinze anos.
E daí veio o erro: eu.
Por um lado, me sinto satisfeita em saber que ele terá que me engolir, pelo menos, até o ano que vem.
Antes que eu possa subir pra varanda, sinto meu celular vibrar no bolso do meu jeans. O puxo, já encarando o nome da Kurenai na tela.
Solto minha bolsa e levo o aparelho até a orelha.
— Oi, Kurenai.
— Oi, Hinata, já chegou? — sua voz é estridente, porém baixa.
— Não faz dez minutos. — Suspirei.
— Graças a Deus. Estava ficando preocupada. Pensei que tinha se perdido — ela diz, com alívio na voz.
Revirei os olhos.
— Relaxa. Estamos no século vinte um, nada que um GPS não resolva — comentei.
Posso ver seus olhos revirando.
— Olha, Hinata, eu me preocupo com a sua segurança, então não me venha pedir para relaxar, porque eu não consigo quando o assunto é você. — Há uma pausa ali — Só liguei para saber se já havia chegado.
Suspiro.
Eu odeio quando ela faz isso. Quando me faz sentir um monstro por não ser grata a tudo que ela faz por mim.
— Desculpe-me. — Passo meus dedos sobre a testa — Eu estou bem, eu sei me virar. Atrasei duas horas, pois parei para comer alguma coisa e ir ao banheiro. Precisava esticar as pernas.
— Eu sei que sabe se virar, querida. Só quero seu bem, vai ser bom passar esse ano aí. No próximo ano você será uma garota livre.
Livre.
O peso dessa frase é quase uma tonelada.
Acho que nunca, de fato, fui uma garota livre. Não quando se é deixada para trás pela mãe e esquecida pelo pai. Apesar de sempre estar sozinha e me virar com tudo em relação a casa, eu nunca fui livre.
Acredito que ser sozinha não significa ser livre.
Muitas vezes, eu tentei ir embora. Pegar minhas coisas e só ir. Todavia, eu nunca consegui. No final das contas, me sentia em dívida com Hiashi, pois, ainda que tenha sido um verdadeiro monstro, era como se ele fosse a coisa mais próxima de amor que já senti.
Um amor sujo e cruel.
Entretanto, ele estava lá no final do dia.
Inspirei com força e voltei à realidade ao ouvir a voz de Kurenai na linha.
— É, eu serei livre — sussurrei.
— Tudo bem, então, querida. Irei ligar uma vez por semana para saber como anda as coisas por aí. Seu avô já está à sua espera. — Ela dá uma pausa — E, por favor, nada de brigarem.
— Vou tentar — murmurei.
— Beijos, querida, até semana que vem. — Kurenai se despediu, e eu guardei o celular, voltando a pegar minha bolsa e caminhar para minha nova casa.
Aproximando-me da entrada, não bato na porta, ela se abre sozinha e um homem alto, com cabelos grisalhos e longos, está em pé, me encarando.
A blusa havaiana me faz perguntar se ele errou de estação; mas, quando desço os olhos pelo seu corpo e vejo a bermuda tactel e os chinelos de dedos, tenho a absoluta certeza que foi eu quem errou de estação, pois está quase anoitecendo e, mesmo assim, sinto o suor criar uma fina camada na minha testa.
Nós nos encaramos por um momento. Ele parece um pouco surpreso; quase chocado, contudo, não disse nada, muito menos eu.
Não houve algo formal, como: "oi, tudo bem?", ou "que bom que chegou". Éramos verdadeiros estranhos.
Apesar de saber da sua existência, nunca fomos, de fato, apresentados. Minha mãe, antes de fugir, dizia que ele a expulsou de casa assim que soube da sua gravidez e que, desde então — naquela época —, nunca mais o tinha visto.
Passamos mais algum tempo nos encarando, até que o vi separar os lábios.
— Você é a cara da sua mãe — comenta, devagar.
Minha sobrancelha se ergue em questionamento e me pergunto se aquilo foi um elogio ou um insulto.
Todavia, não me importo.
— É, tanto faz. — Suspiro. — Onde é o meu quarto? — pergunto, dando um passo para dentro da casa ao notar que ele havia dado um passo para o lado, me dando passagem.
— Segundo andar, terceira porta. — É tudo o que ele diz.
Eu assinto, arrastando meus olhos pelo cômodo.
A sala é composta por dois sofás de couro, na cor vinho. A tevê pende na parede cinza e há uma pequena estante repleta de porta-retratos. A escada que dá acesso ao segundo andar é à minha esquerda e tem um corredor à nossa frente que, se eu me inclinar um pouco para o lado, tenho certeza que dá na cozinha.
Tudo parece estar em perfeita ordem; o cheiro é algo próximo ao de lavanda.
Tento não comparar com a minha antiga casa, mas é quase impossível.
Não é álcool misturado com urina.
— Quando Kurenai disse que viria, eu dei uma grana para a vizinha dar um jeito na casa — meu avô diz, atrás de mim, sem jeito.
Não me viro para respondê-lo, apenas assinto e começo a caminhar na direção da escada, deixando-o para trás.
Quando alcanço o segundo andar, ouço a tevê ser ligada e ele me perguntar se estou com fome.
— Não, irei dormir um pouco. Obrigada.
Ele não responde, então entendo que concordou, já que não fez mais perguntas.
Vou na direção da terceira porta e constato que as outras são: seu quarto e o banheiro. A porta está entreaberta e a empurro suavemente. Primeiro, coloco a cabeça e depois o corpo. As paredes são beges e o quarto é composto por uma cama de casal, que fica no canto da parede; ao meu lado está o guarda-roupa branco. Há um tapete roxo veludo no chão e uma mesinha do outro lado do quarto.
Como na sala, o cheiro que paira no ar é de lavanda e os lençóis são tão brancos quanto o cabelo de Hizashi.
Fecho a porta atrás de mim e jogo minha mala em cima da cama, abrindo-a.
Encaro meu relógio de pulso e vejo que ainda é cedo, não passa das sete da noite. No entanto, estou com sono. Quero tomar um banho e deitar.
E é o que faço.
Guardo minhas roupas e pego o essencial para um bom banho.
Enquanto deixo o cansaço da viagem escorrer pelo meu corpo e ir direto para o ralo do box, me pergunto se meu pai está bem.
É inevitável não pensar nele. Neste horário, em casa, em Kiri, eu estaria na cozinha fazendo a janta, rezando para ele não chegar bêbado ou drogado — pelo menos, não o suficiente para me bater até desmaiar.
Encaro a cicatriz no meu ombro, sua última lembrança, a última vez que ele me marcou.
Sou dispensada de meus devaneios quando ouço batidas na porta.
— Hinata.
— O que foi? — pergunto, colocando a cabeça para fora do box.
— Estou indo no Ichiraku comprar nossa janta, vai querer mais alguma coisa?
Instantaneamente, lembro-me que havia esquecido de trazer minha escova de dentes e absorventes, já que usei semana passada o que havia sobrado do mês anterior.
— Sim. Uma escova de dentes e absorventes — praticamente grito, passando a voz por cima da água que cai do chuveiro.
Há um minuto de silêncio até que eu ouço sua voz.
— Eu não sei comprar isso, menina. — reviro os olhos — Não dá pra pedir uma coisa fácil, não? — indaga.
Eu bufo.
— Só a escova de dentes, então.
Outra pausa.
— Certo. Daqui a pouco eu volto.
Volto para debaixo do chuveiro e acelero meu banho.
(...)
Não sei em que momento acabei adormecendo, mas sou acordada com o barulho de música alta.
Encaro o despertador em cima da mesinha e vejo que passa da meia-noite.
Minha janela está aberta, lembro-me de ter ignorado meu cérebro dizendo para fechá-la antes de deitar. O som excruciante da música corta todo meu quarto e sou obrigada a ir até a janela para ver que merda está acontecendo para o som ridiculamente alto.
Em pé, próximo ao parapeito da janela do outro lado da rua, eu vejo a casa de dois andares com luzes acesas e uma quantidade de pessoas considerável no jardim da casa ao lado, rindo e conversando enquanto seguram copos vermelhos entre os dedos.
A música pulsante vem de dentro da casa, e ninguém parece se importar com os vizinhos.
Suspiro pesado e fecho a janela, ainda ouço a música, contudo, está mais no fundo.
Meu estômago ronca e me lembro do meu avô indo buscar nossa janta, mas não me lembro de tê-lo visto chegar. Saio do quarto e vou em direção à escada. Vendo sua porta fechada, eu constato que o velho deve estar dormindo.
Dou de ombros e vou para o primeiro andar.
Sentada no balcão da cozinha, eu devoro uma tigela do que parece ser a melhor sopa do universo, não ligando para o fato de estar derramando o caldo na minha blusa de dormir.
Deus, isso é uma delícia.
Alguns segundos depois, ouço passos atrás de mim.
Viro meu tronco e encaro meu avô em pé, na porta da cozinha, coçando os olhos.
Sua roupa de dormir consiste em uma calça de flanela cinza e uma blusa de manga branca, com uma carta de baralho no centro. Ele tem chinelos de dedos e os cabelos estão soltos, caindo sobre os ombros.
Hizashi, apesar da idade, tem o corpo alto e forte, os ombros são largos e posso dizer que tem músculos no braço. Ainda que tenha uma barriga saliente, ele tem mais músculos do que gordura; a postura é rígida e o maxilar, quadrado.
É um velhote maneiro.
— Insônia? — pergunta, quebrando o silêncio.
Eu nego.
— Temos um vizinho festeiro, huh? — digo, me referindo à música. — Fiquei com fome. — Ergo a sopa.
Hizashi assente e vai até a geladeira, abrindo-a e pegando uma jarra de água.
— Não adianta denunciar, Naruto é… — ele pausa, parecendo pensativo — complicado — sopra.
— E tem um péssimo gosto pra música. — digo, levando o hashi até os lábios. — Hum, onde você comprou isso? — Aponto para a sopa — Deus, é tão boooom.
Deito minha cabeça para o lado, suspirando prazerosa.
— Não fale de boca cheia, menina. — Ele me encara sério, mas logo seu semblante suaviza. — Comprei no ichiraku, um restaurante próximo daqui, é realmente bom. — Ele dá de ombros. — Amanhã eu te levo pra conhecer a cidade, temos que te matricular em Konoha de qualquer jeito.
Ele suspira.
— Tudo bem.
Foi tudo o que consegui dizer.
Meu avô encarou o lado de fora da janela, que pendia em cima da pia, dando uma bela vista da casa vizinha onde ocorria a bagunça do vizinho festeiro.
Ele ficou em silêncio por um tempo.
— Esses jovens só ouvem porcaria — resmungou, ainda de costas pra mim. — Na minha época, essas coisas eram proibidas. — Fez uma pausa — o mundo de hoje em dia está uma bagunça.
Negou levemente com a cabeça.
— Eu até gostaria, se ele não tivesse um gosto tão ruim para músicas — me opus. — Isso nem é música de verdade, parece mais uma agressão à população.
Hizashi assentiu em silêncio.
Termino minha sopa em silêncio e vou à pia para lavar a louça que sujei, enquanto Hizashi permanece parado, encarando o lado de fora da janela.
— Teremos um longo dia pela frente, é melhor ir dormir — ele diz, girando sobre os calcanhares e saindo da cozinha.
Seco minhas mãos e o sigo pela escada.
Antes que ele pudesse entrar em seu quarto, eu o chamo.
— Vovô. — a palavra sai quase familiarizada.
E eu ignoro como ela soou bem, saindo dos meus lábios.
Seu corpo para próximo à porta, os olhos vem até mim e, por um momento, ficamos em silêncio.
— Obrigado por me deixar ficar.
Embora ele tenha sido quase obrigado a me receber em sua casa, poderia muito bem dizer que não me queria, como fez ao saber que eu estava para vir ao mundo. Entretanto, não fez. Ele simplesmente aceitou.
— Será um longo ano, huh? — eu assinto. — Boa noite, Hinata.
— Boa noite, vovô.
Ele empurra a porta e me dá uma última olhada, apertando os lábios um no outro.
Fecho a porta atrás de mim e, antes de me deitar, sussurro:
— Será um longo ano.
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