O dia seguinte começou tarde. Nenhum dos dois lembrara de colocar o celular para despertar antes de dormir, então acabaram acordando naturalmente só depois das 10h. Haviam perdido uma manhã de trabalho, mas talvez fosse melhor descansarem, mesmo. Um dia cheio e uma noite mais cheia ainda não se compensariam em menos de 9h de sono.
Maurílio foi o primeiro a se levantar, e ficou um tempo sentado na cama, pensando. Ainda estava absorvendo o que acontecera na noite anterior. Às vezes deixava seu olhar recair sobre o homem adormecido a seu lado, tentando confirmar que havia mesmo dormido uma noite inteira junto a ele. Depois de terem transado mais uma vez. Depois de ter sido consolado por ele em meio a uma crise de choro. Depois de ter aberto seu coração para ele. Depois de ter tido uma epifania dentro da Kombi. Depois de ter se apaixonado.
Talvez agora as coisas fossem se acertar… Ainda tinha vários medos, que definitivamente não desapareceriam da noite pro dia (muito menos literalmente). Mas sentia que estava dando alguns passos lentos e curtos para superá-los, e o primeiro era justamente entender que fugir dos sentimentos não os fazia desaparecer. Sempre fugira tanto, de tudo… Às vezes escapava ileso, às vezes era inevitavelmente pego no fim. Nesse caso, no entanto, já fora apanhado desde o momento em que erguera os calcanhares. Passara a corrida inteira com o perseguidor colado nele.
O próximo passo já não sabia qual seria. Aceitar que, talvez, ele e Julinho poderiam ser felizes juntos? Lidar com a possibilidade de não serem, e aprender a superar caso precisasse mais uma vez? Não sabia nem se havia alguma possibilidade que não cogitava, porque definitivamente não se imaginava passando por aquilo. Era sempre muito mais fácil fugir…
Começou a ficar preocupado com a possível crise de ansiedade que aqueles pensamentos lhe causariam, e resolveu ir ocupar a cabeça. Se esticou para pegar as roupas caídas no chão, bastante incomodado por serem do dia anterior. Precisava de um banho e vestimentas limpas para trabalhar. Não podia simplesmente ir embora enquanto Julinho dormia, não quando os dois ainda não haviam conversado direito. Mas se lembrou que mantinha uma muda de roupa na Kombi pra caso precisasse. Também não seria a primeira vez que tomaria banho naquela suíte (ainda que o dono geralmente estivesse com ele). Acabou decidindo por se arrumar ali mesmo, então.
Se levantou com cuidado para não acordar Da Van, se vestiu (preferindo colocar a cueca do avesso ainda que fosse para ir logo ali) e saiu do quarto. Com a chave da casa principal agora em mãos, pode passar por ela livremente, evitando fazer o menor barulho para não acordar dona Laury, que ele sabia que dormia até tarde. Pé ante pé, alcançou a porta de entrada, foi até a Kombi e voltou, fazendo tudo da mesma forma.
Quando chegou no quarto, Julinho ainda dormia a sono solto. Sem intenção de incomodá-lo, foi direto para o banheiro. Pegou uma toalha emprestada no armário e pendurou no cabideiro junto com suas roupas. Já no banho, aproveitou a água caindo sobre sua cabeça para relaxar, tentando não pensar em nada por alguns minutos. Depois de um tempo, no entanto, sabia que não poderia continuar evitando pensar na conversa que aconteceria em breve. Começou a ensaiar algumas coisas que deveriam ser ditas, ainda que não conseguisse se decidir muito bem por onde partir.
Limpo e com algumas coisas definidas na cabeça, fechou o chuveiro e pegou a toalha. Depois de seco, vestiu as roupas limpas e juntou as sujas em uma trouxa. Abriu a porta e saiu com ela sob o braço, ao mesmo tempo que secava os cachos com a outra mão. Finalmente Julinho estava acordado, sentado à mesa da suíte e tomando um café. Maurílio se sentiu estranho ao encará-lo novamente.
“Eu precisava muito de um banho, peguei essa toalha no seu armário” teve a necessidade de se justificar, mesmo que já tivesse feito aquilo várias vezes antes.
“Tá tudo bem, Palestrinha” finalmente ele tornava a chamá-lo por apelidos, o que era tranquilizador. Seu tom também era despreocupado “Só tinha café lá na cozinha da minha avó, trouxe a garrafa pra cá. Ela faz outro pra ela quando acordar. É de ontem mas ainda tá quente. Senta aí, pega um copo”
Dos Anjos puxou a outra cadeira da pequena mesa e se sentou. Foi colocando a bebida no copo de requeijão enquanto criava coragem para começar a conversa. O problema é que mesmo tendo tanto pra falar e depois de planejar tanto no banheiro, ele seguia sem saber como.
“A gente precisa conversar” a frase não saiu da sua boca.
Ele encarou Julinho por um instante, sentindo um ligeiro embrulho no estômago. Com o lábio inferior ameaçando tremer, assentiu, e o outro prosseguiu:
“Aconteceu coisa pra caralho ontem, né? Quer dizer, eu fiquei um tempão refletindo sobre tudo e ainda não consegui acreditar direito. Sinceridade, depois dos últimos dias nunca que eu ia imaginar que a gente taria aqui tomando café junto”
Maurílio ouvia balançando a cabeça, se controlando para não ser enfático demais, mas tudo aquilo era completamente identificável.
“Não me leva a mal não, mas tu foi um filho da puta. Eu preciso falar isso aqui” infelizmente ele concordava com isso também “Mas ontem eu te vi pela primeira vez sem a porra de uma máscara. Eu sempre sentia que você tava tentando disfarçar alguma coisa, e não só comigo. Tu nunca se expõe, Palestrinha. Abre esse sorrisão aí e finge que tá tudo bem quando não tá, ou fica puto quando só queria ficar triste, sei lá. Ontem realmente tava diferente”.
O lábio que antes apenas ensaiava um tremor agora estava descontrolado. Uma mão de Maurílio começou um movimento quase involuntário de tamborilar os joelhos por baixo da mesa. A outra segurava firmemente o copo de café, chegando até a ficar com a ponta dos dedos esbranquiçadas.
“E foi por isso mesmo que eu resolvi te desculpar. Pela primeira vez eu acreditei de verdade que tu não queria meu mal. E eu consegui mesmo acreditar que você também tava na merda com essa situação”
Passando a contorcer a mão timidamente no colo em vez de prosseguir com a batucada, o moreno começou a sentir um pouco do peso saindo de seu peito. Até então Julinho ainda não tinha verbalizado o perdão, e mesmo com tudo que acontecera na noite anterior, ele precisava daquilo.
“E acho que a etapa seguinte é a gente definir o que vai ser da gente agora, né?” Maurílio travou enquanto sentia seu estômago fazer bungee jumping.
“É…” sua garganta estava tão travada que era difícil falar “Acho que sim”
O colega baixou os olhos para a xícara em sua mão e tomou um gole lento antes de prosseguir:
“Então. Eu acho que agora que a gente já tá entendido e tá tudo melhor, que dá pra talvez, sei lá, tudo voltar a ser como antes”
Maurílio o encarou, perdido. Foi tão pego de surpresa que não conseguiu nem sentir muita coisa além da própria confusão.
“Como antes? Como assim, você quer que a amizade volte ao normal?” fazia tempo que não começava a dar palestra quando ficava nervoso, e aquele era um desses momentos “Quer dizer, eu me importo o suficiente com você para tentar, mas depois de tudo que já aconteceu, eu não sei se vai dar certo...”
“Não, dodói” Julinho o interrompeu antes que ele entrasse em looping “Eu tô falando do que tava rolando até semana passada, se é que você me entende”
Se fizessem um dicionário ilustrado de expressões faciais, a de Maurílio no momento seria a escolhida perfeita para o verbete “intrigado”. Sua testa estava tão franzida que provavelmente já formaria rugas permanentes. Aquilo não fazia sentido. Permaneceu em silêncio, e o outro se viu obrigado a prosseguir.
“Acho que é a melhor escolha, né? Aquele negócio lá de ser P.A. Tava dando certo, não tava? Foi você mesmo que disse”
Seu tom não era cruel, e sim absurdamente natural. Ainda assim, aquilo estava começando a incomodar Maurílio de verdade.
“Eu te falei ontem que não tava” finalmente conseguiu falar, ainda que tivesse precisado baixar os olhos e a voz para isso “Que eu não queria que as coisas fossem desse jeito”
“Mas tava rolando, não tava? A gente tava se dando bem, a amizade tava cada vez melhor e a nossa vida sexual também, né? Eu não sei por que fui inventar de tentar mudar isso, em time que tá ganhando não se mexe”
“Que doideira é essa, Julinho?” a absoluta falta de sentido estava funcionando como um incentivo para que Maurílio ficasse mais seguro para se manifestar “Não foi você que além de falar primeiro que não queria mais essa merda, reforçou isso ontem a noite? Já mudou de ideia?”
O loiro deixou o copo sobre a mesa e se recostou na cadeira, sem parar de olhá-lo. Suspirou e deu de ombros antes de responder, com displicência:
“Não é como se eu tivesse mudado de ideia pra uma parada completamente diferente, eu só voltei atrás”
Os olhos do piloto da Kombi iam aos poucos se perdendo à medida em que o outro falava. Não conseguia mais enxergá-lo por completo e sua cabeça começava a rodar.
“Mesmo depois que eu…” começou, mas a insegurança deixou a frase morrer.
“Depois que você o que?”
Com dificuldade, Maurílio focou sua atenção no rosto do colega.
“Depois que eu admiti que tô apaixonado por você também?”
Se Julinho não tivesse insistido, ele não teria continuado. Já tinha sido difícil confessar aquilo uma vez, mas era ainda mais difícil confessar a segunda, principalmente naquela situação. Da Van coçou a barba, passou a mão nos cabelos e deu sequência, sem olhar para ele.
“Olha, dodói, não me leva a mal, não. Eu não menti. Eu senti por você coisas que não costumo sentir. Mas eu nem sei mais dizer se é isso mesmo, ou se eu confundi tudo. E ainda se for, eu não sei se tenho cabeça pra passar por todo o transtorno que essa parada pode trazer”
Um soco doeria menos. E Maurílio tinha parâmetro mais que suficiente para fazer a comparação. Se estivesse de pé, precisaria se sentar para parar de sentir a cabeça rodar. Já estando sentado, o máximo que podia fazer era apoiar os cotovelos na mesa e a testa nas mãos, tentando se manter o mais estável possível. Não conseguia responder imediatamente, já que mal podia organizar os próprios pensamentos.
Parecia que as coisas sempre aconteciam no tempo errado. Na semana anterior, tudo que ele queria (ou achava que queria) era que Julinho dissesse que estava confuso quando confessara sua paixão por ele. Naquele momento, em que ele precisava da sua mais absoluta certeza, ele não a tinha. Talvez ele merecesse ficar na merda, afinal de contas.
“Tu não vai falar nada não?” Julinho enfim perguntou, começando a demonstrar incômodo por seu silêncio.
“Eu…” pausou, sem muita força. Inspirou fundo e se obrigou a olhar nos olhos de Julinho para continuar “Eu não tava esperando por isso. Lógico que eu não achei que tudo fosse se resolver magicamente agora, mas não pensei que a gente fosse voltar à estaca zero. Bem, às avessas…”
Ele riu triste, e conseguiu sentir a solidariedade no olhar que Julinho o lançou. Reuniu então toda a coragem que tinha para dar continuidade:
“Agora é a minha vez de falar que eu não vou conseguir manter isso, não. Eu demorei, mas agora eu tenho certeza do que eu tô sentindo, e não vai ser bom regredir e fingir que não é nada. Também não vou nem pedir, e nem prometer que a gente vai conseguir manter a amizade como era antes. Acho que isso a gente vê com o tempo, né? A gente vai continuar trabalhando junto mesmo, uma hora a gente descobre se não der mesmo”
Da Van o ouvia atentamente, sem interrompê-lo (o que sempre parecia estranho demais). Maurílio poderia até aproveitar um momento como esse para falar cada vez mais, mas sua coragem ia diminuindo a cada palavra proferida. Por fim, resolveu não se prolongar.
“E é isso, né? É melhor eu ir embora de uma vez, mas a gente se vê hoje ainda, né? Aí a gente já começa a ver como isso vai ficar”
Ele se levantou da mesa, sem ter dado um único gole no café. Não conseguiria engolir de todo modo, com aquele nó na garganta que ainda demoraria a passar. Se despediu de Julinho com um mero aceno. O piloto da Sprinter mantinha a expressão séria e indefinida no rosto quando acenou de volta. Não falou nada e nem reagiu muito mais. Provavelmente seria mais fácil assim, então Maurílio agradeceu mentalmente.
Fechou a porta da suíte atrás de si ao passar por ela. Cruzou o quintal meio trêmulo, e foi firme em se despedir, alegando um atraso, ao se deparar com a Dona Laury acordada. Chegou à Kombi, jogou as roupas sujas que ainda carregava no banco do carona e foi embora.
…
Julinho não sabia por que havia feito aquilo. Nada, nenhuma palavra do que dissera a Maurílio era verdade. Quer dizer, a parte que havia ficado puto com ele e depois o perdoara, sim. Mas se ele o havia perdoado, por que mentir que não sabia se estava realmente apaixonado por ele?
Não queria se vingar. Vê-lo arrasado da forma como ficara ao ouvir suas palavras não o fizera se sentir nem um pouco recompensado. Na verdade, esperava que Maurílio ficasse bravo, que o ofendesse e saísse pisando duro. Não imaginava ver seus olhos brilhando em lágrimas contidas e seus passos lentos ao deixar sua casa.
E ainda que esperasse uma reação de raiva, irritá-lo também não era sua intenção. Então por que? Não podia responder a pergunta, e só sabia que não conseguira ter outra reação além daquela ao se deparar mais uma vez com Maurílio naquela manhã, o olhando esperançoso e receoso ao mesmo tempo.
A última vez que havia olhado nos olhos dele daquela forma, também estava esperançoso. Chegara a dormir sorrindo e em paz, mas o sentimento não durou muito. A noite fora agitada, ainda que tivesse tentado não se mexer muito para não despertar Maurílio. Acordava de um sonho dentro do outro, e em todos ele estava sozinho no quarto, molhado em suor e lágrimas, sentindo ainda o calor do lugar onde o outro dormira.
E então, pela manhã, Julinho estava novamente sozinho. Chegou a acreditar que estava em mais um sonho, até finalmente conseguir se certificar que era a realidade. Sentiu um alívio quando Maurílio voltou para o quarto, e fingiu ainda estar dormindo, até ele entrar no banheiro e ligar o chuveiro. Mas quase imediatamente depois já começou a sentir a angústia que o acompanhava até agora.
O sentimento ruim era mais forte que ele. Crescera dentro de si de tal forma que fora o que empurrara as palavras que saíram de sua boca. Por que ele era assim, porra? Não podia simplesmente admitir que já estava criando expectativas desde o momento em que Maurílio aparecera em sua porta? E suas expectativas não poderiam ser mais bem satisfeitas do que ouvindo dele tudo o que esperava há semanas.
Mas talvez fosse justamente por esperar tanto. Por estar tão vulnerável, tão suscetível a se deixar levar, por estar tão apaixonado é que sentia tanto medo. E se estivesse sendo trouxa de novo? Sentia de verdade que Maurílio estava enfim no mesmo patamar que ele, mas e se isso fosse apenas seu raciocínio enviesado pelo que ele queria que Maurílio sentisse?
Não iria conseguir qualquer resposta agora, a não ser a de que ele tinha mesmo muito azar ou era muito burro de passar por aquela situação logo antes da gravação do último programa da temporada. Poderia ter esperado até o dia seguinte, mas em vez disso teria de encarar o colega mais uma vez naquele dia, depois de tudo aquilo…
"Que seja o que Deus quiser…"
...
Aparentemente, o que Deus queria era provocar. Como sua seleção inteira o fazia pensar em Maurílio (e ele até vinha se torturando nas últimas semanas, só que já havia sido autodestrutivo demais por um dia), arrancou fora o pen drive com seus sambas do som. Mas como, por outro lado, não gostava de dirigir sem música, ligou o rádio.
Quando a gente tenta de toda maneira dele se guardar
Sentimento ilhado, morto, amordaçado
Volta a incomodar
"Hum…" Mudou a estação.
Um toque de carinho, aquele som
Sem perceber aos poucos me entreguei
Foi um lance de desejo antigo
Não sei o que aconteceu comigo
Não, não, não...
Love of my life, you've hurt me
You've broken my heart and now you leave me
Love of my life, can't you see?
Bring it back, bring it back
Só podia ser brincadeira… O Fisk podia não estar em dia, mas não precisava entender muita coisa pra saber que era melhor não insistir. Se dando por vencido, desligou o som e fez o resto do caminho até o estúdio em silêncio, mesmo.
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