Pouco a pouco meus olhos se acostumaram à luz solar que invadia o quarto pelas frestas da cortina. Me espreguicei e senti meu corpo um pouco doído, e me sentei na cama, encarando meus pés. Eu me encontrava nua, agarrada ao cobertor e semienrolada nele, tipo aqueles filmes clichês de romance onde não querem expor a nudez da atriz, mas não, eu sempre acordava de manhã enrolada nas cobertas, me mexia muito na cama. Olhei para o lado, e ele não estava ali, como eu esperava que fosse acontecer. Saí da cama, me esticando novamente, e revisando todos os acontecimentos de ontem, desde ao assassinato do Gordon, ao fato de eu ter transado com o Coringa.
Eu mal podia me olhar no espelho depois disso. Não conseguia encarar a pessoa que eu era agora, uma mulher que se deixa levar por uma paixão e se envolve com um psicopata. Definitivamente eu era o “orgulho” da família. Pensando nisso, me culpei enquanto tomava uma ducha, quando penteava meus cabelos e terminei minhas atividades matinais, sem focar no que estava fazendo pois em minha cabeça rodava um turbilhão de acontecimentos. Coloquei um vestido modelo vintage rosa transparente e decidi ir para a cozinha, ainda me lembrando da noite com ele.... Foi perfeito, em todos os sentidos.... Me distrai tanto nas lembranças e pensamentos da minha noite com ele, que acabei deixando a agua ferver demais na garrafa. Tirei da tomada rapidamente, e coloquei na xícara junto aos saquinhos de chá. Cocei a minha nuca, afastando os cabelos do meu ombro, suspirando profundamente.
Fui pega de surpresa no meio do meu chá, quando me atentei a ruídos estranhos vindos do quarto onde eu guardava lembranças da família e objetos da casa do vovô. Eu estava sentada à mesa respondendo mensagens que Seven havia me mandado ontem à noite, e acabei presumindo que talvez ele ainda estivesse aqui. Peguei minha xícara e caminhei devagar até o local, me preparando para algo. Haviam vozes de pessoas vindas daquele cômodo, e me assustei, eram vozes familiares. Abri a porta de supetão, e enxerguei Coringa, em pé, olhando para minha velha TV de tubo, que rodava uma fita antiga. Ainda segurando a xícara encarei ele, que percebeu que eu estava ali e devolveu um olhar curioso e calmo a mim.
— Pensei que não estaria aqui.... — Falei, automaticamente.
Fiquei curiosa para ver o que ele assistia. Não precisei de mais tempo para perceber que aquela era uma gravação que eu havia feito em Nova York, no primeiro dia de trabalho de tia Alice no World Trade Center. Eu paralisei, olhando a mim mesma na tela mais nova, e o sorriso de Alice ao se despedir de mim enquanto eu ria e brincava com ela.
— O que está fazendo aqui?
— Eu não queria te acordar. — Disse ele, em tom baixo e sombrio. — Queria saber mais sobre você, já que conhece meu passado.... Sabe, antes, quando você abandonou sua casa fugindo de mim, eu já havia vindo aqui e visto algumas coisas. Mas não tive tempo de explorar mais a.... Fundo. Eu tava pilhado demais com a descoberta do seu avô e... — Ele sorriu, não genuinamente, e soltou uma risada nasal. — A vida é... Uma coincidência engraçada.
Engoli o seco, e assenti, mordendo os lábios e olhando brevemente para o chão.
— Quer chá?
— A nossa noite de ontem foi....
— Eu vou fazer um chá para você e.... — Emendei, impedindo que ele falasse qualquer merda que fosse me amolecer de novo.
— Catarina. — Ele foi firme quando disse meu nome. Olhei para ele, imensamente doída por dentro.
— Sinto muito pela sua tia.
Uma bola se entalou na minha garganta, e senti meus olhos transbordarem. Pisquei várias vezes a fim de secá-los. Na altura do campeonato, ainda era surpreendente ver ele esboçar sentimentos. Ou talvez, não sei, fingi-los. Ele parecia me analisar, e em seus olhos senti compaixão. Ele sabia me manipular, isso era falso, eu tinha certeza. Ele não se importava com meu sofrimento, até onde eu sei. Se bem que alguns acontecimentos passados provavam o contrário, se bem que eu não tinha certeza de nada. Tanta coisa aconteceu e estar com ele ainda era um tiro no escuro. Queria muito saber o que se passa na sua cabeça. Mas talvez eu enlouquecesse quando visse tudo.
— Não passou pela minha mente que vir para Ghotam significaria mexer com a merda do meu passado. Não esperava encontrar você aqui, foi tudo acaso, coincidência. — Ele explicava isso para mim, e em seu olhar eu via o Coringa, o palhaço, não rapaz que eu tive a chance de conhecer noite passada. — Você sabe demais de mim, e.... Garota, você tem um grande poder sobre mim, eu.... Você me deixa confuso
Eu esbocei surpresa. Quem estava manipulando quem nessa relação maluca?
— Não.... Você fez tudo isso. Você me manipula, e....
Fui interrompida pela sua risada baixa. Estremeci. Fazia um bom tempinho que não a escutava.
— Você está errada. — Ele deslizou sua língua pelos cantos da boca, um gesto que fazia sempre que estava incomodado com algo, ou apenas coçando a pele retorcida. — Está errada. — Ele engoliu saliva e balançou a cabeça negativamente — Você mexe comigo.
Dessa vez seus olhos negros demonstravam desejo, vislumbre e brilhavam enquanto dizia isso. Ele se aproximou de mim, e pausou a minha gravação na TV que eu de maneira torturante ouvia de fundo enquanto discutia com ele.
— Sinto muito por isso. Eu apenas faço o que o script manda. Na verdade, eu sou idiota porque faço o que meu coração manda, não minha cabeça. Se eu fosse sensata, expulsaria você daqui e nunca mais olhava para sua cara.
— Mas você não quer fazer isso. — Ele sorriu de lado, ciente do seu poder. — Não consegue. Está viciada nisso, assim como eu. No fundo você gosta desse jogo, mas não quer admitir.
— Não, obrigada, eu não perdi a sanidade completamente.
— Deveria. Por experiência própria, sabe, deu certo comigo. — Ele soltou uma risadinha, irônico, e logo tornou a ficar sério.
Balancei a cabeça, irritada.
— Não acredito....
— Ora, vamos, não se chateie. Sei que sou um péssimo comediante. Eu não tenho a menor graça. — Sorriu ele, abertamente.
Ah, a hipocrisia.
Seu olhar se tornou passivo quando ele notou que eu estava profundamente mexida.
— Ei.... Não faça essa carinha. — Ele segurou minha cintura, e tirou a xícara que já estava fria e pôs em cima de uma pilha de livros em cima da cadeira, que estava ao nosso lado. Ele acariciou meu queixo com o polegar. — Você que eu amo você, e eu esperei por muito tempo ter uma noite como aquela com você. Poder te tocar, e sentir que você compartilha do mesmo desejo que eu, foi.... — Ele fechou os olhos, como se os acontecimentos viessem em sua mente.
Ele sussurrava, e eu estava ligeiramente arrepiada. Olhei em seus olhos, e ele demonstrada satisfação diante da minha reação. Ele sabia que eu não parava de pensar na nossa noite, apesar d’eu me culpar por isso.
Suspirei, e senti nossos lábios se tocarem, uma iniciativa que veio dele. Senti sua boca pressionar-se contra a minha, e eu entreabri meus lábios, e nosso beijo se encaixou perfeitamente. Interrompi o beijo, pegando meu chá, e virando o rosto.
Coringa estalou o pescoço movimentando sua língua dentro da boca e umedecendo seus lábios. Eu me pegava admirando seus poucos gestos e seus trejeitos, e reparando como ele era lindo.... Seus cabelos bagunçadinhos, o queixo quadrado, seus olhos, a extensão de seu pescoço e sua camisa desabotoada no peito, a forma como ele não ligava para sua aparência, tornava sua beleza genuína e misteriosa. Para mim, tudo era sensual e convidativo. Balancei a cabeça, lutando contra isso.
— Eu tenho tantas perguntas sobre você eu meu avô.... Como.... Tudo aconteceu.
Coringa balançou a cabeça e olhou para a parte de cima do uniforme militar do vovô que eu preservei em um manequim, que estava forrada com um plástico. Ele se encontrava num canto da sala, como uma antiga relíquia do passado.
— É uma história antiga que vai continuar enterrada junto ao seu avô. Do mesmo jeito que eu enterrei ela dentro de mim. — Revelou ele.
— Você era novo quando se alistou, não é? — Perguntando. — Vovô comentava algumas vezes sobre você, dizia que era um soldado eficiente e enérgico, e ele se lamentava do fato de você ser tão jovem e ter que carregar aquele fardo. — Me esforcei para lembrar de algo a mais. — Ele nunca me contou as histórias mais pesadas do que realmente acontecia, mas.... Por favor, eu preciso saber! Vocês eram muito próximos?
Não resisti. Eu precisava saber de algo.
O olhar dele era distante, e ele parecia nervoso, prestes a um surto. Era seu ponto fraco, eu havia colocado o dedo numa ferida antiga dele.
— Eu já disse o que precisava saber, Catarina. — Ele foi direto e curto. Ele pôs a mão em meu rosto, fazendo com que eu o olhasse nos olhos. — Seu avô era um homem de honra. Ghotam assassinou ele. Essa cidade não é diferente de um campo de batalha. Existem soldados, civis, terroristas, justiceiros e refugiados, todos com um propósito, todos jogam em favor de si mesmos. Mortes. Dor. Ódio. Corrupção. Você bem sabe, a polícia não serve ao povo, serve à máfia e os políticos dessa cidade estão preocupados em encher os bolsos de dinheiro. Todos aqui são corrompíveis. É isso que eu vou provar. — Dizia ele, de forma frenética e rápida, alterando a voz com a mão em meu rosto para que ficasse próximo ao seu, e eu entendesse bem o recado e não perguntasse mais.
— Eu sei como funciona Ghotam. — Tirei sua mão do meu rosto bruscamente. — Mas também sei que nem todos são podres. Você tem uma ideia distorcida, eu me enganei quando disse que você era incompreendido, você não está nem aí para porra de ninguém, você só quer ver Ghotam queimar. Gente como o Batman atrai gente como você. Você me manipula, eu sei e você sabe disso. Você me fez amar você. Você me machuca.
Ele pareceu se irritar com o que eu disse, e deslizava sua língua pelas cicatrizes de maneira repetitiva. Ele balançou a cabeça, e escutei um celular tocando em seu bolso. Ele deu as costas a mim, visivelmente alterado e atendeu. Tomei um gole do meu chá frio em silêncio, paradinha.
— Já tô indo. — Respondeu ele, desligando.
Imaginei ser Jack Frost. Coringa me encarou, sem esboçar nada, e fez menção em passar por mim. Me afastei da porta dando passagem a ele, de cabeça baixa. Ele andou até o fim do corredor em direção a porta, e eu o observei.
— Vai embora? — Tive a coragem de perguntar. Eu não o deixaria sair assim, sem me falar nada.
Ele parou, com os ombros tencionados a frente, indicando uma possível ansiedade e irritação, se virou para mim, sorrindo de lado, me lançando um olhar provocativo.
— Ainda não terminei meu “trabalho” em Ghotam. — Ele piscou para mim e abriu a porta, olhando para os lados atento e fechou-a, sem olhar para trás.
Terminei meu chá, ainda atônita, e fechei o quartinho, dessa vez o trancando, e guardando a chave no meu bolso. Me sentei no sofá, e liguei o rádio. Tocava Ice Cube – It Was A Good Day. Minha ansiedade estava a mil, por isso me concentrei na música, na letra, e refleti sobre tudo que acontecera de ontem para hoje.
“(...)Tudo certo?
Chego em casa e direto pro chuveiro
Nem me preocupo com os covardes
Ontem mesmo esses otários tentaram me matar
Eles viram a policia e passaram direto por mim
não apertaram o gatilho, nem olharam pra mim
enquanto eu corria pelos becos(...)”
Hoje foi um bom dia.
Engraçado, como sempre gostei de rap, uma coisa curiosa porque nunca associavam isso a minha personalidade (como se ouvir rap fosse um estilo restrito), porque sempre ouvia quando trabalhava, nos intervalos, quando eu almoçava dentro do carro, etc. Não prestei atenção na letra, apenas concentrei meus pensamentos em tudo que vivi com o Coringa, e me recordei da vez em que o vi sem sua pintura facial. Ele havia me dito algo como soldados, bombas, que seu pelotão havia morrido em uma emboscada.... Imaginei que algo acontecera com ele, e foi bastante traumático. Pus a mão na testa, cansada. Decidi me vestir, pus uma calça jeans mom, uma camiseta preta do star wars, enfiei ela dentro da calça, pus um cinto, minhas botas e meu casaco. Apanhei minha bolsa e reuni tudo de importante, chaves, documentos, coloquei os óculos e sai naquela manhã ensolarada em meu táxi, rumo ao condomínio onde Seven morava.
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