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História Colcha de Retalhos - Capítulo 1 - Procure um pano


Escrita por: LouVieira

Notas do Autor


Estou feliz que estejam aqui.
Conversaremos mais no futuro!
Boa leitura :)

Capítulo 1 - Capítulo 1 - Procure um pano


Ai meu Deus do céu.

Certo, era só respira em nome do Senhor Jesus. 

Olhei para o homem à minha frente. Rosto que deve ter sido esculpido por algum artista romano com aquele lábios grossos e franzinos, sua pele parecia tão lisa que fiquei tentada a perguntar que dermatologista ele frequentava (quem sabe ele permitiria eu dar uma conferida na textura?), os cabelos negros estavam devidamente cortados e ao contrário da média atual de homens, ele não tinha nenhum indício de barba, nem bigode. Só dava um olhar mais jovial para ele que deveria ter… Uns trinta? Trinta e três? 

Caso ele me dissesse que tinha dezoito anos e estava só sentado na cadeira do diretor enquanto o dono do lugar não chegava eu acreditaria. Se não fossem suas vestimentas (e o corpo por baixo delas), claro. Nada de uniforme escolar, ali a minha frente tinha um homem com blusa social de mangas longas de uma cor azul meio desbotada que iam até o pulso. Fiquei tentada para saber qual calça ele usava, mas de onde estava sentado, seria um pouco estranho eu me jogar por cima da mesa para conferir.

Foi só quando se dignou a olhar para mim, recém chegada na sua sala, e pediu para que eu me acomodasse na cadeira de madeira do outro lado da sua mesa, é que eu notei seus olhos verdes claros. 

É. Para. Glorificar. De. Pé.

Senti uma gota de suor escorrer por entre meus seios. 

Nosso Senhor Jesus Cristo. Que é filho, que é Pai e também Espírito Santo. 

Aquele homem a minha frente também era o pacotão perfeito. Ele era três em um. 

Imaginei minha tia Rita ouvindo meus pensamentos por um breve segundo. Ela iria querer bater o cabo da vassoura na minha cabeça, até que este se quebrasse ao meio, e iria gritar aos quatro cantos que eu era a pior herege que nossa cidade já viu. 

Olhem bem, ela tem sua razão… Logo eu que organizava o campeonato de puns no fundo da igreja durante toda a missa de domingo (e sim, eu ganhava dinheiro com isso), estava ali agora fazendo a analogia mais pecadora de todas. 

Aquele homem a minha frente era um deus sim, mas longe demais de ser Deus Todo Poderoso, com todo respeito. Tia Rita, me perdoe, mas as chances de eu ir para o céu depois de tudo que já fiz eram baixas de qualquer modo.

-Nome. - Quase pulei da cadeira ao ouvir sua voz rouca dirigida a mim. 

-Jesus. - Falei num rompante.

Seu cenho franziu, os lábios apertados entre impaciência e um sorriso. A gotinha de suor se desmanchou no final do meu sutiã. Remexi-me na cadeira pequena demais para meus quadris largos demais. 

-Perguntei o seu nome. 

-Helena. - Limpei a garganta. - Helena deGroot. - Ele já estava pronto para revirar os blocos de papel a sua frente, quando vi a necessidade (totalmente infundada) de acrescentar: - É holândes. O sobrenome. Groot se escreve como aquele personagem do Guardiões da Galáxia… O Groot.  - Seus olhos verdes voltaram para os meus. Eu quis virar papinha de criança naquela cadeira pequena maldita. - A forma como se escreve. - Completei. 

 Senhor, porque não cala a boca desta pecadora? 

-Groot… O que fala “I am Groot”, sabe? - Porque eu tive que fazer a imitação da voz do personagem que era uma árvore? -  Enfim, era só para… Ajudar a procurar. 

Soltei um ar que nem sabia que estava prendendo em cárcere privado em meus pulmões. A sala estava pequena demais, quente demais e eu estava pensando seriamente em encenar alguma desordem mental e sair dali correndo fingindo que estava sonâmbula. 

Lembrei-me do quanto eu precisava do dinheiro e que essa tinha sido minha 8ª entrevista só nos últimos 10 dias.

-Então, Helena… - Ele puxou meu currículo do bolo de currículos e me senti apenas uma vaquinha na fila do sistema de abate. - Vinte e cinco anos. - Silêncio. Olhou para mim e então de volta para os papéis. Eu parecia mais velha ou nova do que ele pensava? - Natural de Sergipe? - Franziu o cenho e eu quis jogar o grampeador gigante na sua cabeça. Odiava esse tipo de reação.

-Sim. - Um aceno breve. - Nordeste. Sergipe. O menor estado do Brasil. 

-Notei pelo sotaque. - Repuxei os lábios, sem humor. Eu duvidava muito que 

ele soubesse qual o sotaque característico da minha cidade natal, mas é uma discussão que não vem ao caso agora. - Está bem longe de casa. - Constatou o gênio. 

-Já considero São Paulo minha casa também, caso o senhor me permita acrescentar. 

O diretor pareceu minimamente constrangido e gostei disso. Ajeitou-se na sua cadeira gigante e que parecia muito mais confortável do que aquela minúscula que eu estava e começou seu discurso:

-Sou o Bernardo Monteiro, diretor do colégio Cora Coralina. Como você já deve saber, somos uma das escolas mais renomadas da cidade. - Passou a página do meu currículo. Ele era um tipo diferente de Power Ranger ou o quê? Seus olhos vasculhavam as linhas rapidamente e ele falava ao mesmo tempo: - Estamos no mercado há 32 anos. Nós nos orgulhamos em trazer a tradição e modernidade para dentro da nossa instituição. - Passou outra página. Eu só conseguia pensar nas novas gotas de suor que escorriam por entre meus seios. - Temos um compromisso de conquistar o máximo de aprovações no vestibular possível, estampar o rosto de nossos alunos em cada outdoor pela cidade, formar pessoas competentes para o mercado de trabalho e para economia mundial.

Eu odiava esse discurso com todo meu ser. Estava prestes a revirar os olhos, quando sua atenção voltou para meu rosto. Ajeitei-me na cadeira, sentando-me o mais ereto que conseguia, sentindo que tinha sido quase pega no flagra.

-Valores que a senhorita deve prezar também, imagino. 

Balancei a cabeça de forma tão intensa como um daqueles bonecos de cachorrinho com a cabeça solta que as pessoas costumavam ter na frente do painel do carro. Estreitou os olhos verdes na minha direção. Parecendo tão sério, tão duro… Minha boca acumulou vergonhosamente um pouco mais de saliva que o normal. 

-Porque você tem interesse em participar do nosso corpo docente? - A forma curiosa como ele perguntou fez soar como se estivesse fugindo do protocolo de entrevista de emprego. 

Respirei fundo e fui genuinamente sincera nas minhas próximas palavras:

-Gosto do que faço. E não pense que estou romantizando o trabalho de uma professora… - Ele tombou as costas no encosto da cadeira, dando toda sua atenção à mim. - É árduo, é exaustivo e devo dizer pouco valorizado. 

Levantou uma sobrancelha, meio que me desafiando a continuar.

Adivinha só? A herege desempregada continuou. 

-Mas vejo todo aluno com potencial de estampar o rosto nos outdoors por toda a cidade. - Refleti um breve momento. - Ok, talvez nem todos… - Vi que o diretor definitivamente agora estava só zangado. - Cada aluno é um ser individual, complexo e com suas próprias bagagens. Cada um dos seus alunos são donos de sonhos, palpáveis ou não. Tenho certeza que a maioria quer alcançar um futuro profissional brilhante e isso é completamente admirável! - Dei de ombros, tinha chegado um determinado momento que eu estava só falando para mim mesma. - Mas quero mostrar que temos que trabalhar em nós como seres individuais e únicos também! Quero que eles vejam a importância de reconhecerem suas histórias e quererem fazer delas tão importantes quanto as histórias escritas nos livros. 

Ele suspirou. Juro. Ele suspirou. 

-Helena… - Jogou meu currículo na mesa a sua frente e este, mais leve do que deveria, deslizou até chegar a mim que logo notei que as poucas folhas já estavam inteiramente rabiscadas. O diretor Bernardo Monteiro tinha feito seu dever de casa antes. - Eu gosto do seu discurso, não me leve a mal. 

Manti o olhar fixo no ponto entre suas sobrancelhas. 

-A senhorita veio de uma cidade pequena. - Eu conhecia aquele repertório. Eu tinha ouvido sete vezes nos últimos dias. - Acabou de concluir seu mestrado em letras português na USP. Senhorita Helena, sua experiência curricular é minúscula para o que é necessário para entrar nesse colégio. - Quis roubar um fio do seu cabelo para fazer um boneco de voodu dele. - Olhe… Li alguns dos projetos de pesquisa que foi a autora principal durante a faculdade. Realmente muito interessantes, mas aqui priorizamos mais que projetos de faculdade e pesquisa no mestrado.

Era algo como um dos foras que levei de vários caras até ali. Só que pior. 

-O seu perfil não é exatamente o perfil do nosso corpo docente. 

Espero que tia Rita tenha me perdoado por todas as competições de puns na sua paróquia e esteja rezando muito por mim lá de Aracaju. Eu vou precisar.

-Eu sei o que o senhor muito provavelmente vai me dizer. - Rosto erguido, tom decidido. - Eu quero ser diferente, diretor, e acredite em mim… Eu vou fazer a diferença. Na escola do senhor ou em outro lugar.

Travamos o olhar por um breve segundo ou dois. Eu senti umas pitadas de desafio e algo mais que não consegui decifrar naqueles olhos verdes bonitos que agora só me traziam o gosto de descontentamento. 

-Se é só isso que tem a me dizer no momento…

Antes que ele se levantasse daquela cadeira monstruosa, eu tratei de me erguer. Ou ao menos tentar. Os braços da cadeira de madeira eram tão estreitos que ficaram presos no meu quadril e eu fui arrastando a cadeira como se fosse um cachorro limpando a bunda no chão. Vergonhoso e nada satisfatório.  Incrivelmente o diretor Bernardo tinha uma cor rosa em suas bochechas e olhava para os papéis amontoados da sua mesa de forma mais fixa que o necessário. 

Tia Rita, a senhora rezou errado. 

Apoiei a bolsa na mesa a minha frente, sob os olhares do diretor que jamais seria meu chefe e empurrei os braços da cadeira de volta para o chão. Desgrudando dos meus quadris que acomodavam muito bem minha calça de tamanho 46 e cintura alta, a cadeira caiu com um baque deselegante no chão de madeira.

-Só para constar… - Falei com o resto da minha dignidade e bochechas vergonhosamente vermelhas. - Talvez seja interessante investir em cadeiras para adultos no futuro.

-Vou lembrar disso se você preencher uma das vagas, senhorita deGroot.

Eu perguntaria porque diabos ele estava falando no plural, já que me inscrevi somente na vaga de professora efetiva de redação para o ensino médio, que imaginava que era a única disponível, mas eu preferia ter que engolir o grampeador gigantesco da sua mesa que perguntar mais alguma coisa a aquele homem com ar boçal e prepotente. 

Puxei minha bolsa de volta, jogando a alça comprida no ombro e pedindo a licença de Vossa Majestade para sair dali. Fiz questão de requebrar meus quadris largos demais até a porta de madeira cara demais, torcendo para que o grampeador caísse magicamente no meio da suas pernas até o final daquele dia. 

Assim que fechei a porta de forma mais silenciosa possível, me deparei com a senhora da recepção, atrás do seu balcão que mais parecia uma muralha. Foi para Dona Selma que tinha entregado meu currículo no início daquela semana desastrosa. A senhora de cabelos pretos e repuxados em um coque sorriu gentilmente na minha direção, as rugas aparecendo mais pronunciadamente, e então cheia de expectativa me perguntou:

-Foi tudo bem, querida?

Eu quis chorar, do mesmo modo que fazia quando saía de todas as provas de matemática, física e química no colégio, mas obviamente os anos na cara me fizeram ajustar os ombros e devolver o sorriso.

-Dona Selma, sinto que talvez em outra oportunidade. 

Em outra vida.

Sua expressão encantada se desmanchou bem diante dos meus olhos. 

-Ah não… - Ajeitou os óculos miúdos do rosto. - O senhor Bernardo deve está só em algum dia não-tão-bom-assim. 

Sem jamais parar de repuxar os lábios, peguei a palma da sua mão enrugada nas minhas. Dona Selma me lembrou minha avó assim que a conheci e automaticamente eu tinha gostado dela. 

-Outra oportunidade vai surgir, eu tenho certeza. 

Sua feição gentil voltou a tona. 

-Claro que sim, querida, em nome de Jesus.

Balancei a cabeça, fechei os olhos e ergui uma das mãos para cima de forma discreta.

-Amém. - Foi o “amém”, mais profundo que já proferi. 

Dona Selma me ofereceu mais algumas balinhas do pote da recepção e eu roubei ao menos 7 só para aliviar minha raiva de toda aquela situação. Já estava me despedindo, quando lembrei de perguntá-la algo:

-Dona Selma, o senhor Bernardo citou que há vagas disponíveis. No plural. Eu pensava que a única era de professor efetivo de redação para o terceiro ano do ensino médio. 

-Ah não, querida. Temos duas vagas disponíveis. Esta que citou e uma de professor temporário. A professora de redação das turmas do 6º ano entrará de licença maternidade muito em breve. A previsão é que professora Liliana tenha uma linda menininha até o final do mês. Não é lindo? - Dona Selma sorriu e me entregou mais uma balinha de algum lugar que não tinha reparado. - Leve essa aqui com você, eu escondo dos alunos porque é a minha favorita. 

***

Senti meu celular vibrar assim que saí do enorme e renomado colégio Cora Coralina. Sabia que era Ana Maria e que ela estava ansiosa em saber como tinha sido minha  última entrevista da semana. 

Eu sabia que minha irmã não tinha ideia que desencadeou uma pequena crise de ansiedade toda vez que ela colocava tanta expectativa assim nos meus possíveis futuros empregos. Ana Maria estava certa afinal. Sua residência em enfermagem estava no último semestre e com isso, nossa estabilidade financeira  numa cidade longe de nossa família estava com dias contados. 

Ter que trancar minha pós-graduação e procurar emprego como professora efetiva foi uma decisão lógica e mesmo assim me senti fracassando ao fazê-la. Eu só não tinha noção que seria tão ruim assim. 

Vocês devem pensar que minhas expectativas estavam altas pela monstruosidade de colégio que acabei de sair, mas o Cora Coralina tinha sido o único que eu tinha colocado meu currículo por impulso, sabendo que a probabilidade de ser chamada era minúscula. O resto das instituições eram pequenas, novas e tinham tudo para me abrigar de braços abertos… Só que não.

Eu não sou tola. Quer dizer… Não a maior parte do tempo, mas enfim. Eu sabia que “meu perfil não era o perfil do corpo docente”, mas ao ouvi-lo dizer isso eu quis jogar aquela cadeira ridícula no seu rosto romano delicioso e antipático. 

Vi meu ônibus vindo a toda velocidade no sentido contrário que caminhava e meu ponto de ônibus a ao menos 30 metros de distância onde estava.

-Diabo! - Gritei sozinha para ninguém e me pus a correr a todo vapor.

Que eu consiga pegar este ônibus meu Deus, ao menos isso, orei mentalmente.

Nos primeiros passos largos eu já notei que tinha alguma coisa errada. As pessoas estavam olhando demais para mim e o que é perfeitamente normal, uma atriz global renomada dessas correndo para pegar o ônibus né…  

Foi só quando eu cheguei no ponto e estava pronta para pular pra dentro do ônibus, que uma criancinha de uns 5 anos apontou pra mim e gritou para mãe:

-Mamãe, dá pra ver a calcinha todinha dela! É de coraçõezinhos que nem a minha!

Assim eu notei que meu zíper estava inteiramente aberto.


Notas Finais


Curto escrever desde muito menina.
Tive que interromper qualquer urgência de escrita nos últimos anos (a vida dá umas sacudidas na gente), mas essa história... Como essa história EXIGIU que fosse escrita.
Ela vivia em minha mente, volta e meia sussurrando em meu ouvido, sonhava com ela... E agora aqui estamos.
De todo meu coração, pontas dos meus dedos e agora para vocês.


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