Veneza, Maio 2021
Ela andava com seu andar apressado. Passos a cem, pensamentos a mil. Finalmente havia chegado. Finalmente poderia parar, relembrar quem era.
Quem era mesmo?
O aeroporto Marco Polo estava cheio. Viajantes chegando, viajantes partindo. Ela tentava navegar o mar de passantes.
Quanta gente! O mundo esta oficialmente reaberto, pensou.
Relembrou como um ano antes , com a loucura do Corona Virus, o mundo parou e a vida quase lhe foi ceifada. Interrompeu o pensamento. Aqueles meses tinham sido os mais dificeis da sua vida. As memórias por vezes pesavam demais.
Preciso achar um táxi.
Ela arrastava suas malas e esperanças pelos corredores do aeroporto o melhor que podia. Só queria chegar ao hotel rápido, rápido e tomar um banho. Demorado, quente, remido e gozar aquela sofreguidão de querer e poder começar de novo.
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Coberta por um roupão de algodão egipcio e o cabelo ainda húmido enrolado numa toalha, sentou-se na beirada da janela do seu quarto de hotel. Dali, a vista perfeita da Ponte Rialto. Regina perdida em pensamentos, observava os casais de turistas enamorados , atravessando a ponte de mãos dadas, sorrisos rasgados e tirando fotos a cada outro passo.
Ali, quieta, limpa, só. Observava um mundo feliz e apaixonado sem que o mundo a olhasse de volta. Ali, sentiu-se relaxada e feliz pela primeira vez em muito tempo.
O último ano tinha sido um vendaval. Um vendaval nao, um furacão.
Que tola, pensou, tentando domar a ventania, fui soprada pra nao sei onde , sem saber por quem , e agora, aqui perdida em quem sou.
A vida de Regina tinha dado uma volta e tanto. Pouco mais de um ano atrás tinha deixado a Globo, sua casa mãe onde trabalhava desde menina. Tornado-se Secretaria da Cultura do Brasil. O alvo favorito de apupos por meio País e idolatrada por outro meio. Comprado guerra com muitos, inclusivamente com o Presidente que a convidou para o cargo. Dando o seu melhor, por seu amor maior - a arte - e em seguida sumariamente demitida. Lutou a custo pra manter a cabeça erguida. Umas vezes vencendo, outras vencida mas sempre lutando.
Não quero nem lembrar.
E depois veio o Corona Virus. Quatro meses de vida entorpecidos e em vários momentos um desejo profundo de morrer. Hoje, quando fecha os olhos ainda escuta o barulho ensurdecedor do ventilador, metrônomo da sua vida por mais de 2 meses, enquanto se debatia com uma pneumonia. Pelo menos a doença tinha-lhe devolvido a relação com sua filha Gabi . E por isso lhe era grata.
No tempo passado no hospital, em seus idos e vindos de consciência, Veneza sempre lhe vinha à mente. Em seus delírios, diambolava pela Piazza San Marco , o Giardino Casanova e o Campo de Ghetto Nuovo . Todos os locais que, quase 25 anos antes, tinha calcorreado de fio a pavio durante as gravações de Por amor. Ela , Gabi e Fagundes. Por vezes só ela e Fagundes. E a memória daquele beijo inesperado na ponte Rialto. Igual ao dos enamorados passantes, que agora observava, sentada na beira da janela do seu quarto de hotel.
Fafa, como lhe sinto a falta, pensou.
Não se viam fazia mais de 6 anos.
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- Antônio, voce tem a certeza?
Claro que ele não tinha a certeza. Como poderia ter certeza? Mas que outra solução restava? O amor ? O que era feito dele? Esvaído em anos de pequenos desencontros, clamando por um último suspiro. Agora a amizade e respeito que tinham um pelo outro estavam em risco e esses ele não estava disposto a deixar morrer nunca.
- Alexandra, eu sempre vou te amar. Não é o que quero fazer mas o que precisa ser feito. Você segue para Londres, como tínhamos planeado. Eu fico por aqui. Nos reencontramos em São Paulo em duas ou três semanas. Acertamos detalhes e tratamos dos papéis então. Agora ambos precisamos passar algum tempo lambendo as feridas e reencontrando o respeito um pelo outro.
Ela reconhecia aquele olhar. Sabia que Fagundes estava convicto de sua decisão e não havia mais a fazer. 14 anos de amor se evaporando como a fumaça da locomotiva que dentro em pouco os apartaria para sempre.
- Que bom deve ser vir ao mundo como um homem cheio de certezas , com aforismos na ponta dos dedos. Você tomou sua decisão. E eu tenho um trem pra tomar. Fique bem Antônio.
A mulher deu-lhe um beijo na face, demorando-se, como se demoram todas as despedidas de para nunca mais. Desceu do táxi aquático e seguiu em direção a estação de comboio sem olhar para trás.
Antônio ficou ali, parado, com um nó na garganta, vendo sua vida se afastar a cada passo dado. Tinham sido felizes. Muito felizes. Ele sabia que esta era a decisão correta para poderem preservar tudo o que tinham vivido juntos. mas não lhe era menos doloroso por isso.
Veneza tinha sido uma péssima ideia.
A última tentativa de resgatar o irresgatável, na capital do romance? Realmente?! E agora, como consertar um coração machucado em plena capital do romance? Que incauto!
- Scusa Signore…
A penitência de seus pensamentos foram interrompidos pelo taxista que, não sabendo português, reconheceu a universalidade do fim de uma história de amor e aguardou em silêncio, o máximo que pode, para dar espaço aos destroçados. Mas agora era tempo de seguir em frente:
- Dove vuoi andare dopo ?
- Para o lugar onde vão as coisas perdidas - suspirou Antônio entre dentes
- Scusi?
- All hotel Cipriani. Il percorso più lontano, per favore.
Assim, canal acima canal abaixo, Fagundes fez as exéquias fúnebres de seu terceiro casamento. Veneza , presente de todos os lados, como carpideira inesperada. O sol refletia nos prédios vetustos. A velha cidade estava mais bonita que nunca, apesar dos pesares. Um poema arrebatou-lhe os pensamentos:
Veneza,
Onde a maré
Da ampla lagoa afunda no mar,
Lá, o gondoleiro místico ganhou sua noiva.
Escuta, um grito indefeso e sufocado!
Sera?
Mimos e menestréis, flores e música, onde estão vocês?
Veneza era um sonho?
De quem era? Seria Byron? Nao, nao era Byron. Onde teria lido? Nao tinha lido. Mas então?
De repente, seu coração descompassou e vieram-lhe imagens da sua última viagem a Veneza, quase 25 anos atrás, onde ele e sua amiga Regina estavam num táxi aquático gravando Por Amor, passando por aqueles mesmos canais , contemplando aqueles mesmos prédios, rindo e brincando de apaixonados. E mais tarde, aquele passeio a dois pela ponte Rialto . O sol se pondo e Regina recitando aquele poema.
Como poderia ter esquecido?
Não tinha. Os olhos dela brilhando e a ode a Veneza dimanado daquele sorriso aberto que parecia não ter fim . A voz rouca e doce. E o impulso desesperado de lhe roubar um beijo. Um beijo profundo, molhado, longamente correspondido, diferente de todos os outros que tinham partilhado amiúde ao longo dos anos frente às câmaras .
Antônio sorriu pela primeira vez em semanas. Afinal das contas, talvez Veneza não tivesse sido uma péssima ideia.
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