Amanhecia. Luísa abre os olhos lentamente com a luz do dia que chegava lá fora. Porém ao acordar, se depara com um par de olhos fitando-a intensamente.
-Bom dia, dorminhoca.
Ela ri, sem jeito sob aquele olhar, e esconde o rosto sob o pescoço dele.
-Bom dia... Dormi demais? -Então arregala os olhos se afastando, ao lembrar da festa da noite anterior da qual mal lembrava de ter mandado recolher os pratos e copos e deixado os adolescentes ao som de uma música moderna.- Meu Deus! Otto, a festa da Poliana! A gente não voltou pra lá!
Ele ri. Afasta os cabelos bagunçados do rosto dela.
-Corrigindo, VOCÊ não voltou. Eu desci, disse à Poliana que tínhamos assistido um filme e que você tinha dormido. Não que eles estivessem muito interessados, dançando aquela música psicodélica. Deixei Sara de olho e voltei pra cá.
Ela ergueu uma das sobrancelhas, sarcástica:
-Deixou Sara de olho na festa ou na Poliana e no João?
Ele suspira.
-Podemos deixar isso pra outra hora? Agora realmente temos mais a conversar, Luísa.
Ela suspira, concordando.
-Certo... -Se acomoda melhor nos braços dele, descansando a cabeça contra seu peito. Resolve ser sincera. Se conheciam há tempo demais para que usasse de subterfúgios agora.- Eu queria dizer que estou sem graça, sabe. Que passamos do limite, sei lá. Mas seria mentira, Otto. - Ergue o olhar pra ele. - É como se esse fosse o rumo que devíamos tomar. O tempo todo. Só que...
-Eu sabia que haveria um “só que”. Estava indo tão bem. -Ele suspira. -Eu concordo com tudo até aqui. Não tem do que estar sem graça, Luísa. Somos adultos... Por mim estaríamos juntos há anos, desde aquele sonho que você teve, aliás. Se tivesse sabido dele na época teria tomado alguma iniciativa, mas você fugia de mim.
-Eu não fugia de você. Eu fugia de mim mesma. Queria acreditar que amava o Marcelo, que nada seria capaz de abalar nossa história. Sem perceber me impus um relacionamento que não me fazia bem naquela época e que foi só ladeira abaixo depois. Eu estava fechada pra outras possibilidades e o que eu tinha começado a sentir por você me apavorava. Queria acreditar que te odiava como sempre tinha odiado, mas já não era assim. Então voltei para o relacionamento que eu julgava mais confortável do que o turbilhão de emoções que você provocava em mim.
Ele escuta a cascata de palavras em silêncio. Depois beija o alto da cabeça dela e responde:
-Eu achava que você me odiava com todas as forças. Mas sinceramente, no seu casamento achei que estava me provocando deliberadamente.
Ela ri.
-Eu estava mesmo.
Ambos silenciam, lembrando daquela noite. Ele fora até lá para ver a filha, que na época ainda se mantinha afastada dele, e a entrada de Luísa vestida de noiva quase o fez ir embora na mesma hora. Ficara... Observara ela andando até o noivo, ouvira seus votos... Mas não acreditara em uma palavra. Quando ela terminou o juramento e o olhou intensamente, um misto de satisfação e tristeza no rosto, ele sabia que ela não tinha sido totalmente sincera. Mas respeitara sua escolha e mantivera-se afastado, porém perto o suficiente para apoiá-la e ser o ombro amigo que ela tanto precisou quando o casamento desmoronou. Mesmo depois que tudo acabou, ele respeitou o tempo que ela precisava para deixar o antigo relacionamento para trás.
Até a noite anterior.
-Então... “Só que...”?
Ela o olha, desconcertada.
-Seria muita tolice dizer que me preocupo com o que as pessoas dirão? Seremos julgados, Otto. Vai ter quem diga que já nos relacionávamos enquanto eu estava casada com o Marcelo. Vai ter quem diga que você se aproveitou do meu momento de fragilidade. Vai ter quem jogue isso tudo na internet e faça de tudo para criar histórias mirabolantes pra tornar nosso relacionamento um circo. Mesmo que saibamos lidar, tem a Poliana... Como ela vai se sentir com tudo isso?
Ele suspira.
-E claro, haverá quem fale que sou velho pra você.
Apesar do momento, ela abre um sorriso malicioso.
-Essa é a questão que menos me importa. E você não me pareceu nada velho ontem a noite, eu garanto.
Ele ri, beijando-a. Depois ela se deita novamente sobre seu peito.
-Luísa, não vou mentir... Não me agrada que falem de você, que falem de mim, e principalmente, não me agrada que alguém vá usar isso para atacar a Poliana. Mas eu não consigo considerar isso um empecilho pra nós. -Ele ajeita alguns fios dos cabelos dela atrás da orelha.- Eu vou precisar que você confie em mim. Nossa vida não é problema de ninguém e eu não vou abrir mão de você por isso. Não desista de nós por algo assim. Sei que não sou a pessoa mais expansiva do mundo e não sei direito expressar meus sentimentos, então vou falar claramente e com todas as letras. -Levantou o queixo dela para olhar em seus olhos de novo.- Eu te amo, Luísa. Eu estou disposto a lutar por você, por nós. Por favor... Me dá uma oportunidade de te fazer feliz. Nos dê uma chance.
Os olhos dela se encheram de lágrimas. Olhando-o, ela desliza a mão delicadamente pelo seu rosto, as pontas dos dedos dançando sobre a expressão de amor e preocupação no rosto dele.
-Eu também te amo... Queria tanto ter entendido isso antes. Quanto tempo a gente perdeu! Desculpa por não ser tão forte quanto você é... Não vou desistir dessa felicidade que eu nunca senti antes na vida. Eu também vou lutar por nós.
Soltando o ar que ele nem percebera estar segurando esperando a resposta dela, Otto respira fundo e a deita novamente contra a cama, um sorriso lhe atravessando o rosto ao olhá-la com adoração.
-Eu ouvi você dizer que me ama, senhorita D’Avila?
Ela ri, uma risada baixa e provocante, olhando em seus olhos enquanto enlaça o pescoço dele, depois desliza a mão pelo peito nu dele, descendo cada vez mais, reacendendo a paixão da noite anterior.
-Quer que te mostre o quanto, senhor Pendleton?
E ela mostrou.
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Duas horas depois, eles saíam juntos do banho na banheira do quarto de Otto quando um barulho no lado de fora da porta fez com que ambos paralisassem:
-Pai? Você está aí?
Luísa olhou para ele, assustada. Fez que não com a cabeça e Otto respondeu à filha, sem muita convicção.
-Estou, filha... O que foi?
-Pai, não achei a tia Luísa em lugar nenhum, você viu ela? Ela não está no quarto e o celular dela está na mesa da sala.
Luísa fez uma careta, segurando o riso com a situação adolescente em que estavam. Otto percebe e se controlando para não rir também e denunciá-los, responde:
-Sim... Ela saiu pra correr. Daqui a pouco deve voltar. Pode conferir se a Sara já providenciou nosso café, Poliana? Daqui a pouco sua tia chega e tomamos café juntos, pode ser?
-Claro! -Se mantendo em silêncio, escutaram a porta do quarto dele se fechar quando ela saiu. Respirando aliviados, rindo baixinho, eles vestem as roupas de baixo e voltam pro quarto.
-Meu Deus, Otto... Nós não fechamos a porta. E se ela tivesse entrado antes?! -Ela questiona, procurando o vestido azul pelo quarto sem sucesso. -Na próxima vez me lembra de conferir isso, por favor. Que situação!
-Hum... Na próxima vez? -Ele ri, alcançando-a por trás e beijando-lhe de leve o pescoço. -Tudo bem. Mas precisamos conversar com ela logo. Não sei quanto tempo vou aguentar ficar sem tocar em você.
Ela ri, voltando-se nos braços dele e beijando-o de leve.
-Controle-se, sr. Monteiro. E me ajuda a achar meu vestido, não acho ele em lugar nenhum!
Eles reviram o quarto do avesso, mas não encontram a peça. Com a certeza de que o vestido aparecerá mais cedo ou mais tarde, provavelmente enrolado em uma das roupas de cama, Luísa veste a camisa que ele usou na noite anterior que lhe chegava quase aos joelhos e sai do quarto após outro beijo rápido. Mas quase cai para trás ao ver o sorriso zombeteiro da sobrinha, dez passos à frente, segurando o vestido azul na mão.
-Oi, tia... Perdeu alguma coisa?
-Poliana?!
A sobrinha ri do olhar apavorado da tia. Ouvindo o meio grito de Luísa com o nome da filha, Otto sai do quarto de roupão e não precisa muito esforço pra entender a situação.
-Poliana, nós... Precisamos conversar.
-Pai, sério? Não precisa né?
Ah, aquele jeito adolescente debochado ainda ia levá-lo à loucura, Otto pensa.
-Chega! -Luísa sai do transe e grita, exasperada. -Vou me vestir. Poliana, espere na sala, já vamos descer e conversar com você.
Poliana dá de ombros com uma risadinha. Entregando o vestido à tia e se voltando, vai em direção à sala.
-Ainda acho que não precisa, mas...
-Agora, Poliana! -Gritam Luísa e Otto em uníssono. Trocando um olhar, cada um vai para seu quarto terminar de se vestir.
Dez minutos depois, os três se encaravam não sala.
-Poliana... Eu nem sei como começar.
-Tia, não precisa começar nada. É sério. -Sem o ar de deboche agora, Poliana olha da tia para o pai, feliz. - Escutem, eu sempre quis isso. Você estava tão sozinha, tia... Você também, pai. Quando pedi pra você vir morar com a gente eu já imaginava que vocês iam ficar juntos, tia Luísa. Eu sabia que tinha algum sentimento entre vocês dois e que era questão de tempo pra se entenderem.
Luísa e Otto trocam um olhar. É ele quem pergunta:
-Você não se sente desconfortável com isso, Poliana? Seu pai com sua tia... Você não vai achar estranha essa situação?
A garota reflete por um momento, depois balança a cabeça em negativa.
-Não... Você e minha mãe se separaram há muito tempo. Acho que talvez se tivesse chegado a viver com vocês dois juntos seria diferente. Ou talvez não. Tem muito tempo que acho que a tia Luísa é o amor da sua vida, pai.
Luísa revira os olhos.
-Poliana, você falava isso de mim e do Marcelo o tempo todo, não entre nesse rumo de novo!
Transferindo o olhar do pai para a tia, Poliana parece se entristecer por um momento.
-Eu era quase uma criança, tia. O conceito de amor que eu tinha vinha de como eu enxergava o relacionamento dos meus pais... Quer dizer, da minha mãe e do meu pai Lourenço. -Ela olha o pai sem jeito, mas ele acena com a cabeça, compreensivo. Ele sabe que Lourenço sempre ocuparia um local especial no coração da filha e não se importava, pois sabia que ele próprio também tinha conquistado seu próprio espaço lá. Poliana continua.- Depois que vocês casaram eu percebi que estava errada... Vocês não eram felizes, tia. Ele parecia sempre culpar você por algo, jogar tudo nas suas costas. Eu me senti culpada... Mais de uma vez você pareceu querer dar fim a tudo e eu insistia para que ficassem juntos. Desculpa, tia Luísa.
Luísa segura a mão da garota, mordendo o lábio, depois responde com o olhar sério porém carinhoso para a sobrinha.
-Não foi culpa sua, eu optei por viver aquilo, Poli. E acho que era necessário, se tudo aquilo não tivesse acontecido eu poderia passar o resto da vida pensando em como teria sido nosso relacionamento. Agora sei que foi um aprendizado, um remédio de sabor amargo pra curar aquela ideia errada que eu também tinha de que ele seria o amor da minha vida. Hoje eu sei que ele não era.
Poliana sorri, o sorriso lembrando ao pai a garotinha curiosa e cheia de vida que chegara na sua vida cinco anos antes e a virara de cabeça para baixo. Ela pergunta timidamente:
-Então... Vocês se amam?
Luísa e Otto trocam um olhar sem jeito, mas carregado de sentimentos. Poliana não aguenta, levanta e vai até os dois, abraçando cada um em um braço, que eles correspondem, transformando num grande abraço de urso em trio.
-Estou feliz por vocês. E por mim também. Tenho uma família completa de novo. Quero que sejam muito felizes, tá? Eu amo vocês dois... Amo muito!
Luísa chora abertamente e Otto disfarça a emoção que sente, dando um beijo no alto da cabeça de cada uma. Após alguns instantes, Poliana ergue a cabeça, animada:
-E agora será que podemos tomar café? Estou faminta!
Rindo, os três vão em direção a mesa, dessa vez como uma verdadeira família.
Continua...
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