Sinto uma leve queimação em meu rosto, abro os olhos e então percebo que acabei pegando no sono em minha escrivaninha. Existe uma grande diferença entre a lentidão que uso para abrir meus olhos e entre a rapidez que usei para me levantar assim que lembro do que aconteceu na noite anterior. Pelo real motivo de eu ter adormecido sentada, em minha cadeira giratória. Minhas cortinas estão abertas, meu quarto está claro pela luz do sol e minha cama completamente vazia, sem nenhum resquício do desconhecido.
Por minutos fico estagnada no lugar sem reação alguma, pensando na hipótese de ter sido apenas um sonho estranho como todos os outros que tenho tido nas últimas semanas. Continuaria com o mesmo pensamento se não fosse pelo estrondo que meu celular fez ao vibrar em cima da mesa e o nome de Pietro aparecer na tela.
— Alô?
— Você está viva, minha virgem santíssima! – Ele grita, eufórico — Onde você estava que não atendia este celular, Elena?
— E-eu, h-um... Eu estava dormindo. – Termino meu raciocínio — O que houve?
— Como assim o que houve? – Ele volta a gritar, o que me faz afastar o celular alguns centímetros de meu rosto. — Ele ainda está aí? O que aconteceu, Elena? E aquele cara?
As perguntas de Pietro se amontoam em minha cabeça e sou incapaz de respondê-las, não sem antes pensar adequadamente. Não foi apenas um sonho, afinal de contas. Mesmo eu tendo uma – quase – certeza de que "salvei" alguém em um cemitério, minha mente ainda está nublada me fazendo pensar se realmente passou ou não de um mero sonho. Pietro ainda grita meu nome quando volto a aproximar o aparelho em minha orelha.
— Não sei. – Respondo — Acordei e estava sozinha, mas alguém abriu minhas cortinas. Eu acabei dormindo sentada apoiada em minha escrivaninha. Se alguém estava aqui, foi embora.
Olho para minha cama com meus lençóis perfeitamente dobrados e fico ainda mais confusa. Se minha mãe esteve em meu quarto, com certeza ela teria me acordado. E, ao perceber a hora, lembro que ela pode não estar em casa, mamãe costuma ir à feira todo dia de manhã para comprar legumes, frutas frescas e meu pai sempre a acompanha.
— Pietro, você pode parar de gritar como um louco e aparecer por aqui? – Pergunto sem esperar por sua resposta e desligo a ligação no mesmo momento.
Volto a me sentar em minha cadeira e tento recapitular todos os passos que dei na noite passada. Lembro de ter saído de casa à noite, alegando não ter medo de nenhum ser sobrenatural que possa existir e ir direto para o cemitério da cidade para provar minha nem tanta coragem. De meus pais pedindo para que não fosse, mas percebendo que não iriam conseguir me convencer pediram que eu tomasse cuidado. De ter andando diretamente para onde os mortos descansam e da tolice que tudo isso é. Vampiros existirem, onde já se viu? Acabo sorrindo com tamanha besteira, mas meu riso se esvai quando lembro do homem desfalecido pedindo por minha ajuda.
Era lindo, ele era magnificamente lindo. Sua pele tão branca como à luz da lua e seus lábios vermelhos, por mais que estivessem secos e rachados. Meu Deus, não foi um sonho! Eu trouxe um homem para casa e Pietro o deitou em minha cama, ele esteve em minha cama! Eu digo tudo isso em voz alta para que eu acreditasse por fim, enquanto passo minhas mãos por meus cabelos e nuca. Estou prestes a levantar novamente quando escuto a campainha tocar e a voz de Pietro soar pelo lado de fora. Onde este homem estava que chegou tão rapidamente aqui?
— Onde ele está? Você está bem? – Pietro pergunta ao adentrar minha casa e me abraçar, examinando-me por inteira logo como se estivesse procurando alguma parte do meu corpo faltando.
— Eu estou bem, homem. – O afasto — Você lembra, não é? Eu não estou enlouquecendo, nós trouxemos um homem para cá na noite passada?
— Você trouxe um homem para cá, sua louca. – Ele me responde áspero e com deboche — Me fez carregar aquele saco de osso até aqui.
Espera, saco de osso?
— Ele está tão magro que não sei como estava se aguentando em pé. – Termina seu raciocínio.
— Bem, ele não estava. Ele desmaiou, estava desmaiado. Não lembra? – Ando pela sala de jantar, e acabo sentando em uma das cadeiras de leitura do meu pai. — Ele foi embora, simplesmente sumiu. Você tem ideia de onde ele por ter ido?
— Não faço à mínima e nem faço questão de fazer. Faça que nem eu e esqueça o que aconteceu, ouviu bem? Ou eu não a salvarei em mais uma de suas loucuras.
Respiro fundo e consinto, com certeza essa foi uma das piores ideias que já tive. Eu poderia estar morta uma hora dessas, sequer estar em casa. Pietro bufa irritado e eu não entendo muito bem todo seu estado, mas não reclamo. Afinal ele é o único na face da terra em quem eu posso confiar até para enterrar um corpo caso um dia seja preciso. Que esse dia nunca chegue. Acordo de meu devaneio ao perceber estar atrasada para faculdade, com Pietro mais uma vez gritando e pedindo para que eu fosse rápida ao me arrumar ou ele me deixaria sozinha.
Sou rápida com meu banho e demoro um pouco apenas ao pegar todos os livros que posso precisar neste dia. Ironicamente, iria entrar no assunto sobre o Vampirismo na Literatura, iria estudar sobre Drácula e todos os derivados dos que sugavam sangue. O tanto que eu havia lido sobre vampiros antes de saber que daria este assunto não está escrito em nenhum livro existente, o tanto que minha vida virou uma tremenda loucura por causa deles, também. Não sou incrédula, mas me nego a acreditar que existam destes seres andando por aí nos dias atuais. Me nego também a acreditar que um dia já existiram.
Tudo não passa de história para o gosto daqueles que gostam de ilusão e para dar medo em criancinhas, como vovó sempre dizia. Ao caminho para a faculdade, Pietro conta sobre como seus últimos relacionamentos não terminaram bem, como se não soubesse que eu nunca estive em um para opinar. Quer dizer, eu nunca me apaixonei ao ponto de querer ter um desses relacionamentos que pessoas chamem de sério, sempre focada em meus estudos, e não pensava e nem sentia falta de uma pessoa no meu pé.
Mas, mesmo que suas palavras saiam de sua boca em alto e bom som, eu apenas ainda penso no que tinha me acontecido. Sobre quem era o homem, de onde ele veio e por quê estava em um cemitério tarde da noite. Apenas todas essas perguntas sem respostas rondavam minha mente. Ele parecia tão fraco, como conseguiu se levantar e sumir?
— Chegamos. – Escuto Pietro falar e soltar seu cinto de segurança. Eu estou absorta em meus próprios pensamentos que não tinha percebido que já tínhamos chegado. — Você por acaso ouviu alguma coisa que eu disse?
— Oh, sim, sim. Sinto muito pelo carinha da festa que não lembrou de ligar para você depois dos beijos e amassos que deram. – Digo sem perceber minha voz sarcástica — Desculpe.
— Tudo bem. – Ele diz — Eu também estaria nervoso se estivesse em sua pele, afinal não fui eu quem abrigou um homem desconhecido em minha casa que pode muito bem ser um serial killer.
— Ele não é um serial killer, não diga besteiras. – Respondo e franzo meu cenho porque não tento absolutamente certeza nenhuma do que dizia.
Ele pode sim ser um serial killer, mas eu custo a acreditar que ele é capaz de machucar alguém. Eu não faço ideia do porque penso assim.
— Certo, esquecemos este ser. Passado, ok? – Ele responde ao fechar a porta do carro e andar em minha direção.
Enquanto alguns alunos estão com seus rostos em um misto de incredulidade e surpresa sobre o assunto dos novos trabalhos – e – provas que nos foram passados, a minha era tranquila. O que fez metade da sala focar seus olhares para mim e aumentar ainda mais com a suspeita de que eu não passo de uma esquisita. Até porque, muitos ali acreditam fielmente que existem pessoas por aí com o canino maior que os nossos, com dois dentes mais afiados. Eu apenas retribuo seus olhares e sorrio falsamente, voltando para minha leitura e um assunto passado despercebido por mim.
Para um trabalho, eu teria que pesquisar com afinco sobre as ‘Estrige’. Nome que vem do grego ‘Strix’. Sobre uma criatura meio cadela, meio mulher que segundos lendas antigas andava pelas noites à procura de homens para seduzi-los e sugar todo o sangue. Um assunto que me chamou mais a atenção que o normal já que apenas li histórias sobre vampiros homens, não mulheres. Um tanto quanto exóticos, digamos assim, para mim que não tinha conhecimentos desses seres. Não que eu acredite, claro.
O dia passa tranquilo, fora o frio que se instala por toda a cidade. Fora meu sono acumulado por todos esses dias sem dormir me fazendo querer apenas a cama qual eu não dormi a noite passada. O meu medo de voltar a ter um daqueles sonhos onde o rosto do desconhecido sempre aparece. Voltando para casa, a péssima ideia de retornar ao cemitério me assola, tenho a falsa esperança de que eu o veja novamente. Pietro lé minha mente e me pede para que não saia fazendo coisas que eu venha a me arrepender depois.
Pietro foi o primeiro amigo que fiz neste campus e o único que falo até hoje. Não que eu não tenha outros amigos, mas digamos que ele era o eleito, o melhor dos melhores, nós vivemos grudados um ao outro desde então. Nossas famílias tornaram-se muito unidas e já chegaram a cogitar que nós fossemos um casal. Isso porque seus pais não fazem ideia de que não é exatamente de mulheres que ele gosta. Por medo, ele não consegue confessar sua preferência por homens, por medo ele finge ser o pegador na balada de meninas que não existem. Eu apenas reforço sua mentira alimentando sua mãe quando digo que sou quem o apresento para minhas amigas.
Meu turno é à tarde, então chego em casa por volta das 19h. E como era costume, encontro meus pais já a mesa para o jantar, sempre me juntando a eles para depois enfim tomar um banho e cair na cama. Hoje não seria diferente se minha mãe não me lotasse com perguntas sobre eu não ter voltado cedo para casa ontem à noite, eu sempre digo que estava com Pietro e eles acreditam. Bem, não é exatamente uma mentira já ealmente estava com ele. Eu só omito a parte de que trouxemos um alguém a mais para casa naquela noite. A conversa se intercala sobre o calor que fazia durante toda a manhã e o frio que começou fazer durante a tarde, perdurando para a noite.
E, claro, minha mãe pede para que eu durma com as janelas fechadas por causa do frio. Sei que o real motivo é seu medo de que alguma aberração possa aparecer, eu apenas digo que farei o que pede e me despeço, indo em direção das escadas. Todas as janelas estão fechadas, a casa está parcialmente escura com apenas o abajur do corredor ligado. Ok, pareço uma mocinha desses filmes de terror que está prestes a ser atacada pelo cenário que me encontro. É estranho, porque minha mãe não costuma deixar a casa tão escura assim. Faço meu costume de todo o dia e deixo meus sapatos ao lado da porta de meu quarto, para poder enfim girar a maçaneta.
Meu quarto é agraciado apenas pela luz da lua que vem da janela que ainda está aberta. Está tão cheia e limpa que deixa uma grande fresta de luz azul sobre minha cama, cama essa que continha alguém sentado e esse alguém sendo ele, o desconhecido. Meus olhos quase pulam para fora do tanto que os forço para abrir, procurando poder enxergar melhor no escuro. Pode ser somente minha visão vendo coisas que não existem ou talvez minha vontade de vê-lo novamente fosse tanta que eu estou começando a enxerga-lo. Meu coração se agita de tal forma que sou capaz de ouvir meus batimentos cardíacos perfeitamente, fico parada na porta porque além de tudo tenho medo, por um segundo passo acreditar no que mamãe tinha me dito no jantar.
— Q-quem está aí? – Minha voz sai baixa e tremula. Eu não acredito que estou realmente fazendo esta pergunta.
— Elena, não é? Esse é o seu nome? – Sua voz soa lindamente, rouca e um tanto baixa como a minha também saíra.
— Meu nome não importa agora, quem diabos você é? – Pergunto e ele levanta, andando em minha direção. Conforme seus passos são para a frente, os meus são para trás e acabo batendo as costas em minha porta, fechando-a.
— Você me salvou ontem à noite, eu vim agradecer.
— Como entrou aqui?
— Pela janela, não posso aparecer para ninguém além de você.
— C-como assim? Por quê não? – Ele fica calado. — Perguntei por que não!
— Você está nervosa e com medo de mim? – Sua voz volta a se fazer presente e ele se aproxima ainda mais, até estar em minha frente — Não tenha medo de mim, Elena. Não irei machuca-la.
— Quem é você, afinal? – Minha voz se embarga e sai em um quase choro, meu corpo amolece que se eu não estou apoiada em minha porta já teria ido ao chão.
— Meu nome é Yoongi, só posso responder isso por hora.
Se antes nossos corpos estão próximos, agora estão colados. Penso em correr, penso em gritar, mas todos meus pensamentos se distorcem e me fazem continuar parada no lugar. Sua mão fria toca minha pele e um arrepio corre por todo meu corpo, eriçando-me os pelos.
— Seu cheiro é tão doce, Elena. Se soubesse o quanto me seguro.
— Para o que? – Pergunto e o interrompo. Escuto seu sorriso.
— Você é corajosa, gosto disso. Ainda me revida por mais que o medo esteja corroendo-a por dentro.
— Se não vai me machucar, o que irá fazer comigo?
Sua mão desce por minha bochecha e vai para o meu pescoço, onde ele alisa com seus dedos esguios. A cada molécula de tez que seu dedo captura eu sinto a pele queimar. O quarto escuro me impede de ver seu rosto, mas a luz da lua parece ser o suficiente para deixa-lo a vontade para fazer o que deseja. Meu pescoço se inclina para o lado sem meu consentimento e minha respiração parece se esvair quando sinto seus lábios por ali. Lábios quentes, diferentes de seu toque gélido. Lábios que passeiam por minha pele como se estivessem saboreando-a. Fecho meus olhos e espero o que estar por vir, mas ele se afasta e meu corpo vai ao chão.
Quando se aproxima da janela, seu rosto se ilumina e sua pele parece ficar ainda mais clara, reluzindo-a. Me olha sentada no chão enquanto caminha para a janela, me deixando ainda mais confusa do que já estou.
— Cuide-se, Elena. – Ele diz ao sair pela janela e mais uma vez sumir.
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