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História Desde agora e para sempre - Capitulo Quarenta e seis - Ela


Escrita por: magnors e Bane

Notas do Autor


"Você pode detestar, odiar, querer esquecer seu passado, mas nunca poderá esquecer de suas origens. Elas sim falam sobre o que te tornaram hoje."

- Micael Bastos

(Bem vindos a mais um ESPECIAL da nossa fic, o tema dessa vez é ORIGENS, onde durante uma viagem à São Paulo, sua terra natal, Aline se reconectará com o passado e com as pessoas q fizeram parte da sua infância e adolescência.)

Obs: O capitulo a seguir tem o salto temporal de 1 semana em relação ao anterior de Aline.
Boa leitura :D

Capítulo 47 - Capitulo Quarenta e seis - Ela


Fanfic / Fanfiction Desde agora e para sempre - Capitulo Quarenta e seis - Ela

19 de dezembro de 2015

 

O sol de fim de tarde brilha ao longe, do outro lado do extenso vitral, quase totalmente oculto pelos morros verdejantes, as cores não tão vívidas quanto na terra soteropolitana. O gigante de aço parado à poucos metros, as malas retiradas da esteira de forma ágil pelos funcionários em coletes verde fluorescente, e seguindo no carrinho até perdê-las de vista. A imensa pista concretada também abriga outras aeronaves de diferentes tamanhos.

- Aline, acorda pra vida, anda logo! - papai grita adiante.

Nem percebi que havia diminuído o ritmo, dispersa na paisagem estonteante. Aos poucos compreendo o fascínio de meu namorado pela fotografia, daria tudo para registrar essa tela pintada pela natureza e o homem, eternizá-la em um lugar onde não se perca com os anos ou seja esquecida. Passo por João Victor e lhe acerto um tapa na cabeça, derrubando o headfone verde e fingindo que nada aconteceu.

- Porra, Aline! - reclama.

Disfarço o riso, alcançando o patriarca. Com um pisão forte na parte de trás do tênis quase vou ao chão. Vingança pelo fone derrubado.

- Não comecem vocês dois. Estão bem crescidos para isso. - meu pai fala de forma incisiva, tentando controlar o tom por causa do grupo à frente. Ignoro a careta de João Victor ao seguirmos.

Após esperar tempo demais na esteira pelas malas, atravessamos as grandes portas de desembarque e meus olhos ligeiros logo identificam o homem grisalho de meia idade a acenar: Tio Dandão.

- Tio! – corro para o abraço da melhor forma que consigo ao carregar a bagagem pesada.

- Oi querida! Que saudade.

- Também estava. – o aperto mais.

- Sempre no celular, hein, Jão. – o homem mira meu irmão e o puxa ao aconchego do enlace triplo, bagunçando as madeixas e em consequência o headfone.

Os braços longos nos envolvem sem dificuldade. Nunca escondi que é meu familiar favorito, sempre animado e brincalhão, embarcando em minhas maluquices desde criança. Relembro as travessuras que aprontávamos um com o outro, rabiscando seu rosto enquanto dormia ou escondendo pertences importantes. Certa vez, pela manhã, ele colocou um sapo em meu travesseiro, nunca gritei tanto. 

Distancio para observar as vestimentas: calça jeans escura e camisa, seu uniforme habitual. Desce os óculos escuros presos entre os fios e assume o visual charmoso e bem mais conservado que papai.

- Como está, Júlio? – cumprimenta o irmão.

- Bem.

- Sorria um pouco homem, está sempre parecendo que comeu jiló. – o outro desconsidera a brincadeira. – E por que demoraram tanto?

- O voo atrasou e o aeroporto daqui também não ajuda, demoraram uma eternidade para entregar as malas.

- Normal. Não importa a quantidade de máquinas e tecnologia, nada funciona direito. Uma das várias vantagens dessa maravilha chamada São Paulo. - fala de forma descontraída.

- Vocês só elegem gente incompetente para assumir a prefeitura, dá nisso.

- Dá mesmo. - o outro se diverte com o jeito resmungão do irmão. - Vamos andando, pois o estacionamento aqui é caro.

Ele ajuda com as malas do grupo em seu braço livre. Cruzamos pelas demais pessoas que encontram cônjuges, amigos e familiares. Cada sorriso e olhar demonstrando a sensação reconfortante que toma meu peito nesse momento.    

- Cadê tia Camila? - indago.

- Não veio. - Dandão hesita antes de continuar. - Na verdade estamos nos separando.

Arqueio as sobrancelhas, abismada, os dois sempre demonstraram ser um casal com bastante sintonia, não consigo imaginar o motivo do término.

- Por que? - meu pai faz o que não tive coragem.

- Não estava dando certo e decidimos que era melhor assim. - percebo o desconforto em sua expressão.

As múltiplas conversas ao redor torna difícil a compreensão das palavras, forçando meu pai a se aproximar mais. João é único que parece inerte a tudo, focado no jogo de celular.

- Mas assim, de uma hora pra outra?! - o careca demonstra indignação.

- Não foi de uma hora para outra.

- No começo do ano estavam juntos.

- Melhor usarmos a saída sul, o acesso ao estacionamento fica mais fácil. - desconversa, mudando o caminho, e papai só observa, intrigado.    

O enorme trânsito de pessoas pelo aeroporto nos força a andar em zigue zague, desviando de carrinhos, malas e crianças. É um alívio quando alcançamos as escadas rolantes que desembocam nas saídas. O barulho ensurdecedor de buzinas e motores é ainda maior que dentro do prédio. Apressamos até o automóvel branco e tomo a dianteira para sentar ao lado do motorista, frustrando os planos do meu irmão, que devolve uma careta contrariada.

Dandão faz manobras ágeis ao volante, e ao tentar deixar o espaço aberto quase bate quando outro veículo interpõe.

- Tá maluco, filho da puta?! Não tem buzina? - ele abre a janela e grita.

O outro motorista se detém a mostrar o dedo do meio e seguir como se nada tivesse acontecido.

- É inacreditável como aprovam a carteira desses idiotas.

- Xingar não resolverá o problema. – papai repreende.

- Viu o que o cara fez? – meu tio encara, consternado.

- Sim, ele estava errado, mas a forma como respondeu não melhorou nada.

- E deveria agradecer por quase causar um acidente?

- Poderia conversar. – Júlio assume uma parcimônia que poucas vezes presenciei

- Funcionaria muito, vai acreditando. – o irmão ri.

- Na palavra de Deus diz: “Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas.”.

- Nem vem com esse papo de crente. – o homem mantém o olhar parcialmente concentrado sobre o volante.

- Não é papo de crente, é a verdade.

- Quem quer ouvir música? – Dandão desconsidera completamente, ligando o rádio em alto volume, o funk reverbera pela lataria, forçando meu pai a calar.

Navegando pelos aplicativos no celular, tento distrair daquela briga de egos que acontece desde que me entendo por gente. Júlio constantemente querendo assumir a posição de “pai” perante o irmão mais novo, e Dandão replicando com a personalidade desafiadora. Não importo em intervir, pois sei que daqui cinco minutos estarão conversando normalmente. Enquanto abro o whatsapp, meu tio passa a marcha e partimos.      

ALINE: Cheguei, piranhada!!!

Sorrio para o grupo com as três melhores amigas de colégio. Só agora percebo o quão fora estranho passar todo esse tempo em Salvador comunicando ocasionalmente com elas apenas por mensagem. A perspectiva de encontrá-las agita os nervos.

THAMY: Finalmente.

ALINE: O voo atrasou.

THAMY: Pior q já é quase noite.

LOLA: Nem dá mais pra sair hj (emoji de rosto triste)

THAMY: Tbm queria muito t ver.

ALINE: Relaxa, ficarei até dia 02, teremos muito tempo.

PATY: Chegando atrasada, mas ainda em tempo KKKKKKK

A última baderneira fica online, para minha alegria.

PATY: Q bom q chegou, miga, morrendo de saudade de t abraçar. E foi até bom a saída ñ dar certo hoje, Jader está queimando de febre.

ALINE: Tbm estou com saudade. Melhoras pro pequeno.

LOLA: Tadinho, que fique bem logo.

THAMY: Deve ser virose.

LOLA: Deu remédio?

PATY: Sim, torcer pra ser algo passageiro.

ALINE: Vai ser (emoji de sorriso)

THAMY: A gnt se encontra quando então?

ALINE: Pode ser amanhã, depende da Paty.

PATY: Ñ joga essa responsabilidade pra cima de mim, por favor KKKKK

LOLA: Durante a semana fica puxado pra mim, por causa dos plantões.

THAMY: Só ñ posso 3 dias dessa semana, pois tenho show. Amanhã seria melhor.

ALINE: Dá amanhã pra vc Paty?

PATY: Ñ sei, depende como Jader estiver.

THAMY: E Enrico?

PATY: Enrico ñ cuida nem dele, imagina do filho (emoji revirando os olhos)

O veículo para de repente, e não surpreendo ao ver a enorme fila adiante. Dandão sai na janela por um instante:

- Esse parece um dos longos.

- Já acostumei a quase não pegar trânsito em Salvador. - papai suspira.

- Pois pode desacostumar, sabe que aqui todo dia é assim.

- Cidade bagunçada…, muito mais carro que gente. - resmunga, e o irmão dá de ombros, se virando para mim:

- Vi as fotos da sua formatura, estava linda.

- Viu só agora? - estranho, pois já faz tempo que o evento ocorreu.

- Não, mas queria falar pessoalmente o quanto estava deslumbrante, o que não é difícil.

- Obrigada, foi uma noite divertidíssima, tirando algumas coisas seria perfeita.

- Como assim?

- Deixa quieto, não importa mais.

Se mostra curioso com o franzir as sobrancelhas, mas enfim releva.

- E você Jão, completou dezoitão, né?

O garoto não reage, ainda entretido no aparelho.

- Estão falando com você, moleque. - nosso pai arranca o headfone.

- O que?! - responde atordoado.

- Perguntei se completou dezoito. Pode ser preso agora. - Dandão brinca e o garoto não dá importância.

- Isso é coisa que se diga, Cléber! - papai repreende.

- É brincadeira, quis dizer que ele é um homenzinho agora. - continua com o tom sarcástico.

- Homem sempre fui. - João rebate e meu tio gargalha:

- Claro, porra! Aliás, pegando muita mina em Salvador?

Percebo o olhar inibido do garoto através do retrovisor, a mente trabalhando a toda velocidade, escolhendo as palavras certas para não revelar as saídas não tão secretas e as garotas que leva para casa enquanto papai e Verônica trabalham. Aproveito desse conhecimento para chantageá-lo a executar tarefas domésticas e outras coisas que queira, como a bondosa e generosa irmã que sou. O celular vibra, mas decido ignorar, entretida demais pelo diálogo.

- Mais ou menos… - ele responde.

- Tem que ser como o tio, aproveitar a vida enquanto pode.

O jovem abre um sorriso torto.

- Tem que se dar o respeito, isso sim. Ser um homem sério, direito, que honrar a mulher com quem está. - papai interpõe.

- “Homem de respeito” só leva galhada. Sem ofensas, Júlio. - Cléber acrescenta rapidamente. Apesar da zombaria, sinto certo incômodo em seu tom.

- Quando ficar sem os dentes aprenderá a calar a boca. - o mais velho sustenta uma carranca.

- Pelo menos ensinou o garoto a dirigir?

Bufo, achando graça:

- Ele nem me ensinou a dirigir, imagina.

- Como assim?! Não sabe dirigir?! – os olhos do homem esbugalham.

- Aprendi com Verônica.

- Porque não os ensinou?! – soa indignado.

- Quando reunirem dinheiro o bastante para comprar o próprio carro, darei as aulas. - meu pai rebate.

- Só pode estar zoando.

- Não soltarei um carro na mão deles antes que entendam o que isso realmente significa, e as responsabilidades necessárias.

Reviro os olhos.

- E onde fica a confiança? Eles são adultos, sabem se cuidar. – Dandão argumenta.

- Deixa que sei como lidar com meus filhos, cuida dos seus.

O outro discorda com um balançar de cabeça, focando no trânsito. O veículo embarca no silêncio novamente e retorno ao celular, que vibra frenético:

PATY: Meninas, podem sair amanhã, tentarei ir, caso ñ consiga visito Line outro dia. Onde ficará, miga?

As mensagens seguintes são vários pontos de interrogação, às vezes Patrícia consegue ser mais ansiosa que eu.

ALINE: Ñ será a msm coisa sem vc (emoji triste), quero a reunião completa. Ficarei na casa da minha avó nesses primeiros dias, o resto da semana depende do meu pai e seu espírito nômade (emoji de desaprovação)

A resposta vem segundos depois:

THAMY: KKKKKKKKKK, o tour de tio Júlio ñ pode faltar.

ALINE: Ri pq ñ é vc q refaz a mala a cada três dias.

THAMY: No meu caso isso significaria mais shows, então faria sem problemas.

LOLA: Pq ele sempre faz isso?

ALINE: Sei lá, loucura talvez.

As duas se divertem com o comentário.

PATY: Voltei. Q disposição seu pai tem, Line. Ultimamente tenho preguiça até de levantar do vaso sanitário.

ALINE: KKKKKKKKKK Nossa, tá acabada assim?

PATY: Cuidar de criança é como fazer academia, só q em tempo integral.

THAMY: Força, miga, faltam só 15 anos pra ele fugir com a namorada. 

PATY: (emoji de dedo do meio)

LOLA: Tenho q sair, inventar o q farei pro jantar.

THAMY: Espera, nem combinamos o rôle direito.

PATY: Já disse, vão amanhã, depois dou um jeito de encontrar Line. Essas outras vagabundas posso ver qualquer dia do ano.

ALINE: Vê se consegue ir, por favor.

PATY: Ñ garanto nada, mas farei o possível.

THAMY: Vamos aonde?

LOLA: Shopping, como sempre?

THAMY: Ñ, quero algo diferente.

LOLA: Sorveteria?

THAMY: Tbm ñ.

LOLA: Churrascaria?

THAMY: Só pensa em comida, mulher!

LOLA: KKKKKK Estou morrendo de fome, decide logo pra eu ir comer.

ALINE: KKKKK Diferente como, Thamy?

THAMY: Um lugar q a gente não costuma ir.

ALINE: Tipo…

THAMY: Se soubesse ñ perguntaria (emoji de vergonha alheia)

ALINE: Vai morder? KKKKKKKKKKK

THAMY: Estica o braço KKKKKKKKKK

LOLA: Um parque?

Lembranças juvenis tomam a mente, era um tipo de lugar que costumávamos passear nos tempos de escola.

ALINE: É uma boa.

THAMY: Talvez.

ALINE: Para de ser chata, ou ficaremos o resto do dia nisso.

THAMY: Tá bom, q seja KKKKKK.

ALINE: Tem o Ibirapuera.

Sugiro, cheia de esperanças.

LOLA: Perfeito!

THAMY: Ñ, lá fede (emoji de nojo)

LOLA: KKKKKKK Conheço uma trilha que não tem esse fedor.

ALINE: KKKKK Então fechou, Ibirapuera amanhã à tarde.

As duas confirmam e logo ficam offline. Envio mensagens para Cris, Eric e Marcos, mas não obtenho resposta. O engarrafamento avança a passos de tartaruga, mexo no rádio, inquieta, encontrando um sertanejo dançante, que papai rapidamente pede para desligar. Vasculho os bolsos da calça jeans, mas estão vazios. Merda, esqueci os fones na mala de mão.

- Tio, tem fone de ouvido? - indago.

Ele fica pensativo, procurando nos bolsos e por fim abre o porta luvas, de onde despencam vários papéis, pacotes de doces, camisinhas, e um emaranhado branco. 

- Boa sorte. - estende a bola de fios.

Suspiro perante aquela desordem, mas devido a ausência de opções estalo os dedos em preparação para o desafio, pelo menos ajudará a passar o tempo. Estica. Torce. Dobra. Mas não obtenho êxito, nem as unhas parcialmente roídas ajudam. Sigo a trajetória de uma das extremidades, forçando entre aberturas. O veículo avança e mal percebo.

- Como conseguiu chegar nesse estado? - questiono Dandão.

- Não faço a mínima ideia. - sorri, divertido.

- E como usa?

- Simples, não uso.

Expiro pelo nariz, o fuzilando com o olhar. De volta a labuta, início pela outra extremidade, também progredindo pouco. Praguejo baixo e enfim desisto, utilizando da ponta mais longa no ouvido direito e segurando o aparelho com o cotovelo apoiado na base da janela. O trajeto segue lento e não tenho noção de quanto tempo permanecemos nesse “mar” de motores ressonantes e buzinas estridentes. As batidas do pop internacional me distraem enquanto analiso o externo, que por algumas localizações reconheço rapidamente ser a Avenida Paulista, com seu abundante trânsito de corpos, que parecem sempre atrasados para compromissos importantes.

À medida que crescia, acostumei ao ritmo acelerado da metrópole, mas observando como uma viajante sazonal, a apatia do ambiente causa inquietação em meu âmago. Há tanta preocupação por chegar a um objetivo que as pessoas nem percebem com quem cruzam, ou a pouca, mas existente natureza ao redor. Muito menos os talentosos artistas com suas belas canções, malabarismos, e a inexplicável habilidade de permanecer imóvel como uma estátua por tanto tempo.

Acho que falta mais calor humano na terra da garoa.

O céu assume tons soturnos e estou tão envolta com a música e a visão rubra do MASP que demoro a perceber quando o carro arranca e ganhamos liberdade.

As ruas se tornam menos povoadas e barulhentas ao passo que nos distanciamos do Centro em direção à Zona Oeste, o trajeto pelo bairro Vila Madalena ganhando familiaridade ao nos aproximarmos do destino. O canteiro composto por laranjeiras se estende dividindo a alameda, pouco iluminada pelos postes. Quando o automóvel estaciona, memórias agradáveis preenchem meu peito e fazem o coração acelerar, tento controlar a euforia e os olhos que ameaçam arder.

A igreja poucos metros à direita ajuda a iluminar a rua, meus avós tiveram sorte em herdar uma moradia tão próxima de onde possam professar sua fé.

Com o antigo truque de puxar o botão amarrado na corda, Dandão abre o portão de madeira com facilidade. O muro da residência é baixo, e apesar do bairro ser um dos mais seguros da cidade ainda preocupo com meus avós, há anos peço que reformem isso. Após os degraus concretados, avisto o jardim de vovô, colorido e bem cuidado como de costume. A variedade de flores perfuma o ambiente com notas adocicadas e frescas.  

O intenso aroma de temperos e preparos nos atinge ao cruzar a porta amarela, fazendo salivar. 

- Ô de casa! Tem um pedaço de pão pra nóis? - Dandão graceja.

Os homens seguem pelo longo corredor que desemboca na sala de televisão, enquanto permaneço analisando o redor. Estar aqui sempre renova minhas energias e conduz a um tempo onde as coisas eram menos complicadas. Toco com delicadeza um dos vários quadros pendurados pela parede, os traços cheios de cor formam a imagem de três crianças brincando com uma bola em meio a um pasto verdejante, árvores e uma cabana compõem o segundo plano. A assinatura de vovó no canto inferior direito é inconfundível. É uma artista incrível. 

Viro para a pequena sala de leitura e o sofá coberto em crochê branco, mas quando penso em explorar mais, uma voz animada se faz presente:

- Finalmente!

A senhora corpulenta surge da passagem para a cozinha, o sorriso de orelha a orelha enfeita o rosto coberto de sardas. Atravesso o passadiço no ritmo das batidas do meu coração, sem importar com a mala, e divido o aconchego do abraço com João.

- Vocês estão tão lindos… - ela aperta o máximo que consegue, cobrindo-nos de beijos.

- Você que é uma deusa. - retribuo o carinho, observando a armação retangular que parece nova. Os fios grisalhos mesclam nos pretos, arrumados em um coque baixo, que com o passar dos anos se tornou seu visual recorrente, como um personagem de desenho animado.

- Seria uma deusa com esse cabelo maravilhoso, como queria ter esses cachos volumosos. - sorrio lisonjeada e seus dedos trêmulos pela idade acariciam o topo de minha cabeça.

- João, como está diferente!

- Mudei o corte de cabelo. - ele ri.

- Está com bigode! - o tom de vovó sai agudo, numa mistura de surpresa e admiração.

- Já era hora, estava começando a pensar que tinha uma irmã. - provoco, recebendo uma cotovelada. 

- Normal, seu pai também demorou para crescer barba, antes parecia um filhote de rato. - a senhora fala com naturalidade.

- Mãe! - o homem reclama, e risadas reverberam pelo cômodo, principalmente do irmão.

- O que? É verdade.

- Depois que saia do banheiro parecia cena de crime, se cortava de tanto raspar o rosto, acreditando que assim cresceria mais rápido. - Dandão completa, a gargalhar.

- Pelo menos não era o Toni Ramos aos treze anos. - o outro rebate.

- Bastava uma máquina e a questão estava resolvida.

- Parem de bobagem, vocês dois. - a matriarca tenta apaziguar. - Com pelos ou sem pelos os dois são lindos, mas isso não importa, criei filhos e não cachorros.

João Victor se diverte, e papai fuzila o irmão com o olhar.

- O que tem pra comer? - Dandão atravessa o degrau para a cozinha.

- Estou terminando ainda. - vovó avisa, voltando-se para nós: - Porque não tomam banho e relaxam da viagem enquanto isso?

- Cadê vovô? - João indaga, retirando o fone do pescoço.

- No fundo com as plantas dele, se deixar até dorme lá. - pontua de forma descontraída. - Geraldo! Eles chegaram! - eleva a voz. - Podem ir guardando as malas, já trago as toalhas.

A divisão dos quartos é conhecida. João retorna em direção ao corredor e agilizo para recuperar minha bagagem. Papai atravessa a cozinha em direção a lavanderia, até o cômodo que minha avó também utiliza como ateliê.

Adentro a porta dupla escancarada, o tom azul pastel reafirma a calmaria que me toma toda vez que passamos parte das férias aqui. João toma conta da parte superior da beliche e não oponho, apoiando a mala de mão acima da penteadeira branca, que possui dois pequenos armários como apêndices, os quais nunca usamos, por mais que a dona da casa insista.

Sento no chão e preparo para o pior, arrastando o zíper da bolsa maior aos poucos, e tentando conter as roupas de vazar, mas é inútil. As vestimentas jorram, espalhando no decorrer dos ladrilhos de madeira em consequência a tamanha desorganização. Talvez devesse arrumar a mala dias antes da viagem e não deixar para a última noite. Ou simplesmente trazer menos peças.

- Depois eu sou o bagunceiro. - João Victor alfineta.

- É? Já olhou sua mala?

Responde com uma careta:

- São só duas semanas, pra que tanta coisa?

- Preciso mais do que short e camiseta para ficar apresentável. - sei que estou errada, mas não amoleço. - E você, trouxe cueca o bastante ou bancará o porcalhão de novo?

- A roupa tem dois lados por um motivo, quando um suja, a gente usa o outro.

Contorço, em repulsa:

- Por isso nenhuma menina te quer.

- Quem disse? - seu rosto molda em uma expressão sagaz. Tento afastar as imagens das meninas indo lá em casa. Pobre coitadas.

- As toalhas. - vovó aparece, depositando os objetos acima da penteadeira, a feição logo muda ao deparar com o tsunami de calças, vestidos e camisas.

- Aline, o que aconteceu?

- Posso te falar o que não aconteceu. - tento anuviar a situação.

- Deixa aí que arrumo daqui a pouco.

- Nada disso, vá fazer suas coisas, das minhas bagunças eu cuido. - um sorriso descontraído corta os lábios.

Apesar de replicar o gesto, noto certo abatimento no olhar, sei o quanto aprecia se fazer útil para todos, pois aprendeu que a mulher deve se portar dessa forma.

Me martirizo internamente com suas decisões de vida. Na era moderna, onde as mulheres conquistaram tanto, apesar de ser apenas o começo, ela ainda se prende ao meu avô, dependendo de sua “autorização” para tudo. Já conversei com os dois sobre, tentei aconselhar e encontrar um acordo, mas o controle que ele exerce sobre ela é espantoso e resistente.

- Qualquer coisa estou na cozinha. - declara gentilmente ao nos deixar.  

- Vai primeiro, cascão. - aponto as toalhas.

- Já ia mesmo. - fala cheio de si, descendo em um pulo. - Depois que você entra no banheiro não sai nunca.

- Até parece que sou eu quem perde tempo batendo punheta.

Quase consigo sentir o arrepio que percorre sua espinha, demonstrando na face o temor adolescente por mais alguém descobrir a informação. Pega a toalha verde, e antes de sair chuta as peças adiante, espalhando ainda mais.

- Filho da puta… - tento alcançá-lo, mas é ligeiro.

Recolho tudo, arremessando-as na pilha que parece maior vista de cima. O desânimo abate só de pensar em arrumar. Mas talvez não precise. Se aguentou bem na vinda, aguentará bem na volta, é só esconder tudo e não permitir que papai sequer sonhe com essa bagunça.

Seleciono uma muda de roupa, algo mais leve e confortável, e desabo no colchão. Apesar das poucas horas no avião, me sinto exausta.

A despeito do cansaço, olhar os móveis e a decoração é quase como voltar no tempo, à época onde meu pai e Dandão dividiam esse espaço. Cômoda, penteadeira, criado-mudo, armários e até a beliche, tudo se encontra bem conservado, somente possuindo algumas ranhuras ou desgaste superficial da pintura. Outros detalhes que remontam àqueles tempos estão espalhados pelo quarto, como a moldura do retrato da seleção brasileira em 1982; as medalhas e troféus acima dos armários, referentes a torneios de futebol e boxe; o calendário do ano 2000 com a foto da formatura de Dandão; e outra moldura com a medalha oval e bem ornamentada do exército brasileiro, atada a um tecido verde com detalhes em amarelo.

Devaneio tentando decifrar como foram suas infâncias e adolescências nessa casa, as brincadeiras, as refeições em família, os natais, os aniversários…, e o mais importante, como minha tia conseguiu aguentar dois irmãos sem enlouquecer? Tenho um e estou quase cometendo crime passional.

De repente noto o feixe branco de luz que corta o centro do cômodo, vindo da pequena abertura no teto. Miro o forro de madeira no exato ponto, decidindo deitar no chão, da forma que sempre fiz. A fenda quadrada proporciona a visão do céu pouco estrelado e parte da lua, através de uma brecha nas telhas, que com o tempo, descobri ser protegida por um tipo de fibra plástica transparente, quase imperceptível a olho nu. Remonto à garotinha que adorava passar os dias chuvosos aqui, observando as gotículas atingir a membrana e deliciando com o som relaxante, que por vezes conduzia ao sono profundo.

Já questionei vários membros da família sobre a existência da abertura e qual seu propósito, mas ninguém parece saber, afirmando que sempre esteve ali. Erro de arquitetura ou detalhe proposital, só sei que os mistérios que rondam aquela fissura intrigarão e deslumbrarão a mente até o fim dos meus dias.

A realização me traz algo. Ergo com um salto em direção ao pequeno espaço entre a beliche e a parede. Esmurro o tablado até encontrar a parte oca, retirando o ladrilho escuro com certa dificuldade.

Descobri esse esconderijo por acidente aos dez anos, estava cheio de doces mofados e cartões pornográficos, teoricamente pertencentes a um dos antigos donos do quarto, ou ambos. Os olhos brilharam e a mente infantil vagou diretamente para os contos medievais, com seus castelos cheios de passagens secretas e compartimentos ocultos. Sentia como uma mistura de Cinderela e Sherlock Holmes, as histórias que possuia maior apreço na época. Após descartar tudo, apoderei do espaço, um local que só eu sabia a existência, e onde depositaria as coisas favoritas da vida. As pequenas pelo menos.

Analiso os objetos um a um, processo que executo todos os anos em que venho para cá, mas nunca canso de repetir. Revisitar o passado é sempre uma nova aventura.

A moeda de um cruzeiro dada por vovô Zeca está incrivelmente intacta, a tonalidade do cobre ainda prevalece. Sinto o relevo do mapa do Brasil montado em forma de tangran; a pulseira miúda em tons pastéis é formada por figuras de estrelas, luas e corações, lembro como se fosse ontem, mamãe e eu divertindo com o kit que comprou, mas essa não é a original, pois não a tirava nem para o banho, então fiz uma réplica só para guardar aqui; a tatuagem de chiclete representando uma bailarina não teve a mesma sorte dos itens anteriores, e se encontra quase indistinguível devido ao desgaste. Penso em testar na pele, mas desisto em seguida, não deve ser seguro, principalmente levando em conta que está aqui por no mínimo uma década; minha alegria cresce ao desdobrar os ingressos dos filmes de Harry Potter, fiz economias e muita birra para ir a todos, com turmas de colegas diferentes a cada vez. Recordo de ler os livros muito rápido e um após o outro assim que descobri a existência desse mundo mágico; o papel roxo de bombom surpreendentemente ainda tem o cheiro do doce, recebi do primeiro menino que beijei e depois namorei por um mês, a questão é que ninguém sabia disso além de mim, nem ele; e não foi o único namorado imaginário, muito menos o último, o pôster de Felipe Dylon está aqui para provar, com papel gasto e furos nas dobras. Minhas amigas e eu éramos alucinadas por ele, mas infelizmente não possuíamos idade ou dinheiro o bastante para ir ao show, contentando por esperar ansiosamente seus clipes passarem na televisão. Olhando bem, percebo certa similaridade com Marcos, principalmente o cabelo, acho que sempre tive uma queda pelos cacheados; o outro documento amarelado é um desenho da minha família, as representações abstratas e infantis me tiram uma risada, pena minha avó não ter passado os genes das artes plásticas; a vela cor de rosa com formato de bailarina se encontra mais ao fundo, o número doze estampado. Causei uma pequena confusão ao pegar o item depois da festa de aniversário, pois não era originalmente meu, mas a beleza e os detalhes me fizeram penar valer a pena o pequeno furto, até hoje a garota deve se perguntar o que aconteceu; a delicada chave dourada traz dezenas de memórias e momentos de emoções desmedidas, era o que utilizava para trancar meu diário. A coloquei aqui a fim que João não encontrasse, mas nada o impediu de quebrar o cadeado e o fecho, esmagando-os contra a parede.

Chego no último e mais recente objeto: o broche de quando ingressei no curso de jornalismo da USP. No momento que papai decidiu mudar para a Bahia tive a opção de permanecer aqui, morar com meus avós, terminar os estudos e continuar com a rotina a qual estava habituada, e por algum tempo estava certa disso, o medo do desconhecido povoando a mente com pensamentos duvidosos.

As possibilidades da vida paralela intrigam, e por vários minutos permaneço imersa em perguntas das quais nunca saberei a resposta. Mas a ínfima chance de não conhecer Eric, Cris, Olivia ou Marcos faz o coração apertar. Foi a melhor decisão que tomei na vida.

Devolvo tudo com delicadeza, lamentando não trazer o anel de formatura, seria uma boa adição à pilha. Mas outra ideia surge e vasculho a mala de mão, afastando maquiagens e pincéis. O tilintar do molho de chaves é seguido por um sorriso de canto de boca. Separo o chaveiro de meio coração com os dizeres: “Pra sempre seu”, presente de Marcos no dia dos namorados, e o deposito no vão. O garoto merece um lugar ao lado das coisas mais importantes em minha vida.

O sorriso bobo não deixa o rosto, e permaneço tão entretida com as lembranças que nem percebo meu irmão chegar, aparentemente a ameaça prévia causou efeito. Tampo o esconderijo e finjo normalidade ante seu olhar desconfiado. Agarro as roupas e a toalha, bagunçando seu cabelo molhado antes de seguir para o banho.

Limpa e sem odor de suor, seco o cabelo gradualmente, das pontas à raiz, amassando para que os cachos se mantenham. Poderia aproveitar para desembaraça-los, mas não estou a fim de passar pela sessão de tortura.

A luminosidade natural confere um tom prateado às peças no cabide comprido do banheiro. Posiciono a toalha ao lado da de João e me junto ao restante do grupo na cozinha.  

- Geraldo, vem comer! Deixa essas plantas por um minuto, pelo amor de Nossa Senhora!

O espanto pelos gritos da idosa não é maior do que a visão da mesa. Vovó costuma fazer esses banquetes toda vez que visitamos, mas acho que hoje acabou exagerando. Ocupo a cadeira ao lado de Dandão, que se entretém com o celular, e em dado momento inclina para a travessa com o frango assado.

- Espera o restante, filho! - vovó repreende.

- É só uma batata. - pega a tira oleosa e enfia na boca sem dar importância, levantando as palmas em sinal de rendição. Depois vira para mim: - Pode pegar se quiser.

- Daqui a pouco. – acho graça, ignorando o roncar do estômago.

Vovô surge, cumprimentando com um simples aceno no caminho até a pia, onde enxagua as mãos sujas de terra. Sua personalidade retraída e pouco carinhosa é algo com o qual acostumei, consequência da criação rígida e passado militar.

- Bença vô, como está? - toco a mão molhada ao se aconchegar no assento da ponta.

- Deus te abençoe, minha querida, estou levando na medida do possível. Com o calor infernal dessa cidade as mudinhas que consegui estão morrendo, falta água quase todo dia; tem uns gatos que não me deixam dormir a noite, ficam brigando no telhado… - finjo interesse.

- Não cansa de reclamar? - a mulher interrompe ao ocupar seu lugar. - Poderia ao menos pensar um pouco mais positivo, ter paciência e entregar o restante nas mãos de Deus.

- Deus deveria acabar logo com esse mundo cheio de devassidão e perdição.

A similaridade com papai me faz segurar o riso.

- E iriamos morar aonde? - Dandão tenta brincar, mas o outro permanece sério:

- No paraíso, oras, nosso lugar de direito.

- Tem Wifi lá? Se não for assim nem quero.

- Olha o que fala, garoto! Mostre respeito pela palavra de Deus! - o idoso esbraveja.

- Respeito muito, mas seria legal se parasse de convocar o apocalipse diariamente.

- É a resposta dele pra tudo. - vovó completa, reprovando com um aceno de cabeça e desistindo de argumentar.

João e meu pai adentram o cômodo, o primeiro mais lento e com a atenção voltada ao celular.

- Bença, pai. - Júlio engloba a mão do outro com ternura, e recebe a resposta de praxe. – João, cumprimente seu avô.

- E aí, vô. - não encara ninguém.

- Deus te abençoe. – solta, nitidamente contrariado.

Após a curta oração, a matriarca prontifica em servir a todos. O prato de Dandão é preenchido com um pouco de tudo, formando uma pilha colossal, quantidade que me sustentaria por dias, mas como ele sempre diz: 'está em constante fase de crescimento e precisa alimentar sua criança interior'. Sou a próxima:

- Farofa de feijão, arroz, carne cozida e salada, por favor.

- Só isso? – aceno positivamente. - Sei que bailarinas precisam ser magras, mas tem que alimentar direito.

- É mais que suficiente. – apesar do olhar preocupado ela continua a encher a louça.

- Não precisava fazer essa quantidade de comida, mãe. – meu pai ressalta.

- Foi o que disse a ela, um completo desperdício. – vovô concorda ao resmungar.

- Parem de amolação, não haverá desperdício, o que sobrar levarei para as doações da igreja. – ela justifica. – Mas se conheço bem esse daqui, não restará muito. - indica o marido com um movimento de cabeça.

- Agora já está falando injúrias, nem como essas coisas, por causa da gastrite.

- Sei…, sou eu que vasculho a geladeira de madrugada atrás de besteira. – assume um tom sarcástico, devolvendo meu prato.

- Não é culpa minha se esse amargor persiste na boca, às vezes preciso comer um docinho pra dissipar. – esforça ao contar a desculpa esfarrapada. Vovó dá de ombros e Dandão se diverte, quase engasgando.     

- O que vai querer? – ela pega o prato do marido.

- Feijão, arroz e um pedacinho do frango. - não reclama quando a esposa começa a abarrotar a louça, incluindo a coxa e sobrecoxa do assado, mas chama a atenção quando alcança a travessa de feijão verde. – Esse não.

- Disse que queria feijão.

- Isso é um monte de farinha e grão duro que não consigo mastigar, quero feijão de verdade, com caldo.

Ela suspira, engolindo em seco:

- Terminarei aqui e esquento, acho que tem sobras na geladeira.

- Posso fazer. – papai oferece.

- Não precisa, querido. – ela mostra um sorriso cordial. – Me dê seu prato.

Enquanto serve os demais com porções maiores que o ordenado, delicio nos sabores que conduzem a períodos diversos: os domingos esgotando as energias ao correr por aí com os primos; as tardes depois da escola inventando coreografias com as amigas; as datas comemorativas que reuniam a família; todos os momentos culminando nessa mesa, envolta pelos mesmos perfumes culinários.  

- Está excelente, vó.

- Obrigada. – sorri em lisonjeio, rumando à geladeira. – A propósito, como está o balé? Sinto falta de te ver dançando. - despeja o feijão na panela escura, o azul da chama também presente no fogão e no restante da mobília.

- Está ótimo. Mas não faço mais parte da companhia. Não uma que realize apresentações de repertório pelo menos. - levo uma garfada à boca.

- Por quê? - curiosidade cobre seu olhar.

- Complicou muito depois que comecei na faculdade lá em Salvador, não conseguia manter a dedicação necessária, então preferi fazer aulas regulares três vezes na semana.

- Que pena, você sempre foi muito boa. - fala com pesar.

- Foi uma decisão acertada, a carreira no balé era algo difícil, instável, muito mais um sonho de Helena. - papai comenta, referindo à minha mãe.

- Se dançar desse dinheiro, todo mundo sairia por aí saltitando. - vovô critica, e tento manter a parcimônia, suas deduções estão agarradas a outros tempos, outros costumes.

- Mas pode continuar agora, já que formou. - Dandão toma o suco de laranja.

- Formou em que? - o patriarca soa confuso e vovó adianta na resposta:

- Jornalismo, vimos as fotos da formatura, lembra? Estava deslumbrante, inclusive. - Ela continua a mexer a caçarola fumegante.

- E jornalista faz o que?

Não seguro o breve riso perante o comentário:

- Escreve artigos para jornais, revistas; investiga e conta histórias que acontecem com outras pessoas; várias coisas. - explano, e o senhor junta as sobrancelhas numa mistura de confusão e rejeição.

- Vai aparecer na televisão e apresentar o jornal, igual Fátima Bernardes. - minha avó soa animada, distanciando do eletrodoméstico e servindo o marido.

- Fátima Bernardes não apresenta mais o jornal. - ele corrige.

- Será igual Willian Bonner então, o que é melhor, pois ganha mais. - abro um sorriso amarelo para meu tio, é inacreditável uma sociedade onde as mulheres são menos recompensadas executando o mesmo ofício dos homens.

- Esquentou demais, Arlete! - o idoso reclama.

- É só esperar, meu bem. - ela serve a própria refeição, focando em mim: - Está trabalhando?

- Atualmente não, mas fiquei na redação de um Jornal por sete meses, ano passado.

- Ela está mais preocupada em namorar. - João solta de repente e o chuto por baixo da mesa, recebendo a mesma retaliação. Não queria que a informação espalhasse dessa forma.

Meus avós não escondem a surpresa, todos os olhares voltados para mim.

- Quem é o sortudo? - Dandão inicia o interrogatório.

- Um ex-colega de trabalho, o nome dele é Marcos. - hesito. Assuntos como esse na mesa de jantar nunca são totalmente confortáveis.

- Não acha que é muito cedo para ela namorar? - o idoso se dirige ao filho mais velho.

- Como assim?! Ela é adulta. - o homem ao lado soa incrédulo, tirando as palavras da minha boca. Respiro fundo e tomo um gole do suco.

- E responsável o bastante, confio nela. - o olhar amistoso de papai pousa sobre mim. Apesar de ainda não acostumar com a figura de Marcos, tenta respeitar minha decisão.

- É um rapaz honroso? - vovó intervém e tento compreender o sentido da palavra.

- Ele é gentil, educado, carinhoso, me aceita do jeito que sou… - respondo, e um singelo sorriso brota em seus lábios:

- É de igreja?

- Não.

- Isso é errado. - o patriarca bufa. - Trevas não misturam com luz, você é uma garota criada na casa do Senhor.

Me seguro para não revirar os olhos:

- Ele é tranquilo, não faz nada de “errado”. - com exceção à tatuagem, à bebida, à maconha e às safadezas que manda através dos áudios de whatsapp.

- Não pode permitir isso, Júlio. - a facilidade que tem para me ignorar faz o sangue ferver nas veias.

- Já realizei alguns testes com o garoto e ele passou, fique tranquilo.

O miro confusa. Que testes?

- É assim que educa seus filhos? Daqui a pouco ela surge com criança, e a culpa será sua.

Papai parece tão farto quanto eu:

- Já disse, ela é responsável, pai. - insiste, e João faz careta, ciumento, imitando a frase entredentes.

- Veremos. - o idoso mistura os alimentos no prato numa espécie de “mexidão”.

- Sei muito bem como prevenir essas coisas, vô, não irá acontecer por tão cedo.

- Mas não espere tanto assim para o casamento, quero ver meus bisnetos. - a mulher intervém.

- Arlete! Não incentiva a menina! - o marido repreende, incisivo.

- Não estou incentivando, disse que quando estiver pronta…

- Uma moça tem que se valorizar, não pode casar com qualquer um.

Engulo o aborrecimento com uma garfada de arroz e feijão, odeio quando as pessoas acham que sabem melhor da minha vida do que eu. A outra permanece calada, sabe que a discussão não levará a lugar algum.

- E você João, como anda os estudos? - ela quebra o silêncio, após um tempo.

- Terminei o ensino médio mês passado.

- Precisou refazer o terceiro ano. - papai explana a verdade, e o garoto releva, já escutou todas as broncas e reclamações possíveis durante o ano.

- Fará vestibular pra que? - vovó continua.

- Ainda não sei. - ele come o macarrão, destrinchando a coxa de frango em seguida.

- Relaxa cara, essas coisas são difíceis mesmo, é uma decisão que precisa ser pensada. - Dandão aconselha.

- É bom pensar logo, não trabalho para criar vagabundo. - papai decreta.

- O que gosta de fazer, querido? Por qual área interessa mais? - a idosa tenta apaziguar, e o outro reflete:

- Gosto de futebol, queria fazer audições para uns times de Salvador, mas meu pai não permitiu.

- Por que? - ela se volta ao filho.

- Futebol é lazer, não profissão.

- Tem um monte de jogador famoso por aí, ganhando milhões por mês. - João rebate.

- Mas sabe a trajetória que fizeram para chegar nesse status? Aposto que a maioria nem possui ensino médio completo. É necessário sorte e dedicação pra essas coisas, garoto.

- Aline pode ser bailarina e o caralho, mas quando se trata de mim é sempre não. - libera a raiva.

- Olha a boca, moleque! Respeita seus avós. - papai aumenta o tom de voz. - Ela estudou, nunca repetiu uma série na escola ou semestre na faculdade. Quando alcançá-la e mostrar um diploma poderá escolher o que quer fazer da vida.

Meu irmão engole em seco, mantendo a carranca e levando outra garfada à boca.

- O pressionando dessa forma não adiantará nada. - Dandão intervém.

- Ele precisa saber o que é ter comprometimento à algo.  

- Então coloque para trabalhar na pizzaria.

- Deus me livre, atrapalha mais do que ajuda.

- Se soubesse ensinar sem gritar… - João grune.

- Se empenhasse em aprender alguma coisa. - o homem rebate.

Me compadeço pelo garoto, mas o chacoalhão é necessário para aprender que a vida não é composta de video game, jogar futebol e sair com os amigos.

- Tenha paciência, filho, ele vai se encontrar. - vovó  intercede.

- Como?! Se não levanta a bunda da cadeira? É no computador e no celular o dia inteiro, acha que as contas se pagam sozinhas! - esbraveja.

- No meu tempo não tinha essa mordomia de brinquedinhos eletrônicos e internet, tudo invenção do diabo para corromper as pessoas. Se não obedecesse eram dez palmatórias em cada mão. - vovô completa.

- Vamos nos tranquilizar e comer, mesa de jantar é lugar de paz, e não brigas. - o restante obedece a matriarca, cessando o assunto.

- Porque Verônica e Dolores não vieram? - Dandão indaga.

- A mãe de Verônica caiu e fraturou o osso da bacia, então decidiram ficar para ajudar no pós operatório. - meu pai esclarece.

- Que coisa horrível, Deus é de abençoar que fique bem logo. - vovó lamenta.

- Amém. - diz, mastigando. - Pelo menos ficou cuidando da pizzaria, assim não precisamos fechar e perder a clientela desses dias.

- O negócio está melhor?

- Não, na verdade indo de mal a pior.

- Por que? - o irmão não parece estar a par da situação.

- Essa crise pavorosa. Perdemos mais da metade dos clientes, ninguém faz pedidos, tive que demitir dois funcionários. - Júlio solta o ar ruidosamente pelo nariz.

- Aconteceu algo parecido lá na concessionária. Em tempos como esses ninguém está a salvo.

- Colocarei o nome da pizzaria no grupo de oração essa semana. - a mulher diz.

- Obrigado, mãe. - abocanha outra garfada.

Minutos depois, finalizo a refeição. A barriga alguns centímetros maior, assim como a alegria de degustar novamente essa culinária.

- Mais? - a mulher se adianta com o prato.

- Não, estou cheia.

- Tem sobremesa? - Dandão manifesta, também com a louça vazia.

- Fiz doce de abóbora.

Meu tio e eu trocamos olhares empolgados, e concerto a postura. Encontrarei espaço no estômago, nem que seja necessário empurrar o doce goela abaixo. O ar é cortado pela abertura do trinco da entrada, seguido por baques surdos contra o piso. É uma surpresa agradável quando Tia Ramona surge do corredor:

- Cheguei na melhor hora. - o sorriso alvo e convidativo aparece amplo.

Ergo o mais rápido possível, levando em conta as atuais condições, e a aperto em um abraço entusiasmado.

- Que saudade de você, boneca.

- Também senti sua falta.

- Como estão as coisas em Salvador? Curtindo a praia, comendo muito acarajé? - arranca risadas ao afastar.

- Não tanto quanto gostaria, as coisas estão corridas e um tanto complicadas.

- Imagino. - fala com pesar. - Ei, João! Está gato demais, amei o cabelo. - ele a cumprimenta com um sorriso cortês e a mulher abraça o próximo. - E você irmãozão, cada dia com menos cabelo.

- A idade vai chegando, não há como disfarçar. - fala, divertido, para surpresa geral.

- Passa a gilete e assume a careca.

- Não irá melhorar.

- Ficará mais bonito do que tentar disfarçar com três fios de cabelo. - Dandão e João não disfarçam a risada, e o outro dá de ombros. - As mulheres preferem os carecas, Verônica irá adorar.

- Pensarei no caso. - ele esboça um sorriso.

O caftan azul com detalhes em rosa e amarelo desliza pelo cômodo conforme ela cumprimenta os pais, os cabelos escovados remodelando as bochechas saltadas e o queixo quadrado:

- Aliás, cadê ela?

- Ficou em Salvador para cuidar de assuntos familiares.

- Que pena, tenho umas roupas do brechó para ela e a filha, queria ver o que servia. Pra você também, Aline.

Abro um sorriso satisfeito, as peças que Ramona vende são geralmente muito estilosas, remetendo à décadas anteriores:

- Sei as medidas delas, posso escolher e levar na mala.

- Ótimo. Passa lá segunda, pois não conseguirei trazer. - assinto. - Já fica de presente de Natal.

- Senta, filha, come um pouco. - vovó manifesta.

- Não, obrigada, vim aqui só ver Júlio e as crianças, tenho que correr para a escola de Antônio.

- Num sábado?     

- É uma daquelas apresentações de final de ano que os professores desocupados inventam. - desdenha.

- Leva então, tem comida o bastante.

- Aceito, é bom que não cozinho amanhã. - usa de tom descontraído e a matriarca vai em direção a gaveta de tupperwares, começando o armazenamento.

Ramona analisa as unhas tingidas de branco, provavelmente recém pintadas, o rosto com rugas e marcas de expressão não encobrem sua beleza natural, livre de procedimentos estéticos, como prefere. A vaidade sempre a acompanhou, fazendo questão de transmitir todos os rituais e truques de beleza. Devo a ela minha iniciação nas técnicas de maquiagem, as quais me salvaram de ir para a escola parecendo um panda. As horas que despendíamos em frente à penteadeira eram as que mais ansiava na semana.      

- Como estão os gêmeos? - papai indaga.

- Me levando a loucura. - o outro ri brevemente. - Amanhã trago os dois.

A mulher vivenciou uma gravidez tardia e cheia de riscos, mas apesar de prematuras, as crianças cresceram saudáveis e cheias de energia. Devem ter dez ou onze anos atualmente.

- Dandão, sairei com Frederico após a apresentação, fica com as crianças. - ela vira para o irmão.

- Fui rebaixado a babá, que maravilha. – usa de sarcasmo.

- Se quer ficar lá em casa, precisa ajudar em algo.

- Por que está na casa dela? - vovô franze o cenho, depositando os talheres no prato vazio. O filho tremula antes da resposta:

- Preciso de um lugar enquanto procuro uma casa.

- O que aconteceu com a outra?

- Camila ficará com ela.

- Como assim? Porque não moram na mesma? - percebo certa indignação.

Titio engole em seco.

- Converse com ela, meu filho. - a matriarca clama em compaixão, ocupando as demais travessas.

- Já conversamos, várias vezes, está decidido.

- Não diga que continuará com essa palhaçada de separação! - a voz do idoso ganha volume e nuances de aversão.

- Não há o que continuar, está feito. - fala, cabisbaixo.

- Que tipo de homem é você? Abandonando esposa e filhos!

- Não os abandonarei, posso ver meus filhos quando quiser.

- Casamento é sagrado! Arruinará sua vida para farrear?! - esmurra a madeira e avança, temo o pior, o outro continua a mirar a mesa, amuado.  

- Geraldo… - a esposa tenta apaziguar, mas recebe desprezo.

- Esse é o exemplo que quer para os seus filhos?!       

- Ramona, vou com você. - meu tio levanta, tampando os potes.

- Certo. - está muito atordoada para demonstrar qualquer expressão.

- Não terminamos, rapaz! - o idoso grita, e o outro só agarra os recipientes. Com um adeus generalizado ruma à porta.

- Até amanhã, pessoal. - ela manda beijos no ar, fingindo júbilo e passando por nós como uma bala.

O patriarca bufa como um touro:

- A gente trabalha, se esforça, faz das tripas coração para criar os filhos e recebe desgosto em troca.

Papai e eu trocamos olhares chocados, enquanto João devora garfada após garfada, sei que segura comentários ácidos e brincadeiras não apropriadas para o momento.

- Pegarei o doce de abóbora. - vovó contorna a situação como pode.

Todos focam na sobremesa e o silêncio constrangedor prevalece, o tilintar dos talheres nos pratos é a única coisa que se faz escutar.    


Notas Finais


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Esse será o maior ESPECIAL da fic até o momento, serão 3 partes cheias de emoção e revelações sobre o passado de Aline.
O q acharam do lado paterno da família dela? Qual seu membro favorito da família?
Mesa de jantar tem q ter Barracos de Família kkkkkkkkkkkk #Amo
Saberemos um pouco mais dos "testes" q Julio fez com Marcos mais pra frente na história, guardem essa informação, mas parece q esta tudo de boa entre eles agora, pelo menos isso.
Dandão sofrendo com a separação e todo mundo só o pressionando, família pode ser algo bem complicado as vezes :(
Tem q ter MUITA paciência com seu Geraldo, o homem é mais inflexivel q uma barra de ferro kkkkkkk
Nosso cascão, digo João, é a prova de que quem come quieto e escondido dos pais come duas vezes, ou mais kkkkkkkkkkkkkkkk
Porém... não sigam o exemplo, crianças.
E falando nele, torço q Júlio seja mais flexível e o deixe seguir carreira no futebol.
Gostaram dos objetos e seus significados no esconderijo especial?
O q acharam do breve vislumbre das amigas antigas de Aline?
Próximo cap teremos mais delas ;)
Escrever dialogo em forma de mensagem de texto (como na conversa entre Aline e as amigas) incomoda vcs? Respondam com sinceridade, assim a gente fica sabendo se continua fazendo ou não.
Quais coisas vcs tem mais curiosidade em saber do passado de Aline?
Próxima quarta, dia 05/06, teremos a 2ª parte do nosso ESPECIAL.
Peço que nos ajudem falando da história para os amigos, na escola, para a familia, cachorro, gato, piriquito kkkkkkk Pega esse link e manda pra todo mundo, nos ajude a espalhar essa história maravilhosa kkkk:
https://www.spiritfanfiction.com/historia/desde-agora-e-para-sempre-13451170
Obrigado por comentar, até o próximo e uma curiosidade: essa parte da chegada deles em São Paulo era pra ser uma cena e compor um cap com outras duas, mas acabou transformando em um cap próprio pq expandiu demais kkkkkkkk a cada dia surpreendo com a minha imaginação pra expandir essa história.


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