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História Desertor - Capítulo Único


Escrita por: b-binnie

Notas do Autor


Hi sunshine!!
Sulay é maravilhoso, apreciem sem moderação.
Mas a primeira guerra mundial é um porre.
Go go!

Capítulo 1 - Capítulo Único


Fanfic / Fanfiction Desertor - Capítulo Único

 

 

 

"Um aviso para o povo

O bem e o mal

Isto é guerra

Para o soldado, o civil

O mártir, a vítima

Isto é guerra"

 

1915

Nunca ache que já viu o inferno de perto, se nunca esteve na guerra.

Ao fechar os olhos, ainda podia ouvir o barulho de bomba explodindo ali perto, e na maioria das vezes não era apenas coisa da minha cabeça. Eu tinha a sensação de que já estava ali há séculos, mas o líder do grupo fazia questão de sempre nos informar em que dia estávamos, para que não nos perdêssemos no tempo, não sabia ao certo se deveria agradecer-lhe por isso.

Pelas contas feitas, eu já era um soldado há seis meses, lutando junto às tropas alemãs, e não estava mais suportando.

Disseram que seria uma guerra curta, que só teríamos que matar alguns franceses e tudo estaria resolvido, mas já estava vivendo naquela trincheira a tempo suficiente para entender que não seria tão simples assim, não existia mais uma estimativa de tempo para o fim, poderia ser apenas por mais algumas semanas, ou meses, ou anos.

Era sempre a mesma coisa, as mesmas trincheiras, os mesmos ratos, os mesmos cheiros insuportáveis, e os mesmos inimigos, sem avanço algum, era exaustivo estar o tempo todo em alerta, com medo.

A morte se tornou algo comum e o medo dela também. Tudo o que tínhamos que fazer era matar inimigos e ver os amigos morrendo. Eu só queria ir para casa, ver outra vez a porta do meu quarto, o sorriso da minha avó, mas talvez eu não sobrevivesse tempo suficiente para isso.

A cada dia mais e mais feridos eram levados pelo comboio, no fundo sabíamos que a maior parte morreria, e os que sobrevivessem, seriam mandados de volta, para tentar morrer numa segunda tentativa, talvez.

Tudo o que sabia era que estava cansado de fugir de bombas, desviar de tiros, e no fim de tudo, sentir o vento trazendo o cheiro do sangue.

Passei a mão no rosto, limpando as lágrimas, quando escutei Franz, o líder do meu grupo, nos chamar.

— Vamos, vamos, é hora de comer – falou fazendo todos se levantarem apressados das camas improvisadas, e distribuindo pães para os que já estavam de pé.

Franz era ótimo em encontrar boa comida, logo agora que ela estava exorbitantemente escassa.

— Como conseguiu tudo isso? – Sehun perguntou, vendo que havia bastante pão para todo o grupo.

Oh Sehun era o único que eu conhecia antes da guerra, estudávamos juntos, foram bons tempos, era bem mais fácil manter uma amizade sem armas a mão o tempo todo.

— Você precisa ser esperto às vezes – Franz piscou, fazendo todos rirem, ele tentava amenizar o clima de medo sempre que possível, isso fazia as coisas melhorarem, mesmo que pouco.

Rapidamente nos arrumamos para sair, mais um dia de derramamento de sangue, o pior realmente era saber que podia ser o meu sangue.

— Você parece cansado – Sehun disse ao meu lado, enquanto estávamos escorados na terra suja da trincheira, segurando os rifles – Digo, mais cansado que o habitual.

— Eu que eu já estou farto de tudo isso – sorri cabisbaixo.

— Todos estamos – suspirou apertando a arma nas mãos – Mas, o que faremos senão lutar?

O que faremos senão lutar?

O sinal foi dado, hora de atacar. Primeiro, nós atacamos, depois eles revidam, e então somos nós novamente, até todos estarem exaustos.

Chamávamos o espaço entre as duas trincheiras de “Terra de Ninguém”, pois era o espaço que nenhuma nação tinha conquistado, ali só havia corpos em decomposição e esqueletos, que não puderam ser retirados, deixando tudo com um cheiro horrível, contaminado por larvas e ratos junto a lama, e era ali que deitávamos para fugir de disparos.

Logo os tiros começaram, poderiam ser ouvidos a quilômetros.

Saltei para fora da trincheira correndo, como de costume, atirando quase que cegamente, jogando granadas e desviando delas, ouvindo gritos e pulando corpos.

Quantas vidas tirei nesse momento? Muitas provavelmente. As ações eram quase insanas, impossível parar, se você para, você morre, é simples assim.

— Gás! – ouvi alguém gritar.

Com uma rapidez indescritível, retirei a máscara do suporte em minha roupa.

Os gases eram de longe o armamento mais assustador entre todos, ele nos fazia sufocar, tossir sentindo como se os pulmões estivessem pegando fogo.

E mesmo que todos soubessem disso, ainda podia ouvir soldados tossindo como nunca.

Deitado o chão, esperei até que o gás se dissipasse, para só então correr de volta para o abrigo, sem nunca deixar de estar atento ao lado francês.

Já era possível notar a falta de alguns soldados, por causa disso eu não costumava me aproximar dos outros, no final muitos não voltavam.

Procurei Sehun pelos corredores imundos, e nas camas também, mas não o encontrei em nenhum lugar, logo o desespero começou a me atingir.

— Franz! – gritei quando o vi, fazendo-o se aproximar correndo.

— Você está bem, Zhang? – ele perguntou, colocando a mão no meu ombro.

Assenti respirando de modo ofegante.

— Você viu o Sehun?

Sua expressão de repente se tornou melancólica.

— Da última vez, me lembro de tê-lo visto correr para perto das trincheiras inimigas, se não voltou até agora...

Neguei com a cabeça sem reação, dando alguns passos para atrás.

— Eu acho melhor você descansar um pouco – falou se afastando.

O dia correu e eu não sai da cama, fiquei lá sendo asfixiado pelos pensamentos, mas só assim percebi que não conseguiria ficar mais tempo naquele lugar, não mais, tudo naquele monte de barro e cadáveres tão familiares, me davam extrema repulsa, eu precisava sair dali, e só havia uma maneira, iria desertar.

 

[...]

 

A noite havia caído, minhas coisas já estavam prontas, não tinha muito o que levar, algumas roupas, uma corda, comida, uma pistola e minha adaga, esperava ser suficiente.

A maioria dormia, inclusive os franceses, era então a minha chance.

Fui para o lado de fora, os vigias estavam sonolentos, não seria difícil passar por eles sem ser visto, mas não diria o mesmo do lado inimigo.

Inimigo. Não deveria chamá-los assim, eles não tinham me feito nada, aquela luta nunca foi minha, por que eu tinha que estar lá? Amor à pátria? De que vai valer isso, quando não houver mais pessoas para amar a pátria?

Aqueles soldados franceses eram como eu, com a mesma saudade de casa, e o mesmo medo da morte.

Se conseguisse sair sem ser visto, iria contornar as trincheiras, até uma fazenda abandonada próxima, onde consumávamos buscar água, poucos sabiam da existência dela, de lá poderia dar a volta e continuar o caminho pela França sem maiores problemas, se tudo desse certo.

Eu não acreditava que iriam me procurar, afinal, estavam ocupados com os massacres, o lugar mais provável para um soldado fugir, é o seu próprio país, pois a maioria deserta por sentir falta da família, ou por ser perigoso cruzar a Terra de Ninguém, a polícia alemã não me procuraria numa fazenda, pelo menos eu teria tempo para pensar em onde me refugiaria.

Em silêncio, passei agachado, atrás dos soldados que estavam de guarda, em meio ao breu, eles não notaram a minha presença, dessa maneira pude sair sem ser visto, por ambas as partes do conflito.

Deitado em meio a terra, segui me arrastando pelo chão com a ajuda dos cotovelos, teria que passar um bom tempo me deslocando desse jeito, já que ainda era perigoso ser visto.

Conforme o tempo ia passando, eu ia me sentido exausto, o chão estava lamacento devido as chuvas, dificultando a trajetória, e sujando a minha roupa sem dó, sorte que ainda estava usado a farda, pretendia colocar minhas próprias roupas ao chegar na fazenda.

Depois de horas, percebi que já estava longe o suficiente das trincheiras. É bem mais fácil fazer uma invasão um de cada vez, soldado por soldado, mas o governo jamais pensaria assim, não podia entender, porém de certa forma parecia até bom, eu nunca gostei desse costume mundial de tentar roubar a terra dos outros.

Me levantei, sentindo fortes dores nas costas, nos ombros e nos braços, respirei fundo, colocando na cabeça que aquela dor seria necessária para que eu conseguisse finalmente ser livre.

Mas mesmo estando distante, eu não podia baixar a guarda, afinal aquilo ainda era uma guerra.

Ao longe, já era possível ver a pequena fazenda, não foi difícil, na verdade foi fácil, fácil até demais, não pude deixar de ter a sensação que as coisas só foram simples assim pois iam piorar dali para frente, realmente esperava estar errado.

Para qualquer lugar que eu decidisse ir, teria que cruzar a França, já que ir para Alemanha era arriscado demais, pois a fronteira estava sendo fortemente vigiada. Ainda assim eu precisava tomar cuidado em terras francesas, não só pela minha nacionalidade, mas também pelos ataques aéreos nas cidades.

Passei pelo portão, já derrubado, da velha fazenda, provavelmente os moradores correram de medo ao notar uma zona de guerra tão próxima, ou talvez já não estivessem ali quando combates começarem.

É claro que antes de qualquer coisa, verifiquei todos os cômodos da casa, minuciosamente, com receio de ser pego de surpresa. Felizmente não encontrei nada, portanto a primeira coisa que fiz foi me dirigir até um dos quartos, retirar as vestes sujas, jogá-las fora e deitar, me sentia exausto, nada que não fosse comum para mim.

 

[...]

 

Acordei assustado por causa de um pesadelo, nele eu via o momento exato em que Sehun tinha sido morto, claro que fora tudo uma invenção do meu cérebro, porém, eu não podia deixar de me sentir perturbado com isso. Eu sabia que aquilo poderia acontecer com ele a qualquer momento, mas vivenciar era pior que qualquer outra coisa, eu cansei de morte, eu cansei de dor, eu cansei de sangue.

Me virei na cama, vendo pela janela que o sol já havia partido, eu dormi por um dia inteiro, o que já era de se esperar, visto que fazia muito tempo que eu dormia por no máximo três horas, logo em seguida ouvi um barulho em outro cômodo da casa.

Senti meu corpo ficar tenso, não era possível que eu fosse descoberto tão cedo, faltava cerca de três dias para que viessem buscar água novamente, e Franz nunca mandaria alguém atrás de mim, sabendo que fugi dessa maneira, então quem poderia estar ali?

Com o coração acelerado peguei a pistola que havia deixado em baixo da cama. Pude então, ouvir outro barulho, me levantei devagar, fazendo o máximo para que meus passos não fossem ouvidos.

Andei até a cozinha, vendo uma luz acesa, provavelmente de uma lamparina, parei perto da porta assim que vi a sombra de um homem.

— Quem é você? – perguntei entrando na cozinha, apontando a arma em sua direção.

O homem vestia o uniforme azul dos soldados franceses, motivo suficiente para tomar cuidado.

Ele, no entanto, pareceu não compreender uma palavra do que eu disse.

— Eu não consigo te entender, mas pode por favor abaixar isso? – falou sinalizando com as mãos, como se eu também não o entendesse – Eu não estou armado.

De fato, suas mãos estavam vazias, ele tinha a pele clara, que estava suja de terra assim como a roupa, e os cabelos negros, perto de seus pés havia uma mochila grande, será que ele estava fugindo como eu? Até onde sabia, as coisas não estavam boas para ambos os lados do conflito.

— Você... desertou? – perguntei dessa vez em francês, mesmo que não falasse mais com tanta perfeição que na época em que estudava, enquanto ia abaixando a arma devagar.

Ele pareceu com receio de falar qualquer coisa, sua postura mudou e ele abaixou a cabeça, não precisava mais de uma resposta em palavras.

— Vai precisar sair daqui em no máximo dois dias, ou vão te achar – suspirei me virando, para voltar ao quarto, até que ouvi sua voz outra vez.

— Você também está fugindo? – disse sentando numa cadeira próxima, ele parecia exausto.

Assenti, enquanto virava novamente em sua direção.

— Algumas coisas são tão injustas que não dá para suportar, e então chega um momento em que não podemos mais lutar.

Para minha surpresa ele deu uma risada curta.

— Se tomou a iniciativa de sair de lá, e se arriscar sem estar atrás de uma trincheira, já um meio de continuar lutando – ele esticou a mão em minha direção – Kim Junmyeon.

Estiquei a minha, cumprimentando-o.

— Zhang Yixing.

Foi o único diálogo que tivemos naquela noite, depois disso, voltei para cama, e o aconselhei a procurar um quarto também, ele parecia tão destruído como eu há algumas horas.

No fim das contas, eu não era o único a ter medo, todos sofriam com a guerra, mas de certa forma, a fuga realmente parecia uma maneira de continuar lutando, como dissera o francês, só que dessa vez em uma batalha que realmente era minha.

No dia seguinte, acordei com o sol brilhando entre as nuvens parcialmente nubladas.

Eu estava vivo, e com os sentidos em ordem, sinal de que Kim Junmyeon não havia tentado me matar durante a noite, mesmo que ele não parecesse alguém que faria esse tipo de coisa, no entanto eu não o conhecia, talvez devesse tomar um pouco mais de cuidado.

Já de pé, comecei a organizar minhas coisas, mesmo que ainda não soubesse para onde iria, deveria me preparar para partir a qualquer momento.

Caminhei pelos corredores notando o silêncio, quebrado apenas pelo canto dos pássaros do lado de fora, isso até escutar o som de cadeira sendo arrastada na cozinha.

— O que está fazendo? – perguntei ao ver Junmyeon debruçado sobre um grande mapa que cobria toda a pequena mesa, ele já estava sem a farda francesa, vestia roupas comuns, assim como as minhas.

Ele olhou para cima e deu um sorriso tímido.

— Estou revisando o caminho que irei seguir ao sair daqui.

Me aproximei com curiosidade.

— E para onde você vai?

— Aqui – ele colocou o dedo sobre a Suíça – Eu soube que o governo suíço está acolhendo refugiados, pode ser a única chance.

Observei bem o trajeto, não parecia muito longo, teria que cruzar apenas uma parte da França, provavelmente não seria problema para ele.

— Por que não vem comigo? – perguntou como se fosse a coisa mais simples do mundo.

O olhei surpreso.

— Eu não sei se é uma boa ideia – disse fazendo-o revirar os olhos.

— Você sabe para onde vai?

— Não, mas...

— Então venha comigo! – falou simplesmente – É o caminho mais fácil de seguir.

Junmyeon se levantou, erguendo o mapa para que eu pudesse ver melhor.

— Daqui de onde estamos podemos chegar a Troyes em pouco tempo, de lá podemos pedir ajuda para algum morador, e então continuamos seguindo.

— E se o morador nos denunciar? Você sabe o que fazem com aqueles que desertam, não é? – perguntei assustado com a possibilidade.

Ele balançou a cabeça assentindo.

— Quase não há policiamento em Troyes, e mesmo que tentem contatar alguma autoridade distante, já estaríamos longe quando chegassem – suspirei, pensando nas possibilidades de aquilo dar errado, que eram muitas, mas não parecia existir outra maneira – Vamos lá, de qualquer jeito seria complicado cruzar a França sozinho, quando você fala fica bem nítido que não é daqui.

Eu não sei ao certo o que tinha na minha cabeça quando aceitei ir para aquela jornada quase suicida, mas pelo menos era melhor do que ficar na mira de centenas de fuzis.

 

[...]

 

 Caminhávamos a cerca de cinco horas, não trocamos muitas palavras desde que deixamos a fazenda, quase no meio do dia. Junmyeon tinha incrivelmente dobrado o gigante mapa de uma maneira que o fazia caber perfeitamente na mochila, junto com suas coisas.

Até o dado momento, não encontramos nenhum ser vivo, ou cidade, era só o campo.

— Eu acho que vai chover – Junmyeon olhou para cima.

Segui seu olhar e pude ver as grandes nuvens negras preenchendo quase todo o céu, que também já dava sinais de querer escurecer.

— Então, vamos andar mais depressa para acharmos abrigo – falei acelerando o passo, sendo seguido pelo francês.

— Pelo o que me lembro estamos próximos de uma cidade, Troyes fica atrás dela, podemos nos refugiar em algum lugar caso não dê tempo de chegar lá.

Assenti voltando a caminhar em silêncio.

De fato, demorou cerca de meia hora para que chegássemos em uma pequena cidade, algumas crianças corriam pelas ruas, senhoras faziam compras em barracas de frutas e alguns homens fumavam charutos nas sacadas das casas.

— Daqui a duas quadras já é Troyes, é bem maior que aqui, e mais bonita também...

Parei de ouvir a voz de Junmyeon no momento em que uma mulher surgiu na minha frente, e logo em seguida desapareceu no ar, sem que eu sequer conseguisse ver seu rosto, mas foi o suficiente para fazer com que eu caísse no chão, e levasse o homem ao meu lado junto.

— Qual é o problema, Yixing? – ele perguntou se levantando e limpando suas roupas.

— Eu, eu... – não conseguia pôr em palavras o quão estranho havia sido aquela coisa que vi, seria invenção da minha cabeça?

— Seja lá o que for, não fale agora, só permaneça em silêncio – ele falou olhando de relance para o outro lado da rua, enquanto voltava a se abaixar do meu lado.

Por sorte, acabamos caindo atrás de um carro, e pelos vidros dele podíamos ver um policial encostado no muro, lendo um livro.

— Não disse que não tinha policiamento em Troyes? – perguntei indignado.

— Aqui não é Troyes – falou como se fosse óbvio.

Parei para pensar um pouco, olhando para o policial, talvez se andássemos naturalmente, ele poderia nem sequer notar nossa presença.

— Acho que podemos passar despercebidos – falei me levantando devagar.

— Caso ele venha falar conosco, deixe que eu responda, ou ele vai perceber seu sotaque.

Nos levantamos e começamos a caminhar pela direção que seguíamos anteriormente.

Andamos cerca de dez passos, sem chamar a desnecessária atenção do policial, isso até ele gritar para que parássemos.

— Droga... – Junmyeon murmurou.

Olhamos para atrás, vendo o homem que corria até nós.

— Para onde os senhores estão indo? – perguntou com desconfiança.

— Estamos indo visitar um amigo, senhor – Junmyeon falou naturalmente.

— Vocês parecem jovens, não deveriam estar no campo de batalha? – ele continuou indagando de modo impassível.

— Estaríamos se não estivéssemos de licença.

— Posso vê-la? – disse ainda sem expressão alguma.

— Não estamos com ela aqui – o francês permaneceu respondendo.

O policial então olhou para mim, como quem suspeita de algo.

— E o senhor? Não sabe falar?

Antes que eu pudesse tentar dizer algo com convicção, Junmyeon acertou-o na cabeça com um pedaço de madeira que pegou do chão rapidamente, o policial caiu no chão, porém sem que ficasse inconsciente.

— O que você...

— Apenas corra – ele disse puxando meu braço com força enquanto ouvíamos os trovões começarem a soar no céu.

E junto com essa melodia, o som de disparo cortou o ar, mas continuamos correndo enquanto os pingos de chuva começavam a cair.

— Por aqui – ele disse, correndo para o fundo de uma casa.

Nos sentamos lá, em meio a chuva que aumentava cada vez mais, até que pude ver uma mancha de sangue em sua roupa.

— Você se machucou – falei encostando em seu braço, o que o fez resmungar de dor.

— Acho que só passou de raspão.

A camiseta se encharcava cada vez mais, eu duvidava muito que havia sido de raspão.

— Eu acho melhor procurarmos algum hospital.

— Yixing, eu estou bem, mas por favor faça silêncio – ele disse com uma expressão preocupada, e então pude ouvir vários passos e gritos, vindos do lado da frente da casa, provavelmente o policial havia chamado mais alguns para nos encontrar – Acho que somos procurados agora – ele tentou rir em meio a frase, mas apenas um ruído saiu de sua boca, enquanto segurava o braço ferido.

Ficamos um tempo sem dizer nada, enquanto os raios cortavam o céu, e a chuva não dava nenhum indício de que pararia.

Depois de alguns minutos, Junmyeon parecia querer desmaiar pelo sangue que não parava de escorrer, mas sair dali era uma opção três vezes pior.

A grande sorte do momento, começou quando escutamos passos de dentro da casa, e logo o barulho de chave sendo virada. Então um homem surgiu pela porta dos fundos, segurando um grande guarda-chuva, ele tinha a pele morena, olhos grandes e baixa estatura.

— Quem são vocês? – ele perguntou desconfiado e quase gritando para que pudéssemos escutar em meio a chuva que só aumentava, mas mudou de expressão, assim que viu o braço baleado do francês – Meu deus, entrem, rápido! – disse com um tom de voz autoritário.

Sem muita opção, puxei Junmyeon apoiando-o em meu corpo, já que suas pernas vacilavam, provavelmente pela perda do sangue, e entramos na casa daquele estranho homem.

 

Do Kyungsoo era o seu nome, era médico em um hospital de Troyes, onde chegamos sem perceber enquanto corríamos, ele nos deu toalhas para que nos secássemos e disse que ajudaria com o ferimento.

— Você perdeu bastante sangue, mas vai ficar bem – disse enquanto limpava o sangue ao redor da lesão – Porém, eu vou ter que tirar essa bala do seu braço.

Ele assentiu com os olhos lacrimejando e mordendo os lábios com força.

Logo, Kyungsoo começou a inserir uma espécie de pinça onde a bala havia entrado, conseguia ver a testa de Junmyeon suando frio nesse momento, mesmo que seu cabelo ainda estivesse parcialmente molhado pela chuva.

Foi tudo mais rápido do pensei, o médico logo retirou a bala, soltei o ar sem perceber que o estava prendendo.

— Agora eu vou precisar costurar – disse, enquanto limpava novamente o ferimento – Vai doer um pouco.

— Mais? – Junmyeon perguntou indignado.

Por incrível que pareça Kyungsoo riu, o que me fez pensar se ele realmente estava achando a situação engraçada, ou só tentando tirar a tensão do ar.

— Vai ser rápido, fique tranquilo – disse enquanto pegava os utensílios.

Inesperadamente Junmyeon segurou a minha mão com força, no momento em que o médico colocou a agulha em seu braço, e não soltou até que ele terminasse.

— Ei, minha mão já está ficando roxa – resmunguei, pois Kyungsoo já havia terminado seu trabalho, mas o outro continuava apertando minha mão.

— Desculpe – ele respondeu soltando-a.

— Você vai precisar tomar cuidado com isso quando partir – o médico dizia enquanto enfaixava o braço – Mas por enquanto precisa descansar, ou vai continuar doendo.

— Obrigado, senhor – Junmyeon agradeceu.

— Não foi nada demais – falou guardando o resto de suas coisas – Agora, me digam, por que estavam fugindo da polícia? Era pelo seu sotaque alemão? – perguntou se dirigindo especificamente para mim.

Meu sangue gelou, eu deveria falar? Ele era confiável? Apesar de ter nos ajudado, eu não tinha certeza se era seguro revelar esse detalhe. Meu companheiro de fuga parecia estar na mesma situação.

Kyungsoo suspirou quando viu que tínhamos receio em revelar.

— Seja lá o que aconteceu, é bem evidente que estavam viajando, pelo tamanho dessas mochilas, tomem cuidado onde quer que forem, estamos vivendo tempos de morte – ele abaixou a cabeça como se lamentasse isso, e então se levantou carregando seus instrumentos médicos – Estão com fome? Eu vou fazer algo para comermos.

— Não há necessidade, nós precisamos ir – disse, mas ele simplesmente negou com a cabeça.

— Seu amigo precisa descansar pelo menos esta noite, terão que partir amanhã – falou e saiu andando, rumo a cozinha.

— Desculpe por atrapalhar a viagem – Junmyeon lamentou encostado no sofá.

Me encostei ao seu lado, vendo a chuva começar a diminuir pela janela.

— Não precisa se desculpar, sabíamos que isso poderia acontecer, pelo menos tivemos sorte – suspirei fechando os olhos – Ainda dói muito?

— Um pouco – disse bocejando – Tenho certeza que estará bem melhor amanhã.

Eu me sentia cansado e com fome, provavelmente o pão que trouxera estava embolorado pela chuva que encharcou a mochila, a sorte seria o médico que nos abrigou, mas mesmo sentindo o estômago apertar, o sono parecia querer me tomar, e antes que eu caísse no sono, senti a cabeça de Junmyeon alcançar o meu ombro, ele já dormia.

Mesmo a situação sendo estranha, não tive coragem de tirá-lo dali, portanto, adormeci também, daquela maneira incomum.

 

[...]

 

Abri os olhos sentindo um incômodo nas costas, provavelmente por ter dormido de mal jeito no sofá de Kyungsoo, lá fora o sol já estava brilhando no céu e o relógio da sala marcava quase meio-dia.

Me levantei com o corpo pesado e dolorido, caminhei até a cozinha, de onde podia ouvir vozes baixas.

— Finalmente você acordou, também precisa se alimentar, ou não vai se aguentar em pé – Kyungsoo comentou enquanto arrumava as panelas em sua pequena mesa.

Sua casa era um pouco semelhante à da fazenda perto das trincheiras, apesar de um pouco menor, parecia confortável e aconchegante.

— Bom dia – Junmyeon disse, sorrindo em minha direção, retribui o cumprimento e me sentei na cadeira em seu lado, ele parecia bem melhor, já que sua expressão estava tranquila enquanto comia.

— Eu coloquei as coisas que carregava para secar quando a chuva parou, inclusive as roupas, estavam todas encharcadas, espero que não se importem – o médico continuou dizendo enquanto sinalizava para que eu comesse também.

— Muito obrigada, senhor – falei agradecendo tanto pelas roupas, quanto pelo alimento.

Comecei a comer com satisfação e rapidez, nem sequer me lembrava que sentia tanta fome daquela maneira.

— Doutor, por acaso o senhor sabe qual o caminho mais rápido para a Suíça?

Quase repreendi Junmyeon por ter revelado nosso destino, até me lembrar que precisávamos de ajuda para chegar até lá.

— É por isso que carregam aquele mapa gigante? – Kyungsoo riu – Acho que posso lhes mostrar o caminho.

Ele então se levantou da mesa e se dirigiu até outro cômodo, mas logo voltou com o mapa em mãos e uma caneta.

Com uma parte apoiada nas pernas começou a marcar um caminho.

— Olhem – ele ergueu o desenho mostrando o trajeto que havia traçado – Vocês devem ir pelo Sudeste, vão cruzar Chaumont, em seguida Luxeuil-les-Bains e por último Belfort, para então continuar seguindo e chegar até a fronteira – disse apontando para cada cidade conforme ia falando, de fato elas não pareciam distantes umas das outras.

Terminamos de comer rapidamente, eu me sentia mais determinado do que nunca.

Arrumamos nossas coisas, mas o médico insistiu que nos lavássemos antes de ir, por ainda estarmos com as mesmas roupas do dia anterior.

— Eu não tenho palavras para agradecer o senhor, por tudo o que fez, mesmo não nos conhecendo.

Ele apenas riu balançando a cabeça, Junmyeon ainda não havia saído do banho, afinal agora tinha que tomar cuidado com o braço.

— Ajudar é o meu trabalho, não se preocupe com isso, e apesar de tudo, vocês não parecem pessoas ruins – ele olhou para os lados e se dirigiu até um móvel no canto da sala, pegou algo e voltou – Fique com isso – colocou uma bússola marrom em minhas mãos – Vai ajuda-los a chegar na Suíça sem maiores problemas.

Agradeci novamente, a bússola facilitaria muita coisa.

Pouco tempo depois, Junmyeon surgiu, já pronto para partirmos, Kyungsoo lhe deu mais faixas para que pudesse trocar a que estava em seu braço.

Sem mais delongas nos despedimos, e seguimos rumo a Chaumont.

 

[...]

 

Caminhava absorto em meus pensamentos, quando notei que o rapaz ao meu lado estava com dificuldades de carregar a mochila, provavelmente por causa do ferimento.

Sem dizer qualquer coisa, puxei-a de seu ombro e passei a carregá-la.

— Não precisa fazer isso, Yixing – disse tentando pegá-la de volta, mas eu a afastei.

— Se continuar com esse peso, seu braço irá piorar, não será um problema prosseguir assim, já que não carrego muita coisa na minha mochila.

Ele não questionou novamente, apenas assentiu com uma expressão descontente.

O dia seguiu tranquilamente, trocávamos apenas algumas palavras sobre a paisagem, coisas bonitas, coisas não tão bonitas, e coisas que um dia foram bonitas, e agora estavam destruídas.

Como tínhamos saído tarde de Troyes, já era tarde da noite quando chegamos em Chaumont, e decidimos procurar um lugar para dormir.

— Acho que não haverá problemas se dormirmos ali – apontou para um pasto vazio nas proximidades.

— Só se acordarmos tendo os cabelos mastigados por vacas – comentei, fazendo-o rir.

Caminhamos até lá e nos deitamos lado a lado em meio a grama verde, o céu estava estrelado, e sem indícios de chuva, ao menos a noite seria tranquila.

— Será que demoraremos muito para chegar? – o francês indagou, observando as estrelas.

— Depende do quão rápido caminharmos – respondi tentando localizar as constelações.

— O trajeto de Chaumont até Luxeuil-les-Bains é o mais longo que faremos, talvez demore três dias.

Suspirei, já me sentindo cansado, porém qualquer coisa era melhor que ficar no front.

Fiquei um tempo divagando em pensamentos sobre o futuro, percebendo logo depois que Junmyeon estava dormindo, ele realmente dormia bem rápido.

Me virei para olhá-lo e seu rosto estava sendo iluminado pela luz da lua cheia, ele não se parecia nada com um típico cidadão da França, tinha traços orientais, assim como eu, e a coragem de um adolescente, embora parecesse mais velho, mas nunca sem deixar de ser belo.

Me aproximei de seu rosto, fitando-o mais intensamente, sua pele era tão branca como o algodão, e parecia tão macia como tal, no entanto não encostei nela, por medo de acordá-lo.

Naquele momento, toda a confusão em minha cabeça veio à tona, eu fui treinado para matar franceses, não fui? Foi isso que me ensinaram na prática, que eles eram nossos inimigos, que não deveria ter piedade, e agora eu estava colaborando com um, devia ser uma vergonha para a nação.

Mas algo dentro de mim dizia que estava fazendo o certo, eu só queria parar de tirar vidas, e de ver pessoas queridas morrerem, se eu fosse uma desonra por isso, então seria com orgulho.

Só de pensar que poderia ter assassinado Junmyeon em alguma batalha qualquer, eu já me sentia mal, era como se meu peito estivesse dando um nó, ele também queria viver, todos queriam, mas muitos não puderam só para defender um governo tolo por motivos que jamais valeriam sequer uma vida, que dirá as milhares que já se foram.

Olhei novamente para o céu, imaginando que desafios ainda viriam, e o que o futuro ainda reservava.

O dia amanheceu novamente, mas eu sequer havia fechado os olhos, sentia a mente conturbada demais.

Logo continuamos o caminho por Chaumont, dessa vez dando o máximo para não chamar a atenção de nenhuma autoridade, pois não sabíamos nada sobre a cidade, e só tínhamos a bússola e o mapa como guias.

Passaram-se horas até percebermos que a fome estava ficando mais intensa.

— Acho que precisamos achar algo para comer enquanto estamos no meio da civilização, o caminho vai ser longo – Junmyeon comentou em dado momento.

— Tem razão, mas onde? – eu realmente não deveria ter feito essa pergunta, pelo pouco de dignidade que ainda me restava.

A fome é uma coisa terrível, eu jamais poderia me imaginar em tal situação. Mas lá estava eu, fingindo olhar os pães enquanto Junmyeon armava uma cena do lado de fora da padaria.

Eu não consegui segurar a risada quando ele começou a fazer um escândalo dizendo que havia sido roubado, mas tive que me conter ou acabaríamos sendo descobertos.

Quando o padeiro correu para fora, para verificar o motivo do tumulto, aproveitei a distração das pessoas e coloquei alguns pães nas mochilas, junto com as outras coisas que trazíamos.

Estava prestes a sair sem ser notado, quando reparei em uma mesa que havia ali, uma senhora estava sentada nela, não conseguia decifrar bem seu rosto, pois meus olhos embaçavam toda vez que levava o olhar para sua face.

Parecia a mesma mulher que pensava ter visto na pequena cidade anterior a Troyes, aquela que surgiu por segundos e desapareceu, aquela que eu pensei ser fruto da minha imaginação.

Mesmo sem conseguir olhá-la direito, sua presença fazia uma sensação estranha tomar conta de mim, algo um tanto triste e melancólico.

Ela olhou em minha direção por alguns instantes, mas logo voltou a fitar o lado de fora, segui seu olhar a tempo de perceber que o padeiro estava voltando.

Não me restava tempo, então saí sorrateiramente de lá antes que fosse pego. Fui ao encontro de Junmyeon para seguirmos, ele estava rindo de como as pessoas acreditaram facilmente nele, uma coisa que aprendi naquele tempo com ele, foi que era um ótimo ator.

Seguimos rindo e comendo durante o caminho.

— Será que isso vai causar muito prejuízo para ele? – pensei me sentindo um tanto culpado.

— Não é como se tivéssemos roubado tudo o que ele tem, Yixing, é só o suficiente para seguirmos – ele disse rindo da minha expressão preocupada.

— Não ria, isso não é legal – resmunguei, arrumando a mochila nas costas.

— Sabe, eu acho que já posso carregar as minhas coisas, já estou melhor – disse tentando soar convincente.

— Eu te entrego quando você trocar os curativos do braço na próxima vez que pararmos – falei sem ligar para seus protestos, talvez ele não estivesse recordando que se ferisse ainda mais o braço, provavelmente teria que amputá-lo.

O caminho até Luxeuil-les-Bains era realmente longo, muito longo, foram-se cerca de três dias e meio.

Nesse tempo, intercalávamos entre dormir em bancos de praças e calçadas de ruas sem saída, mas de certa forma nos tornamos mais próximos, Junmyeon era uma pessoa cativante, que não media esforços para alcançar sua tão sonhada liberdade.

— Quando eu era menor, costumava viajar por todas essas cidades com o meu pai, ele era pintor e gostava de ver diferentes lugares que inspirassem suas obras, e eu gostava de ir junto, mesmo que estivesse em período de aulas, isso deixava a minha mãe louca – ele riu enquanto eu terminava de enfaixar seu braço, apesar de querer fazer isso sozinho, ele finalmente aceitou que não conseguiria depois de muita insistência – Mas com clareza, eu só consigo me lembrar de Troyes.

— É por isso que você tem aquele mapa? – perguntei curioso.

Ele assentiu.

— Meu pai me deu ele, antes que tivesse que me juntar ao exército – ele ficou pensativo em meio as lembranças – De alguma maneira, acho que ele sabia que eu não conseguiria ficar tanto tempo vivendo como um prisioneiro num buraco de terra.

— Terminei – falei depois de finalizar o curativo – Não acha que os donos daqui podem aparecer a qualquer momento?

— Provavelmente não, eles não têm nenhum animal aqui, não existe motivos para que venham verificar alguma coisa, mas em todo caso, acho melhor irmos embora bem cedo.

— Você tem um histórico de invasão também? - perguntei sorrindo.

— Talvez – ele piscou – E você, Yixing? – perguntou sentando confortavelmente no feno do celeiro que encontramos para passar a noite.

— Está perguntando se também tenho histórico de invasão? – disse confuso.

— Não – riu balançando a cabeça – Você nunca diz muita coisa sobre você – encostou a cabeça na parede de madeira atrás de si.

Suspirei sentando em seu lado, não tinha muita coisa interessante para se falar sobre mim.

— Bem, eu praticamente vivi a vida inteira com a minha avó, e ela nunca quis que eu fosse para a guerra, porque meu avô morreu em uma, então ela detesta isso – respirei fundo tentando achar alguma coisa realmente curiosa, sem sucesso.

— Foi por isso que desertou?

— Não, esse não foi o real motivo, pois mesmo se conseguirmos nos refugiar na Suíça, não poderei entrar em contato com ela – comecei a brincar com a bússola em minhas mãos – Eu saí de lá porque não queria matar mais ninguém, nem morrer numa luta que não era minha, meu amigo morreu dessa maneira, só então eu percebi que não queria isso para mim também.

Junmyeon me olhou sorrindo para então encostar a cabeça em meu ombro.

— Sinto muito por seu amigo – roubou a bússola de minhas mãos – Eu não conversava com ninguém lá, aliás, você é a primeira pessoa com quem eu converso de verdade em mais ou menos um ano.

— Devo me sentir honrado? – perguntei carregando um pequeno sorriso nos lábios e ao mesmo tempo surpreso, já que ele parecia ser uma pessoa tão falante.

— Acho que sim – riu bocejando – Obrigado por tudo, Yixing – apertou minhas mãos devagar enquanto adormecia sem sair daquela posição.

 

Por um momento, eu pensei que tudo o que havia vivido até ali tinha sido apenas um sonho, quando acordei ouvindo o som de bombas explodindo, assim como ouvia nos tempos que vivia nas trincheiras. O som estava longe no início, o que me fez pensar se deveria realmente me preocupar, porém o barulho começou a aumentar e ficar mais próximo.

Junmyeon seguia dormindo, e eu não sabia ao certo o que fazer, os barulhos ficavam cada vez mais altos, e não conseguia pensar em nenhum lugar que pudéssemos nos esconder.

Antes que pudesse tomar alguma decisão, parte do celeiro explodiu em chamas, só assim conseguimos nos levantar para sair dali, antes que tudo desabasse sobre nossas cabeças, ou que outra bomba caísse sobre nós.

— Vamos! – gritei para que o outro me seguisse, enquanto pegava nossas mochilas, mas ele não me escutou, parecia hipnotizado pelas chamas.

— Kim Junmyeon – segurei em seus ombros, obrigando-o a olhar para mim – Nós precisamos sair daqui – os olhos dele lacrimejavam, ele parecia perplexo, por um momento me perguntei se ele realmente havia estado em uma batalha.

Consegui puxá-lo para fora do celeiro, nos afastando o máximo possível do local, bem na hora em que outra bomba explodiu, derrubando tudo.

Ao meu lado, Junmyeon caiu de joelhos no chão, me abaixei ao seu lado.

— Por que está assim? – perguntei, empurrando seu ombro devagar – Achei que estivesse acostumado com isso.

— Esse é o problema – ele disse erguendo a cabeça, fazendo assim com que eu pudesse ver seus olhos cheios de lágrimas – Estou acostumado, e eu não queria estar, eu não queria ver mais destruição – passou as mãos nos olhos, tentando secá-los – Eu achei que ao menos quando finalmente conseguisse sair daquele inferno que era aquela trincheira imunda, teria um pouco de paz, mas acho que em meio à guerra essa palavra nem sequer existe, em qualquer lugar que seja.

Me aproximei de seu corpo e o abracei, mesmo que o perigo ainda estivesse presente, e o som das explosões ainda pudesse ser ouvido.

— Junmyeon – disse passando as mãos em seu cabelo, sentindo o abraço ser retribuído – Eu sei que tem momentos que parece que tudo está de desabando, mas eu acredito que a paz virá, e quando vir será longa e feliz – apertei mais seu corpo quando notei que ele ainda não havia parado de chorar e soluçar – Nós vamos passar por isso juntos, a guerra não vai te destruir dessa maneira, tudo vai ficar bem, você verá.

 

[...]

 

Estávamos andando há muito tempo, o sol sobre nossas cabeças era quente e não havia nenhum tipo de sinalização. E para complicar a situação, tínhamos perdido a bússola, pois ela foi deixada no celeiro que explodiu, já que Junmyeon adormeceu com ela nas mãos, e a deixou cair enquanto corríamos.

Ao menos conseguimos chegar em Belfort apenas com o mapa, embora tenha demorado bem mais que o previsto, chegar na fronteira estava sendo muito mais complicado.

Chegamos a passar por grande parte da cidade, até alcançar um campo que marcava seu limite, mas a partir dali não sabíamos em qual direção seguir.

— Acho que estamos perdidos – falei e ele suspirou.

— Eu tenho certeza – tirou o mapa do rosto e olhou para cima, num claro sinal de cansaço.

Olhei ao meu redor, em meio a aquele enorme campo deserto, procurando alguém que pudesse nos ajudar, mesmo que fosse improvável, até que a vi, ela estava de costas, era aquela mulher novamente, ou eu estava ficando louco, ou ela estava nos seguindo.

— Eu vou perguntar para aquela senhora ali – apontei mostrando-a para Junmyeon e segui andando, a tempo de ouvi-lo questionar.

— Mas, que senhora?

Ignorei-o e continuei andando até a mulher, quanto mais eu me aproximava, mais inquieto eu ficava, havia algo nela que me era familiar.

— A senhora pode me dar uma informação?

Quando ela se virou eu pude reparar bem em seu rosto fazendo assim pequenos rastros de memória invadirem a minha mente.

Uma canção de ninar e um colo aconchegante, e então um rosto.

Perdi o fôlego por um instante e recuei aterrorizado, ela sorriu por alguns instantes e desapareceu diante de meus olhos.

O rosto tão familiar era o rosto de minha mãe, que havia falecido quando eu ainda era pequeno, tinha total certeza que era ela, eu me sentia em estado de choque.

As lágrimas desciam pelo meu rosto, minhas pernas fraquejavam me fazendo cambalear, a paisagem começou a virar apenas um borrão em minha frente, logo senti uma mão pousando em meu ombro.

 — Yixing, o que houve? – Era a voz de Junmyeon, mas eu estava tonto demais para responder.

Me sentei no chão, sendo seguido pelo francês, que passou a mão pelo meu rosto enxugando minhas lágrimas.

Eu nunca pensei que um dia pudesse ver o que não existia, que minha mente ficaria tão perturbada a esse ponto, por um instante pensei se realmente valeria algo chegar na Suíça, e ter que procurar um sanatório logo em seguida.

— Eu estou ficando louco, eu estou perdendo minha lucidez, não sei mais o que é real, e o que não é – falei olhando para o nada, sentindo meu peito se apertar cada vez mais – Eu vi minha mãe, minha mãe que morreu quando eu ainda era uma criança – solucei me sentindo totalmente perdido – Ela estava aqui, nos seguiu o tempo todo, mas eu não conseguia reconhece-la antes, talvez fosse um claro sinal de que eu estava perdendo cada vez mais a sanidade.

Junmyeon suspirou e apertou a minha mão, da mesma maneira que fez dias atrás, em Luxeuil-les-Bains.

— A guerra pode fazer o homem mais corajoso do mundo, se tornar apenas mais um louco num hospício cheio, mas isso não significa que você seja de fato um, significa que passou por muita coisa ruim, e seu cérebro apenas não soube lidar com isso, Yixing – olhei em seus olhos e ele sorriu – Não vamos desistir agora no fim, passaremos por isso juntos, lembra?

Antes que pudesse lhe dizer algo, vi seu rosto se aproximar, e logo em seguida senti seus lábios encostarem nos meus, foi uma sensação diferente, mas incrivelmente fez meu corpo se acalmar e minha cabeça parar de doer.

Suas mãos acariciaram a minha bochecha e uma estranha sensação surgiu na barriga, como se pudesse passar o resto da vida beijando-o, já que era tão calmo e tranquilizante, me fazia ter mais vontade de continuar.

— Prometa que não vai se afastar quando chegarmos em nosso destino – disse quase sussurrando quando ele se afastou por uma mínima distância.

— Eu não quero me afastar, de nenhuma maneira.

Sorri, meu corpo não estava mais tão pesado.

— Vamos continuar então, acho que se continuarmos nesta direção, acharemos algum morador para pedir informação.

Nos levantamos e seguimos, com a esperança de encontrar um lugar melhor em breve.

Realmente, não demoramos muito para encontrar alguém que nos informasse a respeito da rota que deveríamos seguir, depois, tivemos que caminhar por cerca de mais dois dias, no entanto não foi tão cansativo como nas outras vezes, já que agora nos sentíamos muito mais confortáveis na presença um do outro.

Confesso que durante toda a jornada, eu fiquei ansioso para encontrar a fronteira da França com a Suíça, mas agora que finalmente havíamos chegado, o medo de ter que voltar era grande.

Estávamos sentados numa sala, esperando que alguém nos dissesse se poderíamos ficar ou não.

— Não se preocupe, eles não podem nos mandar de volta – Junmyeon disse próximo de meu ouvido.

— Como tem tanta certeza? – perguntei esfregando as mãos em nervosismo.

— Eles não têm nenhuma prova de que desertamos, ou que sequer estivemos na guerra, então seremos considerados refugiados – falou segurando minhas mãos, para que eu parasse de mexe-las.

— Zhang Yixing! – ouvi uma voz familiar me chamando.

Não acreditei no que meus olhos estavam recriando daquela vez, eu estava realmente olhando para Sehun que vinha até mim.

— Acho que estou vendo coisas novamente – comentei assustado.

— O que está vendo, exatamente? – Junmyeon perguntou com uma parecendo preocupado.

— Meu amigo, que morreu em uma batalha, bem ali – Mostrei a direção.

— Seu amigo era loiro? – disse com uma expressão confusa.

— Como você... – meus pensamentos entenderam a situação antes que pudesse dizer a frase por completo.

— Então acho que ele está bem vivo – o francês falou tão surpreso quanto eu.

Logo ele se aproximou, eu não tive reação, fiquei apenas parado fitando-o.

— Eu... desculpe atrapalhar – foi a primeira coisa que ele disse, enquanto fitava nossas mãos ainda unidas.

Num surto de raciocínio me levantei e o abracei com força.

— Como você está vivo? – perguntei perplexo depois de soltá-lo.

O rosto dele parecia calmo, mas ainda com seu velho ar brincalhão.

— Bem, eu fui atingido no ombro e caí no chão, depois de um tempo eu percebi que ninguém nem sequer olhava para mim, eles pensavam que eu estava morto, então eu esperei tudo se acalmar e fugi, andei de comboio em comboio até chegar aqui, há uns três dias.

— Como conseguiu entrar num comboio sem ser pego? – disse ainda sem acreditar no que ouvia.

— Eles nunca questionam alguém ferido, geralmente pensam que foi mandado para casa por causa do machucado – sorriu de modo travesso.

— Então, esse está vivo mesmo? Bem vivo? – Junmyeon perguntou analisando-o.

Eu não tive reação a não ser rir e Sehun me acompanhou.

 

[...]

 

1918

 

“Explosões, disparos, gases, sangue, morte”

Acordei assustado, mais uma vez sonhava com todo aquele terror que tinha vivenciado, meu coração batia acelerado, me sentei na cama tentando acalmar a respiração.

— Ei, teve pesadelos outra vez? – ouvi Junmyeon perguntar, se sentando ao meu lado.

— Eles nunca me deixam em paz – comentei suspirando.

Depois que fomos aceitos na Suíça, Sehun nos ajudou a encontrar algum lugar que pudéssemos ficar, no geral, conseguimos nos adaptar bem à rotina no país, qualquer rotina que não envolvesse uma arma seria boa para nós, na verdade.

Eu e Junmyeon nos envolvemos de uma maneira simples e apaixonante, mas de um jeito que podíamos sentir que tudo estava acontecendo nos conformes, como deveria ser, sem ele eu nunca teria conseguido chegar até aqui e também nunca teria tido a oportunidade de finalmente viver em paz.

A vida é engraçada, quando você pensa que está no fundo do poço, cai mais ainda, só que às vezes, ela joga uma corda para que você possa se salvar, e lhe cabe decidir se vai se enforcar com ela, ou criar forças para agarrá-la e subir.

A subida não é fácil, mas vale a pena cada gota de suor.

— Esqueça isso, vamos voltar a dormir – ele disse selando meus lábios.

— Já é quase hora do almoço, Kim Junmyeon – sorri enquanto me levantava.

Caminhei até a sala e abri a porta para pegar o jornal, mas quase o soltei quando vi a notícia em destaque.

— Que cara é essa? – Junmyeon surgiu andando até mim, e quando olhou as letras impressas no papel, teve a mesma reação que eu.

Fim de guerra

Eu não poderia me sentir mais feliz.

De repente um par de braços me rodearam, sorri olhando para seu rosto.

— Parece que a Alemanha perdeu – ele disse lamentando, enquanto lia o resto da notícia.

— De que importa quem vence e quem ganha, se no fim quem se foi nunca mais vai voltar?

Ele sorriu concordando.

A guerra pode ter tirado muita coisa de mim, pode ter mexido seriamente com o meu psicológico e com o meu jeito de ver o mundo, mas não conseguiu tirar minha vontade de viver, pelo contrário só me mostrou os reais motivos pelos quais eu deveria lutar: Pelas pessoas que eu amo, e pela minha própria liberdade.

O que faremos, senão lutar?

 

"Não importa quantas mortes eu morra, eu nunca esquecerei

Não importa quantas vidas eu viva, eu nunca irei me arrepender

Tem um fogo dentro deste coração

E uma revolta prestes a explodir em chamas"


Notas Finais


Então, gente, espero que tenha ficado tudo em claro, qualquer coisa vocês podem perguntar, esses assuntos de guerra são realmente difíceis de explicar.
As músicas usadas foram This is War e Hurricane do 30 Seconds to Mars (ESCUTEM PQ É MUITO BOM)
As cidades (comunas) da França citadas existem realmente.
Front = Linha de frente de uma batalha.
Trincheira = Escavação feita no solo cuja profundidade e parapeito servem como abrigo aos combatentes.
Isso é tudo pessoal XD


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