História Destemida: Filha da Audácia - O trem da Audácia nunca para

PDV NARRADOR

No dia seguinte Hazel já estava recuperada de sua ressaca. Nunca tinha passado mal dessa forma antes, e ela realmente costumava ser resistente a bebida. Após sair do quarto de Loren, ela tentou ir para a aula mas passou mal e então foi para o seu dormitório. Tirou o dia off devido às fortes dores de cabeça e o estômago que insistia em expelir todas as enzimas de álcool restantes. Tinha mandado mensagem para avisar seus amigos que não estava bem, e não lhes contara do incidente com Loren. Não estava mentindo, apenas ocultando. Até porque era muito vergonhoso. Ele tinha lhe carregado desmaiada, lhe dado banho como se fosse uma criança, remédio, e tudo mais. Na verdade, isso era fofo e mostrava o quanto ele era incrível. Mas igual não deixava de ser vergonhoso, afinal ela era aluna e ele o vice-diretor da facção inteira.

Depois de passar o dia se recuperando, Hazel adormeceu e teve uma noite sem sonhos. Acordou cedo para descer ao refeitório e tomar café da manhã. Colocou uma calça preta, um par de coturnos confortáveis e uma camiseta cinza-escura. Estava frio e Hazel não achou nenhum casaco, então colocou o moletom preto de Loren por cima. As pessoas estranhariam, porque tecnicamente ela não poderia usar preto. Mas estava cansada de viver sob as expectativas dos outros, então só ligou o interruptor do foda-se. Hoje o 2°, 3° e 4° ano iriam fazer o reconhecimento da Cerca. De mês em mês, os membros-oficiais da Audácia levavam os alunos em treinamento para lá. A Cerca fora construída pelos seus ancestrais e fundadores do sistema de facções para isolar a cidade de Chicago do resto do mundo, destruído e arrasado pela Grande Guerra. Ninguém tinha o conhecimento exato do que havia fora daquela muralha fortificada, apenas sabiam que o que quer que estivesse lá fora, deveria ficar de fora. Era pra isso que existia a Cerca, e pra isso que existiam seus guardas e seus seguranças. Todos pertencentes, é claro, à facção da Audácia.

- Quem é viva sempre aparece _Erin disse para Hazel quando ela se sentou na mesa do refeitório, segurando uma bandeja de comida.

Hazel estava com o cabelo preso num rabo de cavalo alto e charmoso. No seu pescoço, do lado que antes era liso e limpo, tinha uma tatuagem nova. Agora ambos os lados do pescoço estavam devidamente preenchidos com símbolos característicos da facção. Louisa foi a primeira a perceber e deu um gritinho.

- Você fez uma tatuagem nova? _ela levantou a voz, e fez com que todos encarassem Hazel.

- E que roupa é essa? _Damien também a questionou, vendo que ela vestia um moletom completamente preto e bem maior que o seu tamanho.

- O que aconteceu ontem? _Daniel, sentado do lado de Damien, lhe perguntou.

- Nossa, gente. Deixa a menina respirar. O que é isso? _Shaunee revirou os olhos, respondendo por Hazel que parecia acuada e cansada.

- Primeiramente, bom dia _Hazel falou pausadamente. Respirou fundo.

- Estão preparados para ir a cerca hoje? _ela perguntou, ignorando completamente as perguntas que lhe fizeram anteriormente.

- Eu estou nervosa. Sempre tive um pouco de medo do que tem lá fora. Quando eu era criança costumava sonhar com monstros gigantes _Louisa falou com seu jeito meigo típico.

- A primeira vez que eu fui meu maior medo era o trem. Não conseguir subir ou descer, isso sim me apavorava _Daniel comentou, bufando.

O trem que levava até a Cerca era uma das características típicas da Audácia. Hazel particularmente adorava essa peculiaridade. O trem jamais para. Essa era a regra. O trem não para pra você subir, e não para pra você descer. No máximo, nas estações, o maquinista diminuía razoavelmente a velocidade para dar chance aos membros da Audácia de embarcarem. Desde pequena Hazel já achava isso incrível. Via os “caras de preto” correndo atrás do trem ou pulando dele em movimento, e sentia vontade de fazer igual.

- Nem me fala dessa parte. Imagina se você quebra uma perna, ou bate de cara no chão _Erin falou, fazendo levemente o sinal da cruz sobre o rosto.

- Hello, porque vocês não estão falando do fato principal? Quem vai nos levar até lá é ninguém mais ninguém menos que o Deus do Trovão _Shaunee disse.

As gêmeas tinham apelidado Loren Blake de Deus do Trovão, como o Thor. Pela semelhança. Loiro. Alto. Gostoso. Hazel achava incrível a capacidade delas de arranjar apelidos para todo mundo.

- Porque esse não é o fato principal. O fato principal é que vamos conhecer a Cerca e aprender mais sobre o objetivo da Audácia no sistema de facções. Credo, você não para de pensar em homem nunca? _Louisa lhe disse, revirando os olhos e largando um garfo no prato vazio.

Todos a olharam, estranhando sua relapsa mudança de humor.

- Ela está de tpm _Erin sussurrou para o resto de grupo.

- Eu ouvi isso _Louisa reclamou.

Hazel pensou em chamá-la para conversar depois. Queria contar sobre a loucura que andava sua cabeça, e sabia que ela entenderia.

***

Menos de 1 hora depois, todos os alunos já estavam posicionados na Estação do Complexo. Os trilhos do trem ficavam localizados numa altura de quase 7 metros, passando por cima de um prédio baixinho dentro do complexo. Para chegar até lá, não existiam escadas e nenhuma entrada. De forma que era preciso escalar pelo prédio ou pelas estruturas dos pilares de sustentação dos trilhos. Mais um dos charmes da Audácia. Porque não poderiam existir escadas como num lugar normal? Imagina se você estivesse atrasado para ir a algum lugar, além de correr atrás do trem você ainda precisava escalar um pilar para chegar perto dos trilhos.

O dia estava nublado e razoavelmente frio, Hazel ficou feliz por estar usando um moletom quentinho e grande. Mas percebia os olhares cruzados na sua direção. Ela era a única usando preto no meio de centenas de casacos e camisetas cinza-claro, cinza-granizo e cinza-escuro. Em um certo momento até pensou em tirar, mas o clima realmente estava muito gelado para isso.

- Que horas esse trem vem? _foi Damien terminar de falar que escutou-se o apito, não muito distante.

- Preparem-se _Tobias gritou, um dos monitores que estava acompanhando os alunos. Loren estava no comando, apesar de Hazel ainda não ter visto ele, mas diversos outros membros-oficiais estavam indo também para ajudar na organização e acompanhamento.

Todos os alunos deram um passo para trás para se afastar um pouco dos trilhos, e antes que o trem passasse por eles, Hazel começou a correr. Ela sabia que era melhor pegar um dos primeiros vagões para descer antes lá na Cerca, e ter uma visão melhor. O pessoal a acompanhou. Corriam paralelo ao trem quando ele passou voando ao seu lado, com as portas já abertas. Tecnicamente parecia ser fácil, mas na teoria era bem diferente. Você precisava manter o ritmo da corrida, não tropeçar em nada, e jogar-se para dentro do trem num pulo só. Ou então se agarrar nos ganchos que tinham na beirada das portas, para depois jogar seu corpo para dentro do vagão. Hazel foi a primeira a subir, e ajudou Louisa logo em seguida, agarrando sua mão. O resto dos alunos foi subindo, até que todos tivessem embarcado. E as portas se fecharam.

- Meu deus, eles querem é nos matar isso sim _Erin disse passando a mão pelos cabelos esvoaçados.

Shaunee, Damien e Daniel estavam rindo. Hazel sentou-se no chão, ao lado de Lou. A viagem até a cerca demorava cerca de 30 minutos. Eles ficaram ali, conversando e se distraindo, até que Loren Blake entrou no vagão, vindo diretamente do vagão traseiro. Os vagões do trem da Audácia não eram colados, existia uma maquinaria a céu aberto entre eles, que os ligavam. Pelo cabelo levemente bagunçado, dava pra ver que Loren tinha atravessado pelas ferragens mesmo como trem em alta velocidade. Ele pediu atenção dos alunos que estavam ali naquele vagão. Eram variados, de todos os anos.

- Atenção, pessoal. Nós vamos organizar vocês em grupos para subir na Cerca. Lá, serão recepcionados por Jeanine Matthews, a chefe da segurança. Vocês serão o Grupo F _ele começou a falar, soando pedagógico. Quando Colin teve a brilhante ideia de o interromper.

- Porquê o Grupo F? _perguntou, com a voz cheia de prepotência.

- Porque eu disse _Loren se limitou a responder, franzindo as sobrancelhas na direção de Colin.

- Não seria mais adequado separar os veteranos dos alunos novos? _ele questionou novamente, claramente sentindo-se muito superior para se misturar.

- Esse é o tipo de pergunta que alguém da Audácia jamais deveria fazer. Todos aqui temos o mesmo objetivo, os mesmos propósitos. No momento, é defender a Cerca. Como aluno do 4° ano você já deveria saber disso _Loren disse, com a cara fechada. Colin se encolheu levemente, mas não abandonou a postura arrogante.

Hazel ainda estava sentada no chão. Lembrou-se da cena constrangedora em que ele se revelara extremamente machista e preconceituoso. Colin era seletivo, se achava melhor do que qualquer outro. Ela não suportava isso, e por impulso resolveu falar.

- Você deveria saber que um membro da Audácia não escolhe classe social, raça ou status antes de defender o próximo. Se você se acha melhor do que os outros e superior demais para tal, então nem deveria estar aqui _falou, olhando para Colin que tinha se recostado na parede a sua frente.

- E você acha que é quem, sua piranha desgraç... _Colin começou a dizer e andar na sua direção mas foi interrompido por Loren.

Num gesto extremamente rápido e habilidoso, ele girou o braço de Colin para trás de suas costas e bateu o corpo dele contra a parede do trem, lhe imobilizando. Colin tentou se soltar, mas não conseguiu.

- Qual é o seu nome mesmo? _Loren o perguntou.

Algumas pessoas se afastaram, achando que poderia ter alguma briga. Olhavam assustadas para eles. Colin era realmente muito estúpido a ponto de arrumar briga com o homem que tinha a maior autoridade da facção. Era pedir pra ser expulso. Hazel ficou nervosa, e levantou-se. Louisa se levantou também, e segurou levemente seu antebraço.

- Colin, senhor _ele respondeu, com a cabeça prensada contra a parede.

- Colin, você sabe nadar? _Loren lhe perguntou. Hazel franziu as sobrancelhas sem compreender onde ele estava querendo chegar.

- Sei sim _ele respondeu.

- Abre a porta _Loren gritou e alguma pessoa ligeiramente o obedeceu. A porta do trem se abriu e o característico vento adentrou o vagão, mostrando que ainda estavam em alta velocidade. Hazel olhou para fora, eles estavam em cima da Ponte de Chicago. Não era muito alta, mas ainda sim parecia assustadoramente perigosa. Hazel congelou. E então entendeu o que Loren iria fazer.

- Então você vai desembarcar _Loren o soltou, afastando-se dois passos. Colin recolheu o braço, e virou-se para ele. Olhou para a porta aberta, e então tornou a olhar para o vice-diretor.

- Mas estamos na ponte _ele falou com a voz falhada.

- Enquanto estiver nadando para sobreviver, repense sobre as atitudes que o colocaram nessa situação. Repense sobre a sua falta de respeito. E se reapresente no prédio do comando antes de eu voltar da Cerca _Loren falou como se estivesse simplesmente mandando alguém fazer um dever de casa.

- Eu posso morrer na queda _Colin soou esganiçado.

- Isso é problema seu, não meu. Agora pule _Loren foi duro. Hazel se arrepiou, e trocou olharem com Damien, Erin e Shaunee. Eles pareciam mais apavorados ainda.

Colin ficou paralisado por mais alguns segundos. Parecia disposto a sair correndo e atravessar as ferragens para outro vagão, fugindo de Loren.

- Você quer um empurrão? _o vice-diretor disse ameaçadoramente, e deu um passo na direção de Colin.

Ele encolheu-se, balançou a cabeça negativamente e se preparou. Correu até a porta e deu um impulso com os pés, mergulhando  de frente. Ele foi esperto, Hazel pensou. Se pulasse como eles normalmente pulavam em torre firme, ele poderia ter batido de costas ou de barriga na água. Pulando em forma de mergulho ele conseguiria rasgar a água e sobreviver com maior facilidade. Colin despareceu embaixo da ponte, e Loren fechou a porta do trem num estrondo. Todos estavam calados, assustados e com medo. Ele ignorou os olhares apavorados, pois já deveria estar acostumado com isso. E caminhou até o centro do vagão, onde estava quando iniciou seu aviso.

- Como eu estava dizendo. Vocês serão o Grupo F, e serão conduzidos pela Cerca para fazer o reconhecimento do território. Vocês receberão uma arma igual à essa na entrada _ele retirou de uma sacola que estava carregando uma arma preta parecida com um revólver. Tinha o cano alongado, quase como um silenciador. Hazel sabia bem como ela funcionava. No ano passado, tinha levado um tiro sem querer na perna por causa de um aluno desajeitado que não armou a trava de segurança.

- Elas vão conter dardos neuroestimulantes. Eles simulam a dor de um tiro real, mas dura apenas alguns minutos. Usem-a somente se necessário, com sabedoria e precisão _ele continuou e então parou para olhar no rosto de cada um. Suspirou.

- É por isso que nós treinamos vocês assim. Para que nunca desistam. Para que respeitem e ajudem os outros. Qualquer coisa diferente disso não serve e nem nunca vai servir para a Audácia _ele falou, referindo-se ao incidente com Colin.

- Lembrem-se disso. Respeitem isso _ele finalizou, pegando a sacola do chão e a jogando por cima do ombro.

Antes de passar para o próximo vagão, ele olhou de relance para Hazel. Ela estava usando seu moletom. Ele reprimiu um sorriso metido, afastando a imagem dela nua no balcão da sua cozinha.

- Preparem-se para pular, já estamos chegando _Loren bateu na parede no trem duas vezes, fazendo os alunos que estavam sentados levantarem-se de supetão.

E então, como se nada tivesse acontecido, ele saiu do vagão.

Hazel olhou para fora. Já conseguia avistar a cerca, estavam perto. Ela virou-se para o pessoal. Erin e Shaunee estavam abraçadas, como para se reconfortarem. Estavam levemente assustadas com o que ocorrera entre Colin e Loren. Mas, no fundo, eles sabiam que os membros-oficias da Audácia eram rudes, perigosos e treinavam todos com pulso firme. Essa era a característica principal deles. Se você é aluno e não se intimida, não sente medo, não apanha ou não fica completamente aterrorizado, significa que algo está errado. Somente assim você será realmente preparado para a vida real, e Hazel entendia isso melhor do que ninguém.

- Eu sugiro que vocês tentem dar uma cambalhota na hora do contato com o solo. É melhor do que cair de pé, você pode dar um mal jeito se não está acostumado _Daniel falou para o pessoal, percebendo a tensão daquele momento. Seria a primeira vez deles saltando. Hazel lembrou do seu primeiro salto. Ela estava mais ansiosa do que nervosa, e se saíra extremamente bem.

- O trem vai diminuir a velocidade, não se preocupem _Hazel acariciou o braço de Louisa ao seu lado.

Poucos minutos depois, quando chegou a hora, Hazel bateu no dispositivo que abria a porta. A maioria dos alunos que estavam no vagão já tinham saltado quando Erin e Shaunee decidiram ser as primeiras. Depois delas, Daniel e Damien pularam juntos. E por último, Hazel e Louisa se entreolharam.

- Juntas no 3? _Hazel perguntou para sua melhor amiga, tentando encorajá-la.

- Juntas _Louisa respondeu e contou até 3.

E então elas correram, e pularam.

***

Seria lá, naquele dia, que a vida de Hazel começaria a mudar. Era pra ser somente uma visita na Cerca como tantas outras que ela já tivera feito. Mas o que ela escutaria, e da forma que escutaria, mudaria completamente a sua forma de pensar e enxergar o mundo. E então o “tenha cuidado” que a menina dos seus sonhos lhe falara, começaria a fazer sentido. Se resolvesse escolher o caminho do bem, para fazer a coisa certa, precisaria de muita coragem. E correria perigo, mais do que jamais pensou. Será que ela estaria disposta a isso?