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História Destino - Xamã renegada


Escrita por: Insira_Nome_Aqui e Kinski_Sah

Notas do Autor


Segundo e maior capítulo já escrito por mim até então (ultrapassou o meu último maior projeto kk). Espero que gostem, foi um trabalho árduo, mas muito gratificante. Me diverti em todo o processo de idealização e escrita do capítulo. Sem mais delongas, boa leitura.

Capítulo 2 - Xamã renegada


Suor desceu pela testa, dentes trincaram uns nos outros, músculos contraíram violentamente. Encolheu-se em posição fetal, as mãos na cabeça que fora acometida por uma dor insana e lancinante. O simples pronunciar daquelas palavras, o mero toque em tal líquido, era mais que suficiente para destruí-lo por inteiro. Mas diferente da maioria, que a esta altura já estariam apagados, o homem não se deixaria abater tão facilmente. Sua ambição, seu ego, sua necessidade megalomaníaca por poder não o permitiram simplesmente desistir, só deixar tudo para lá e jogar a toalha. Não mesmo, já era tarde demais para voltar atrás agora. Precisava terminar aquilo que começou, ainda que custasse a própria vida, sanidade ou alma.

Se levantara com dificuldade, cada mínimo movimento doía. Uma dor muscular sem igual, mais potente do que qualquer coisa que sentira na vida. Um tipo de força invisível agia sobre seu corpo constantemente, sem deixar de tentar impedi-lo por um único segundo sequer. Seus passos eram tão pesados que parecia estar carregando mais de cem quilos no corpo, sua respiração lenta e errática, como se algo obstruísse as vias aéreas. A cabeça latejava, quase explodindo, em picos de dor insuportáveis e com ápices incrivelmente duradouros. Sua visão tão turva quanto uma água barrenta o impedia de enxergar um palmo a frente, o levando a tatear o chão para se guiar, impedindo que trombasse na coisa mais importante para a tarefa.

Na falta das vistas, utilizou a audição para ter noção de sua posição na casa. Escutara o choro alto do bebê, prontamente o seguindo para encontrá-lo. Em meio aos seus toques no chão, pôde sentir um líquido pegajoso e quente, grosso e de cheiro bem forte. Sabia que era sangue, tendo total conhecimento de quem, mas não importava no momento. Apenas passou por cima do corpo inerte da mulher, o pescoço com um rasgo profundo ao ponto de alguém conseguir colocar a mão inteira lá dentro. Morreu de olhos abertos, uma expressão de surpresa estampada na face em puro desespero. Ignorava a sua vítima de há pouco, precisava chegar na maldita criança logo.

Começou a sentir um calor retumbante, desidratante e escaldante. Arrancou suas pilhas e pilhas de mantos negros e escuros, revelando enfim sua aparência diante ao recém-nascido absorto em choros; se tratava de um homem alto, cerca de um metro e oitenta e cinco. Pele bem clara e conservada, diferente do rosto desleixado: barba embaraçada por fazer, cara suja de terra seca, rugas de expressão de quem constantemente faz cara feia, olhos esbranquiçados e cabelo bagunçado e sujo. Olheiras profundas denunciavam sua abstinência de sono gigantesca e incompreensível. Corpo magro e esguio, mas um tanto estranho. Observando os mantos, comparando com o tamanho do corpo alheio, eram grandes demais, largos em demasia até para pessoas que gostassem desse tipo de roupa. Um indício de que, anteriormente, era mais pesado, mas havia perdido muito peso em pouco tempo.

Subitamente, a sensação de estar sendo repelido por algo extremamente forte parou, causando um choque impactante. Toda a dor e canseira sumiram magicamente, de uma hora para outra. Sentia como se houvesse ultrapassado uma película invisível que o separava da criança. Tal película o açoitava de toda forma possível, tentando desesperadamente impedir sua entrada, mas falhou, miserável. Lutara bravamente até as últimas energias, lançando sobre aquela pessoa toda a desgraça que tinha disponível, mas o espírito daquele ser profano era forte demais, perseverante e determinado. Absoluto na teimosia e no ego imensurável.

Um sorriso sarcástico escapou pelos lábios, ostentador de sua vanglória e perversidade. Riu, alto, gargalhando com vontade e gosto de forma repugnante. A risada esganiçada brotara sem impedimento, explodindo pulmão a fora intensamente. Os olhos cansados, agora funcionais novamente, analisavam os arredores e logo captavam algo diferente e imperceptível antes: a película.

Do lado de dentro, pôde enfim enxergar uma espécie de redoma da cor vermelha, um tanto translúcida, mas grossa. Ela circulava uma área mediana, talvez mais de vinte metros. O corpo da mulher descansa sobre os limites da barreira, parcialmente para o lado de fora. A pouca luminosidade das velas do lado de fora penetravam, mas suas cores se transformaram em rubras, causando um aspecto macabro na iluminação da redoma. Tudo parecia vermelho, sem exceção. Aparentava estar enxergando mergulhado numa piscina de sangue, fresco e visceral, recém retirado de corpos alheios.

E no centro da película, em seu ponto zero, a origem de tudo: um bebê. Recém-nascida, uma menininha de pele negra e corpo gordinho. Nascera já dotada de cabelos e dentes, mechas ruivas sangrentas e dentinhos pontiagudos como adagas. Seu choro ecoava alto, muito alto. Uma sinfonia de gritos eternos que nasciam do fundo do submundo, ecoantes e intensificados pela prisão redonda, soando igual almas penadas buscando alguma direção. Seria o suficiente para enlouquecer qualquer um que escutasse, que sentisse aqueles berros vibrando no fundo de seu corpo, dominando-lhe a alma e a sanidade mental. Entretanto, para aquele homem, gritos de desespero nada mais eram que música. Melodiosa e harmônica.

— E pensar que uma simples poção e meia dúzia de palavras fariam algo assim. Essa coisa não é um espírito, é um verdadeiro monstro! — Sua voz rouca e esganiçada soou animada, alcançando cada canto de sua prisão em eco. — Bebê urso, hein? Imagina se fosse adulto!

Um sorriso psicótico brotou ao passo que se aproximava da pequenina. Ajoelhou-se sobre a terra, ao lado da grande pedra onde o bebê descansava. Observando-a, percebeu o rosto avermelhado do choro e uma expressão de dor. Sobre a pele do bebê, um líquido exótico de odor ácido e coloração negra descansava. Viscoso e gosmento, queimava a pele da pequena, marcando a região de seu peito, pescoço e um pouco da face, provável que geraria cicatrizes no futuro. As mãos esqueléticas e magrelas se abriram, suas palmas se aproximando de ambos os lados da face do bebê. Agarrou cada uma, sentindo a gosma preta queimar seus dedos com potência, mas ignorou. A criança, antes de olhos fechados, agora os abria, revelando belas orbes cor de mel.

— Tem os olhinhos da mãe! Que nojo... — Debochado, declarou, em puro desgosto. — Vamos mudar isso? Vai ficar muito mais linda, minha pequenina. — Tirando uma das mãos da face, levou até sua cintura, onde portava um cinto de poções. Apenas um único frasco descansava ali, restos de gosma preta dentro.

Um por um, mantendo os olhinhos abertos com os dedos, pingou os restos daquele líquido preto nas retinas. Berrou, esgoelou, gritou, esperneou e se debateu, mas claramente não tinha forças para lutar contra o adulto. Os glóbulos queimaram e se esbranqueceram instantaneamente, cegando-a completamente em questão de segundos. Sua cólera fora deleitada pelo pai, que gargalhava alto e em bom som, quase engasgando com suas próprias risadas. A película tremia espasmódica, ritmada em pulsos latejantes sincronizados com a dor e agonia da criança. Estava dando certo.

— Está quase pronto, perfeito, maravilhoso... A dor já foi o bastante, agonia também, sofrimento o mesmo. Agora, só falta o passo final. — Disse, pegando o bebê e erguendo-o bem alto. — Vamos, espírito nefasto, eu ofereço esse ínfimo corpo a ti. Possua-o, use-o, desfrute-o. Faça-se em carne, utilize-a para mergulhar este mundo em caos!

Bradou às paredes da redoma, do fundo dos pulmões, em puro êxtase. Balançara o bebê em suas mãos, seus braços tão esticados para cima quanto elásticos puxados até seus limites. A face, retorcida em milhares de microexpressões que se alteravam a cada segundo, denunciava seu regozijo, seu júbilo extremo e avassalador em tamanha profanidade que realizara. De repente a película esvaneceu, sumindo em meio ao ar rapidamente, ficando cada vez mais translúcida até que desaparecesse completamente. A falta da redoma revelou o cenário onde tudo aquilo ocorria: uma floresta fechada, escura e sombria. Um silêncio mortal cortou a profanidade, prevalecendo absoluto em relação a qualquer som. Nada soou, nada ecoou, nada proferiu-se. Um momento incômodo e tenso da mais pura quietude calmante existente, da maior ausência sonora já experienciada.

O momento que se seguiu foi, em fato, contrário ao anterior de todas as formas possíveis. O silêncio deu lugar a um estrondo alto e grave, parecido com um grande rugido barulhento demais, que reverberava de todos os cantos da mata. A calmaria logo fora substituída por tensão, medo, arrepios e receio de um perigo iminente que aproximava-se rapidamente. As árvores chacoalhavam de maneira bruta, caindo uma sobre as outras, tombando no chão de terra e grama. Ventos potentes sopraram ao redor, vindos de cada lado existente, quase derrubando o homem, que precisou se segurar para não ir de encontro à grama. O peito gelou, logo em seguida o estômago também, o frio estendendo-se pelo corpo lentamente. Seus movimentos eram tardios, alquebrados, caquéticos, tendo sido acometidos por uma espécie de nevasca infernal interna. Não conseguia mais se mexer, falar ou realizar qualquer ação, apenas observar e sentir o que havia causado; encarar as consequências de seus atos perversos e devassos.

E encarou. Elas vieram, incorpóreas e disformes, transmutando-se infinitamente em constância e velocidade surreal, abismal, inumana. Sua visão  limitada não o permitiu enxergá-las por completo, nem ao menos um mero deslumbre de sua magnificência. Mas o cérebro tentou, investiu nas possibilidades conhecidas, vasculhando até o fundo de suas primeiras concepções de vida ainda quando neném. Todavia, nada encontrou, nunca encontraria. Em nenhuma circunstância seria capaz de observar, entender e interpretar tamanha perfeição, tanta grandiosidade, espantosa quantidade de poder. Estava diante de um ser, não, de uma manifestação do mais puro cosmos, da mais pura excelência existente, do maior e mais absoluto em pensamento, ação e racionalização. Era um nada, uma pequena poeira estelar comparado a magnitude do que estava diante de si, repousando em meio ao nada, justificando o tudo e mais um pouco. O simples vislumbre ocasionava numa expansão mental súbita que, tão rápido quanto ocorria, era esquecida pelo cérebro para evitar a loucura. Informações grandiosas demais para serem processadas, segredos universais que enlouqueceriam qualquer um que tentasse escutá-los.

Entre suas mutações insanas e intermináveis, havia uma em específico que a mente aceitou mais facilmente; pelos grossos e espetados por salientes como grandes espetos em cores carmesim, patas gigantes maiores que cabeças e mais rígidas que ferro, focinho alongado e quadrado em traços fortes e imponentes, cabeça redonda colossal de pequenas orelhas também circulares que talvez dariam um aspecto fofo para algum desavisado. Um urso, um adiposo, amplo, largo, venerável e volumoso urso. Seu pelo espinhoso, misto a sua expressão de ódio e ira na face mostravam que não havia qualquer resquício de pacifismo, pelo contrário; apenas cólera e fúria inesgotáveis, jorrando para fora de seu corpo em tanta intensidade quanto as águas turbulentas de um tsunami. Tão presente e real é sua raiva que manifestou-se fisicamente, um manto rubro espectral recaído sobre o majestoso animal, serpenteando no ar em volta de seus pelos.

— Me oferece uma criança, apenas uma!? É mesmo tão tolo quanto aparenta, feiticeiro. — Uma voz agressiva, grave, que estremecera o chão saiu do urso. Seus pequenos olhos de cor negra fitavam o rosto magrelo do humano, analisando-o por inteiro, seu passado e futuro, tudo com um simples olhar. — Por mais que eu odeie os humanos, devo admitir que há algumas centenas de anos eles eram melhores. Mais dignos.— Cuspiu a última parte entredentes, contendo seus desejos assassinos incontroláveis. Fora chamado por um tolo, um ganancioso que se achava esperto por saber mais que os outros.

  — Não espírito, temo dizer que você está errado. Tenho aqui, bem diante de teus magníficos olhos, uma criança digna! — Mesmo que abalado pela situação, manteve a calma para que não fosse morto tão próximo de completar sua tarefa. Entendera o recado indireto daquele monstro, qualquer mínimo deslize levaria ao fim de sua vida. — Observe, analise o potencial desse bebê. Desde o primeiro dia da gravidez, eu senti essa força imensurável, essa energia gigantesca, essa ligação espiritual inigualável... Ela com certeza daria uma grande xamã!

O espírito deixou-se levar pelas palavras do homem, dando uma chance ao que dizia. Parecia loucura, talvez fosse de fato, mas era intrigante de qualquer forma. No mais, se aquilo fosse só um delírio de um insano, apenas o mataria e deixaria aquele plano por mais longas centenas de anos. Antes bípede, abaixara o corpo, agora ficando sobre as quatro patas. O encostar de suas patas no solo causou um terremoto violento e um baque sem igual, mas impediu que o homem caísse, segurando-o com uma força desconhecida. Agora mais nivelado ao bebê, passeou seus olhos de cima abaixo pelo corpinho, observando cada detalhe vagarosamente.

— Pode ser um tolo, mas sabe o que fala. — Declarou a contragosto, sem tirar seus olhos da menina. — Este humano é realmente especial e possui um potencial imenso, poderia facilmente tornar-se um xamã. Mas diga-me, feiticeiro, por que deseja inserir um espírito instável em tão pequenino corpo? De todas as formas de se tornar um xamã, essa é a menos recomendada. — Terminou, olhando para o homem em dúvida.

— Eu só quero ver o caos, só isso. Quero ver a destruição, testemunhar a agonia, gozar do pânico e da tristeza alheia. É isso que eu desejo, ó grande espírito. — Prostrou-se, erguendo a criança ainda mais e baixando a cabeça. — Principalmente, visualizar o sofrimento daqueles desgraçados da tribo; todos eles, sem exceção.

— Suas razões são egoístas e maléficas, compreendo. Já deveria esperar de alguém como você. — Em tom ríspido, afirmou. Levantava-se em duas patas novamente, olhando de cima para baixo pra ressaltar sua superioridade. — Ainda que não simpatize com massacres injustificados, aceitarei sua oferta. Já faz tantos anos que não caminho por este mundo entre os humanos, devo confessar que estou intrigado. — Disse, e ao fim, encostou sua pata calmamente sobre a testa da criança. Energia fluiu para seus olhos, que mesmo permanecendo brancos, voltaram a enxergar.

Um clarão rubro iluminou a floresta inteira, brilhando tão intensamente quanto o sol. A explosão de luminosidade súbita queimou as retinas do feiticeiro, derretendo-as e o cegando em uma fração de segundo, assim como fizera com o bebê. Uma onda tremenda de calor viera junto à luz, quente como o mais fulguroso fogo. Em consequência, a pele alheia queimara-se num instante, torrando e derretendo pra fora da carne de maneira grotesca. O calor penetrou, vitorioso e inextinguível, torrando carne, músculo, sangue e ossos como um frango assado esquecido por horas e horas na temperatura mais alta do forno. Não demorou mais que um minuto para que caísse inerte ao chão, carbonizado em uma pilha de restos nojentos e viscerais, ainda vivo graças ao urso por mais alguns agoniantes e dolorosos instantes, só para sofrer a maior devastação dolorida de sua vida.

O bebê permaneceu intacto, a luz se dissipara velozmente e a criança caia ao chão de forma lenta, pairando sobre o ar como uma pluma. Considerando o show de luzes, barulho e queimada da floresta ao redor que já excretava fumaça aos montes, seria apenas uma questão de tempo para que fosse encontrada. O neném, que até então chorava, permaneceu quieto por longos minutos. Não se mexia, quase não respirava, parecia mole e sem vida. Acostumava-se com a estranha presença dentro de si pouco a pouco, mas seu cérebro havia parado qualquer outra função por um grande período para tentar compreender aquilo que habitava o mesmo espaço. Não conseguiu, obviamente, então ignorou. Voltara a chorar e gritar, mas dessa vez, seus berros mais pareciam rugidos de urso.

[...]

Na manhã seguinte, um aglomerado de pessoas circundavam o bebê, observando-o com olhos atentos e curiosos. A menina dormia tranquilamente, mesmo que ao seu redor só houvesse caos e destruição. Confusas, as pessoas buscavam compreender o evento ocorrido ali, mas sem nunca chegar em uma clara e satisfatória resposta. Cada um poderia pensar em uma versão diferente, imaginar as mais absurdas e estranhas possibilidades, porém nada faria sentido. Algumas versões pareciam fantasiosas demais, impossíveis em cenários reais. Outras, ao contrário, realistas em demasia e pouco satisfatórias. Era uma questão sem resposta, uma indagação infinita que estenderia-se pela eternidade, presa somente na memória recém formada da criança, que logo desapareceria sem deixar qualquer vestígio do acontecimento fantástico e inexplicável.

— Ordem, ordem! Todos façam silêncio! — Uma voz potente e feminina gritou, chamando atenção de todos os presentes no local. — Nada será resolvido com observação e invenção de fábulas!

A falante se tratava de uma mulher mais velha, beirava seus cinquenta anos embora a aparência preservada, alta, pele negra e cabelos crespos encaracolados e longos. Seus olhos castanho-claros mantinha uma mirada focada, determinada e objetiva. O belo rosto, um pouco apertado em uma expressão dura, passava uma grande segurança e sabedoria inexplicáveis; o tipo de pessoa que viveu bastante, cheia de histórias pra contar, experiências incríveis para partilhar e, o mais importante, resolução para qualquer situação. A mulher, que subira uma árvore para que sua voz ecoasse mais claramente, desceu a mesma em um pulo. Caiu no chão de pé, ilesa e imutável. Encheu os pulmões de ar novamente em uma grande inspirada,  e prosseguiu.

— Deixem o mistério para os sábios, o importante agora é cuidar dessa criança! Por mais que aparente solenidade, deve estar com fome. — Dissera uma obviedade, porém uma obviedade a qual ninguém havia parado para pensar, não em tal circunstância. Sem demora, aproximava-se da criança, cuidadosa. — Venha cá pequena, está tudo bem agora... — Gentil, declarou, estendendo os braços para pegar o neném.

Não estava nada bem. Nem mesmo um único centímetro bem; no momento em que pegou aquela criança, aconchegou-a nos braços e acalentou-a em seu peito, tudo estava perdido. Sua mente esvaneceu, desapareceu, apagou em instantes e esqueceu a realidade ao seu redor. A visão anuviou, escureceu em puro breu inextinguível. Nenhuma luz poderia iluminar, dispersar as trevas, trazê-la de volta para o mundo. Não mais. Perdera-se na escuridão cosmológica e existencial que viria a lhe assombrar em instantes. Sentiu a maior impotência de sua vida, seguida de calafrios pela espinha e gelos nas articulações. O estômago, mais gelado que a Antártida, revirava em nós inigualáveis, enroscando-se e embrulhando a cada instante. A garganta entupiu, obstruída por algo não reconhecível que impedia a fala. Era difícil até mesmo de respirar, toda a concentração sendo puxada quase que exclusivamente para essa tarefa. A cabeça doía, uma dor pontiaguda e irritante, que se repetia em pontadas lentas e excruciantes. A qualquer momento explodiria, pondo um fim em seu sofrimento; ou pelo menos era o que desejava, pois, as dores estavam apenas começando. Alastraram-se pelo corpo inteiro, zonas que nem ao menos tinha ideia de que poderia sentir algo. Seu sistema nervoso berrava em agonia, o cérebro queimava e fritava devido ao número exacerbado de coisas para processar, o corpo em seu limite desejava cair mole no chão, estirado e inerte por longas horas. Mas nada disso ocorreu.

De repente, voltou ao normal. Nada mais doía, nada mais gelava, nada mais era anormal. Na verdade, parecia que tudo aquilo nunca ocorrera, sendo apenas uma peça mental pregada em si mesma por zero razões. Mas isso não fazia sentido algum, não mesmo. Não poderia estar ficando louca, ou poderia? Ou estava? Ou já ficou? Os pensamentos vinham a mil em um turbilhão, batendo-se uns contra os outros e se atropelando para chegar no raciocínio ativo primeiro. Mas não permitiu que qualquer teoria insana fosse levada como verdade, focou no verdadeiro problema aparente: a criança. Tinha algo de errado com ela, só poderia ser isso. Seria coincidência demais para ser verdade, estava certa de que aquele bebê fizera algo, mesmo que inconscientemente. O amontoado de pessoas pareceu não notar sua angústia, provavelmente durou apenas um segundo no mundo real. Decidiu permanecer calada.

[...]

Já faz uma semana desde os acontecimentos. Mary, a mulher que decidira "adotar" a menina, continuava tendo experiências muito estranhas com a criança. Tornaram-se menos frequentes, porém, ainda ocorriam, sempre horrendas e destruidoras. Por vezes, podia jurar que uma voz falava consigo, uma voz distante e agressiva que não conseguia compreender, mas sabia que estava ali, em algum lugar, trancafiada nos confins do corpo daquele bebê. Talvez quisesse se libertar? Quem sabe se comunicar? Não poderia determinar as vontades de tal ser que supunha a existência, mas tinha um pressentimento ruim de que não deveria ser algo bom.

Nesses sete dias passados, a recém nascida foi cuidada em uma tribo próxima ao local que fora encontrada. No curto período, os habitantes perceberam a falta de duas pessoas: um homem estranho que chamavam de feiticeiro e sua esposa. Supuseram que ambos seriam os pais das crianças e corpos encontrados carbonizados no desastre. Quando soube disso, Mary sentia mais medo ainda daquele bebê, receio dos segredos obscuros de que escondia. Conhecia muito bem o feiticeiro, sabia de suas loucuras e buscas megalomaníacas por poder e sucesso. Tinha total consciência das loucuras, profanidades e atitudes repugnáveis que tão egocêntrico e ignóbil homem poderia cometer. Quase certeza absoluta que fizera algo com criança, considerando suas marcas de queimaduras pela pele e olhinhos esbranquiçados. Uma coisa estranha era que, mesmo recém nascida, já possuía dentes pontudos e cabelo ruivo. Seu tamanho também era anormal para sua idade. Porém, a aparência exótica não era a pior parte, nem de longe.

O pior eram os calafrios, a voz distante e sussurrada sobre o ouvido, as dores constantes e o sentimento de impotência que vinham aleatoriamente. Tal sensação evoluíra com o tempo, transformando-se em inferioridade, um sentimento de estar abaixo de alguém, ou melhor, algo. Sentir-se menos, menor, pequeno comparado à alguma grandeza extraordinária. Como se alguém a subjugasse, dizendo-na o quão ínfima seria com um simples olhar, um claro desgosto visual numa fração de segundos; transmitido pelos olhos brancos e desatentos do bebê.

Por onde quer que passasse com a  pequena, era mal vista pelos transeuntes, os olhares todos atraídos para o bebê em seus braços. Uma espécie de aura invisível voejava para fora da criança, flutuando pelo ar e infectando os habitantes como uma espécie de vírus devasso. Estar na mera presença da menina causava arrepios, pensamentos ruins, raiva contida. Sentimentos sem razão, sem justificativa, mas tão vívidos quanto paixões latentes e ódios imensuráveis. A convivência com o bebê causava cólera coletiva na tribo, tanto que há pouco tempo, discussões tornaram-se mais acaloradas, ora ou outra terminando em brigas físicas. De fato, notaram suas agressividades, mas ninguém tinha coragem o suficiente para enfrentar Mary, devido a sua grande fama como caçadora infalível. Tal fama sempre a proporcionou vantagens, tais como ser escutada quando falasse, respeitada onde quer que fosse, admirada por muitos. Entretanto, tudo tem seu lado ruim, e isso não seria diferente. Suas desvantagens incluíam ser temida por muitos, isolada das pessoas pelo receio das mesmas. Viver uma vida solitária, sem um amor, sem amigos, apenas conhecidos cercando-a temerosamente. Pensou que, se pegasse o neném, poderia ver algum sentido em sua vida novamente, ter alguma companhia que a alegrasse e melhorasse seus dias; mas estava enganada, muito enganada. O sentido que deu para si não foi o de viver, mas sim o de sobreviver. Passar um dia após o outro em pânico, pensando que morreria a qualquer instante. Ou que sua mente se perderia em delírios insanos e vozes sussurradas. Em verdade, no fundo, de sua alma, sabia que aquela criança começava a despertá-la ódio e repulsa.

Pusilânime de seus futuros atos, decidiu tomar uma atitude: consultar um sábio. No total, haviam três na tribo, cada qual com suas especialidades. Nesse caso em específico, buscaria o mais antigo deles, um ancião especialista em energias sobrenaturais e espíritos impensáveis, desacreditados pelas pessoas há muitos anos. Mary, mesmo com a fachada de realidade social construída há décadas sobre sua cabeça, não deixara de acreditar em espíritos, sobrenaturalismo, coisas de outro mundo. Jamais permitiria ser controlada pelo senso comum, odiava pensar "dentro da caixa", ter ausência de opinião, ser controlada pelas massas. Buscava constantemente se questionar a cerca das normalidades e do conformismo.

E foram esses questionamentos constantes que a fizeram sair da casa, pouco se importando com os olhares de medo e julgamento ao seu redor. Transformou toda aquela atenção em energia, um pulso para seguir em frente e não se importar com nada mais, apenas com seu objetivo. Precisa descobrir o que tinha de errado na criança em seus braços, saber o motivo de todas aquelas vozes. A razão por trás de seus surtos de raiva e loucura repentinos, algo que justificasse o ódio coletivo daqueles que nem ao menos sabiam o que o bebê causava no dia a dia. Tudo deveria ter um motivo, certo?

Por fim, alcançara seu objetivo: a casa do sábio. Trata-se de uma pequena oca velha e meio torta, simplória e sem pinturas aparentes. Espaço suficiente para uma pessoa se abrigar de maneira não tão confortável, mas útil e funcional. De dentro da moradia, uma fumaça branca forte exalava a todo vapor, impregnando o ar com seu aroma bruto e queimado. Em passos lentos, Mary entrou, encarando o chão vergonhosamente para não ter contato visual com o outro. O velho, por sua vez, nada disse, apenas prosseguiu com o que estava fazendo antes de a mulher ter chegado. O corpo encolhido, olhar baixo e contemplativo, como se encarasse algo fascinante no chão, mas não havia nada para ser visto. Suas costas curvadas e caídas denunciavam os vários anos de idade, além da pele enrugada e flácida por cada canto do corpo.

— Grande sábio, tem um momento do seu tempo? — Mary tomou coragem para dizer, quebrando o momento de silêncio incômodo e constrangedor.

Parecendo ter finalmente notado a presença alheia, o velho homem ergueu a cabeça, deixou a coluna o mais ereta que podia, tornou seu olhar equivalente ao outro em altura. Mary pôde ver os olhos castanhos cansados de olheiras profundas e bem marcadas. O pequeno rosto magro e de pele caída, rugas prevalecentes sobre as feições por vezes. A pele queimada de sol parecia quase que uma casca dura, uma carapaça que guardava e protegia um poço infinito de conhecimento. Suas vestes, quase que trapos brancos e encardidos, se rasgavam lentamente conforme seu uso exagerado. Por mais que recebesse doações dos outros moradores, sempre as negava gentilmente, mantendo-se com o seu pouco. As mãos, segurando o cachimbo de madeira em sua boca, tremiam lentamente bem de leve. Uma baforada de fumaça branca irradiou do fumo, impregnando todo o ar e o local. Mary tossiu, mas manteve-se ali, parada. Observou o movimentar dos velhos lábios, abrindo-se de forma amena para um sorriso gentil.

— Mas é claro, querida Mary. Quanto tempo não a vejo? Talvez mais de um ano, mas parece bem menos. O tempo é realmente engraçado, não é mesmo?— A voz raspada e rouca soou da garganta do ancião, seus olhos passeando pelo corpo da mulher, observando detalhes diferentes.

— O tempo é cruel, isso sim. — Mary, de olhar baixo, respondeu. — Quando menos espera, ele acaba e você não pode fazer nada. Ou às vezes, escolhe uma coisa errada e já é tarde demais, o tempo de pensar já passou. No fim, você lida com consequências terríveis por conta de alguns segundos. — Suspirou, relembrando perdas passadas e presentes em um turbilhão mixado de memórias. No fim, seus olhos repousavam sobre a criança em seus braços, relembrando-na de seu objetivo. — Mas não estou aqui para falar de tempo, não de tempo. Na verdade, ancião, eu gostaria que avaliasse o bebê que tenho nos braços. Tem algo de errado com ele, eu sei que tem.

O silêncio dominou por mais uma vez, reinando absoluto sobre tudo por longos e desconfortantes segundos. Cada mini movimento do homem para observar a menina, procurar algo errado, tomá-la calmamente de seus braços estavam a matando de ansiedade. Fez menção de pegar a pequena, mas Mary impediu. Convencido, seu sorriso ainda parado no lugar, pediu que colocasse a criança no chão. Um brilho leve de cor branca lentamente tomava conta da escura moradia, mostrando-se superior a qualquer truque do breu. Eram os olhos do velho, que pouco a pouco se iluminaram, irradiando luz branca em cada canto. Os faróis luminosos pousaram sobre o corpinho alheio, avaliando como um falcão de tão atento.

— Vejo que o que diz tem algum fundamento... Sinto algo estranho nesse bebê, algo forte. Preciso observar melhor. — Afirmou, voltando com seu serviço.

Foi só quando sentiu o nó na garganta, a respiração travada, o arrepio nos pelos e o calafrio na espinha que pôde notar o problema. A pele enrugada se retraiu, quase ficando nova em folha. Os olhos cansados arregalaram, a boca caída se escancarou em um perfeito círculo. Os braços tremiam, as pernas bambeavam, a mente esvaia com o mero contemplar do sereno neném que nem ao menos mexia direito. Um sono profundo, calmo, contrastado pela natureza selvagem e indomável. Pela essência incontrolável e violenta, os instintos destruidores e ferozes. Todas as afirmações de Mary tornaram-se extremamente verossímiles, cada palavra que dissera era a mais pura verdade, mesmo as que atropelava para dizer agora. Seus relatos confusos de ódio coletivo e raiva generalizada. Todos se confirmaram quando, subitamente, o homem sentiu um ódio repulsivo e grotesco ao sentir sua mente invadida e subjugada.

— O que quer que esteja dentro dessa criança, não é desse mundo. É um espírito, só pode ser um! — Nervoso, deixava a voz baixa e calma para lá, exaltando-se. — Mas não é um espírito qualquer, é muito mais... É uma aberração! Precisa ser expurgado imediatamente! — Gritou, furioso, apontando para a pequena com seu cachimbo.

A menina abriu os olhinhos, remexendo-se em debatidas fortes e violentas. Abriu um berreiro daqueles, chorando alto e irritante com o susto que levara dos gritos do mais velho. Não havia nada de anormal naquilo, só um bebê chorando. Anomalia foi, de fato, o que veio depois: um tremor. Um terremoto repentino que tremeu a oca inteira, o chão se retorcendo a batendo com tanta força que derrubara os dois adultos facilmente. A menina, ainda ilesa, chorava mais e mais, e parecia que cada batida de braço ou perna que dava no chão só piorava a magnitude da tragédia. Segurando-se uns nos outros, resistiram aos temores tentando ficar de pé, falhando inúmeras vezes e torcendo para que terminasse logo. Ao fim daquilo, ambos se encontravam com cortes e hematomas superficiais, mas o ancião estava pior; gotejos de sangue respingavam de seu nariz, caindo sobre o solo sem timidez.

Antes que qualquer palavra fosse dita, os glóbulos do homem tremeram, suas luzes brancas piscaram inúmeras vezes e se apagaram, para enfim, as pálpebras fecharem de forma rude. Permaneceu desse jeito, parado, os olhos ainda tremendo por debaixo das pálpebras, sendo observados com receio por Mary. Após o que pareceu uma eternidade, lentamente subiu sua obstrução visionária para revelar algo diferente; seu brilho outrora lúcido e reconfortante, iluminador como faróis e transmitidor de sabedoria, agora nada mais era que uma agressividade rubra e carmesim que despertava sanguinolência. Um vermelho tão profundo quanto sangue escuro e vivo. Mary quase podia sentir viscosidade naquela luz, junto a temperatura alta dos líquidos interiores de uma pessoa. Aquele brilho espetacular despertara uma vontade incessante de destruir, corromper, violentar. Tudo que envolvesse fúria, raiva, ódio ou atos perturbadores e grotescos de violência.

— Aberrações são os humanos que se  pensam no direito de lidar com seres divinos, maravilhosos, muito além de sua simplória percepção ou entendimento. Vocês devem apenas aceitar, como os meros vermes que são. — A voz saiu do velho, mas muita mais grave e raivosa, mesmo que ele não tenha aberto a boca. — Façam o que desejarem, eu não sairei. Se quiserem tanto isso, terão de matar essa criança.

De supetão, a luz cessou, e o ancião caiu inconsciente. A respiração de Mary tornou-se entrecortada, acelerada e pesada. O cérebro tentando ainda processar o que acabara de acontecer. Foi aquela a voz, a mesma voz que escutou aos sussurros durante todo esse tempo com a menina. Mas dessa vez foi alta e em bom som, reverberando ao redor da oca. Agressiva, imponente, potente e destruidora, tão forte quanto um exército rugindo em conjunto com todo seu clamor. Mary sabia que isso não poderia acabar bem, algo iria acontecer assim que aquele homem acordasse, e tinha medo do que poderia ocorrer. Então, tremendo de ansiedade e receio, pegou novamente a criança no colo, apertando-a entre seus braços e correndo de dentro daquele local antes que o homem despertasse. Não sabia porque, mas havia criado um vínculo pela criança; embora escutasse vozes, sentisse uma espécie de raiva às vezes, tivesse medo e ansiedade constantes, acabara se apegando a menininha que nada a ver tinha com isso. No fundo, gostava dela, e agora que sentia que sua vida estava em perigo iminente, só conseguia ter um único instinto: fugir.

[...]

Seus pés raspavam na terra e no mato constantemente já fazia mais de uma hora. A tentativa de fuga tinha dado errado, agora nada mais poderia fazer que não fosse correr o máximo que pudesse. O dia lentamente transcorria seu fim, o sol poente demarcado no horizonte, engolido pelas árvores e vegetação alta que bloqueavam a luz cegante do astro. Seus suspiros e resfôlegos eram nada ritmados e extremamente constantes, o corpo doía em todos os lugares que pudesse imaginar, principalmente nas pernas. Um choque muscular lancinante causado pelo esforço excessivo e extenuante. Não podia durar mais nem um minuto sequer, todavia não se dava por vencida, não enquanto tivesse certeza que estava segura. Não se permitiria jazer ao solo terroso enquanto escutasse as vozes, passos e berros vindos de todas as direções. Mesmo que custasse-lhe a vida, mesmo que nunca mais pudesse andar, não pararia até que seu corpo explodisse no limite.

Ajeitava a manta da criança, repetindo incontáveis vezes a frase "vai ficar tudo bem, vai passar" enquanto acariciava a cabeça da menina. O mantra repetido era mais para si mesma, uma tentativa desesperada de se convencer das próprias palavras. Ainda que não entendesse o idioma, a criança apreciava o carinho, fazendo caretinhas prazerosas ao toque da mão macia e carinhosa. Parecia feliz, e quando Mary enxergava isso, sorria de leve involuntariamente. Os sentimentos pela pequena cresceram espontaneamente na última hora, seu peito doía e apertava só com o simples pensamento de que poderia perdê-la, sentia que seria o fim de si mesma. O fim de sua existência, a ruína do seu próprio ser e de tudo que conhecia como mundo. Não haveria mais nada, apenas tristeza e desilusão. Um mundo sem cores, vazio e cinzento, desgostoso e moribundo.

No fim de sua estamina e força de vontade, acelerou o passo o mais rápido possível, ultrapassando seu limite em um impulso surreal. Dando o dobro de si, fez uma curva fechada repentina, escorregou uma ladeira, contornou umas árvores e saltou sobre dezenas de arbustos. Percorreu uma enorme distância em poucos segundos, escondendo-se entre arbustos deitada na terra e na grama. A essa altura, já não havia mais brilho solar, a lua começara a se mostrar com sua fraca luz esbranquiçada e azulada. Deitada entre as folhas, mal daria para ver Mary escondida ali, seria impossível que fosse pega. Só precisava ficar quietinha, não emitir um único som durante um tempo, esperar que desistissem. Abraçou o bebê firmemente, balançando-o para cima e para baixo pra ajudar em sua soneca, garantir que não acordasse e delatasse sua posição. Com um pouco de sorte, conseguiria enfim escapar, sair daquela floresta e sumir da vista de todos os xamanistas para sempre. Nunca voltaria, viveria tranquila em algum outro lugar com a criança. Criaria a pequena, encheria-na de  amor, ensinaria-a o certo e o errado, a tornaria uma boa pessoa.

Já podia sentir um sorriso formando-se nos lábios ao imaginar cenas futuras, expectativas passageiras que vieram com tudo. Enxergava-se confusa e debilitada, procurando formas de se virar fora da tribo. Mas como a mulher independente e forte que era, logo continuava aquela situação e se situava em uma pequena cidade, arrumava um trabalho confortável e dedicava seu tempo na pequena. Sua felicidade aumentou gradativamente quando, em sequência, pensamentos felizes brotaram na cabeça. Se via alimentando a criança que comia feito um leão, brincando de "cadê a mamãe? Achou!" com ela, ensinando a caminhar e falar pouco a pouco... Depois, matriculava a menina numa escola, algo que nunca conheceu muito bem, mas sabia da existência. Buscava-na todo dia, que vinha correndo de braços estendidos para um abraço, chamando-na de mamãe. Seus dedos aninharam os cabelinhos ruivos quando, mais uma vez, delirou em expectativas, dessa vez imaginando-se inventando histórias bobas para fazer a menina cumprir suas obrigações, comer os vegetais, ser uma boa garota. Tudo era tão lindo, tão mágico e palpável. Nada poderia separá-la daquele futuro.

Nada além da haste pontuda e imparável que surgiu do além, irrompendo a escuridão e atingindo o peito alheio com precisão exímia e inigualável. Tossiu sangue, os olhos arregalados indicando que nem ao menos notara o ocorrido, chocada demais com a dor repentina e potente que encobriu seu torso. A lança atravessou pele, carne, tecido e se alojou profundamente, atravessando do outro lado do corpo da mulher. Seus delírios futurísticos a deixaram desprevenida, insegura para os perigos e atitudes de seus perseguidores. Não pôde esquivar a tempo, se ao menos tivesse visto chegando... Mas agora era tarde demais, tarde para tentar algo, executar alguma ação. Quando menos espera, o tempo acaba e não podemos fazer nada. Lembrou-se da frase de mais cedo, uma onda de angústia e melancolia percorrendo o corpo, suplantando a dor com a realização instantânea que teve: nada do que imaginou aconteceria, não chegaria nem perto.

Lágrimas explodiram dos olhos rigorosamente e ensoparam o rosto, a água tão turbulenta quanto uma cachoeira invencível de milhões de anos, fundada no início dos tempos do planeta. Não podia conter sua tristeza, sua agonia em saber que nunca poderia ter uma família. Que morreria daquele jeito, imunda no chão de terra, roupas sujas e cortadas pelos galhos, corpo retalhado e destruído pela fuga inútil. Mas principalmente, o que mais lhe causava angústia e revolta era morrer agarrada à pequena, incapaz de protegê-la, de livrá-la do mal existente que a cercava de todo canto. Cuidar de si até que pudesse cuidar-se sozinha, testemunhar seu crescimento e divertir-se com ele. Amá-la e oferecer uma vida digna, aceitar seus problemas e tentar ajudá-la a lidar com eles, não caçar e destruir sua existência por medo de eventos sobrenaturais ou efeito manada. Nunca seria mãe, e isso fazia doer o peito, mas uma dor diferente da física sentida. Uma tortura mental e sentimental que açoitava-lhe a alma na constante lembrança de seu fracasso.

Mary morreu derrotada, seu corpo amoleceu lentamente enquanto os olhos e a face mantinham a mesma expressão de tristeza e desespero. Caiu para trás, o neném ainda jazendo em seu colo, agora acordado com o baque do corpo ao solo. Sua última visão antes de deixar esse mundo foi a lua bruxuleante por detrás das folhas dançantes das altas árvores.

[...]

Desde então, durante anos, tudo que a criança conheceu foi dor. Nada além da degradação o maior pico de devassidade que um ser humano pode chegar. Quando encontrada, fora atacada por diversas pessoas, ferida até um estado crítico. Mas covardes, crentes que seus atos não seriam tão ruins se não consumados até o fim, pouparam a vida da pequena. Não conseguiram a matar, ao menos não diretamente. Após a surra que ocasionou ferimentos surreais, fora deixada num buraco na terra entre árvores onde Mary morrera. A mulher, inclusive, acabou por ser cremada, assim não sobraria qualquer pessoa que tenha convivido por muito tempo com a menina. Os participantes da empreitada, praticamente toda a vila, chegaram em um consenso único de nunca dizer nada sobre isso. Em hipótese alguma citar o caso. Os três sábios, vozes da razão do povo, pensaram juntos e bolaram um plano: caso a criança não morresse em alguns dias sozinha na floresta, deveriam mantê-la viva para evitar a fúria do espírito. Por isso criou-se uma agenda, uma espécie de calendário que dizia quando cada um deveria alimentar a garota.

Já faz doze anos desde o ocorrido, o espírito se mesclara totalmente ao corpo nesse tempo, tornando-se um com a criança. Agora ligados, a menina e o urso dividiam não só o corpo, mas também a mente e o físico. Em seu estado deplorável de saúde e consistência corporal, a menina enfraquecia o espírito em demasia, que sentia a própria existência se esvaindo a cada agressão nova que a menina sofria. Por muitas vezes, sentiu algo que nunca havia antes: medo de morrer. Um ser cósmico e indestrutível, arrogante e mesquinho, agora subjugado por aqueles que ele mesmo fingia dominar. Patético, deprimente, irônico. Impulsionado por tal medo, o espírito buscou alimento; utilizava o corpinho para buscar coelhos, esquilos, animais pequenos e as vezes, até arriscava algo grande como um javali. Ingerir a carne o fortalecia, além de transmitir uma falsa sensação de segurança.

Dia após dia, além dos maus-tratos e descuido, a menina precisava lidar com a voz incompreensível do urso em sua mente. Nunca entendeu uma palavra, a falta de socialização mostrando-se um fator destruidor para as capacidades comunicativas da pequena. Quando o espírito começou a falar com ela, já estava bem mais velha, seria difícil assimilar as palavras. Irritado, desistiu, e os estímulos nulos impediram que aprendesse qualquer linguagem. Todavia, recentemente, começara a falar mais, ocasionando na menina aprendendo a dar grunhidos, gritos e rosnados ininteligíveis. Mesmo que pouco, era um avanço. Talvez um dia aprendesse alguma palavra. Considerando seu estilo de vida, aprenderia algo que não caçar e sobreviver no melhor dos casos, ainda com bastante sorte.

— Esses machucados nas pernas estão doendo muito. Fico surpreso como ainda consegue andar. Todos esses anos na floresta te tornaram um verdadeiro animal, é impressionante.— A voz, não tão agressiva com a menina, disse ao vento. A garota ouvia atentamente, mas não compreendia. — Um animal que não se rende e faz de tudo para sobreviver, continuar existindo mesmo na pior das situações. É intrigante, de fato.

Respondido por um rosnado, não de raiva, mas sim um grunhido aleatório. Sempre recebia respostas neutras, não sabia exatamente o motivo. Talvez a garota só tentava se comunicar? Ou quem sabe, não se sentia bem deixando seu único companheiro periódico falando sozinho. Enfim, de qualquer forma, após a resposta a garota se encolheu, as mãos na cabeça apertando os ouvidos enquanto o corpo se contraia sem parar. O espírito suspirou, sabia o que era: dor de cabeça. Sempre que falava muito na mente humana, causaria um desconforto extremo e avassalador que esvanece as ideias e pensamentos. Não queria fazê-lo com a pequena, mas por vezes não podia evitar. Era automático, um hábito adquirido por milênios que, subitamente, precisava ser deixado de lado em pouco mais de uma década. Uma tarefa bem difícil para o urso.

Após o choque, a menina se acomodava no buraco e adormecia rapidamente, tão encolhida quanto um cachorro ou gato. Observando-a, passeou os olhos por seus ferimentos: duas enormes feridas abertas nas pernas, moscas pousando na mescla de sangue seco e pus, tentando aproveitar algum momento para colocar suas larvas. Pedaços de sua pele estavam rasgados em alguns lugares, expondo carne imunda de terra e ardendo sem parar. Seu pescoço e rosto ostentando suas marcas de queimaduras, braços e ombros repletos de arranhões profundos e também sujos de terra e sangue seco. Diversas feridas, umas mais fundas e outras mais superficiais, enfeitavam cada canto do corpo, denunciando os maus tratos. Seus pés descalços lotados de bolhas e esfolados, sua pele marcada com hematomas roxos nos braços, pescoço, torso e cintura.

Um estádio deplorável e digno de pena. Mesmo que não se importasse com humanos, naquele caso era diferente; estava ligado a criança, os dois eram um só, compartilhando de tudo. Sentia sua dor, dia após dia, a cada golpe que recebia e abria um novo machucado. Sentia seu frio nas noites congelantes, seu medo nos momentos barulhentos de passos indicando que alguém se aproxima, sua tristeza nos tempos silenciosos e solitários. Ainda que ela não conhecesse o significado de amor, família e essas coisas, era disso que precisa, era isso que buscava sem nem saber. Era isso que implorava a cada noite de choro incessante.

No dia de hoje, o urso fez que a menina procurasse comida, acabando por roubar um coelho de um homem e um menino na mata. Lembrava-se daquele homem, mesmo que estivesse diferente. Fora um dos que apareceu para trazer comida, mas esse era diferente: nunca mais voltou após a única vez que veio. Estranhamente, não retornara como os outros e nem maltratara a pequena. Se limitou apenas a deixar os pedaços de pão, saindo em silêncio transtornado. Provável que não participara da empreitada, nem ao menos sabia da existência da criança, por isso tamanha surpresa e medo. De qualquer forma, foi legal brincar com sua mente e instaurar o pânico em seus pensamentos. Nunca esqueceria a face de pavor iminente brotando, repetindo-se no rosto dele mesmo oito anos depois. Esse era um dos motivos pelo qual adorava atormentar humanos; não importa o quanto estejam habituados à algo, pois, no fundo, sempre vai existir o temor da morte. Não importa quantas vezes apareça, torture ou aniquile. Sempre temerão a si, a violência sem precedentes que carregava.

Agora, mais um dia chegava ao seu fim. O sol se punha rapidamente para dar lugar a lua. O céu escuro e nublado, sem estrelas, anunciava a chegada de uma forte chuva iminente. Não demoraria muito para começar a cair, quem sabe uma hora? Talvez menos. O espírito gosta de  chuva, sentir os pingos molhados deslizando em seu corpo, molhando e refrescando suas partes. Parecido com banho, mas uma sensação mais libertadora, mais gostosa, não sabia explicar. Quando a chuva começasse, tentaria fazer a pequena sair de seu buraco. Já sentiria frio de qualquer maneira, então não importava estar na chuva ou fora dela. É claro que, por sua negligência para com os humanos, o urso não fazia ideia do que significava hipotermia.

Antes dos pingos virem, outra coisa veio; ou melhor, alguém. Uma figura alta e encapuzada destoava da paisagem natural de árvores e grama. Se movimentou sinuosamente, parecido com um felino rodeando sua presa. O capuz cobrindo sua cabeça possuia uma grande pelagem, como a juba de um leão. A medida que se aproximava, uma cesta podia ser enxergada em sua mão esquerda, um olhar de nervosismo sustentado na face. Os lábios forçavam um sorriso torpe e distorcido, as bochechas já doendo de ter que segurar aquilo. Subitamente, fechou a cara, a expressão tornando-se entediada e rancorosa. O ser cósmico conhecia aquele homem, mesmo que não soubesse seu nome. Periodicamente, porém mais frequente que os outros, aparecia com alimentos.

Mas de todos os que vinham, este era o mais instável: as vezes neutro, só aparecia, entregava e se retirava. Outras, no entanto, odioso. Descontava sua raiva, batia na garota, espancava e xingava até retirar toda amargura de dentro de sua alma, saindo revigorado. Desabafara inúmeras vezes para a menina, que nunca entendeu nada, e mesmo que pudesse não entenderia, ocupada demais em tentar se defender ou diminuir sua dor. Lembrou-se que ora ou outra trazia consigo adagas, lâminas as quais colocava entre os vãos dos dedos, simulando garras de felino. A menina já havia conhecido o corte delas, estavam sempre muito bem afiadas e polidas no máximo, peças admiráveis de tanto zelo e manutenção. Talvez o dono as amasse mais do que muitas pessoas, ou mais que a si mesmo.

Abriu os olhos devagar quando escutou o barulho da cesta caindo ao chão, seguido de uma mão agarrando a gola de sua camisa rasgada e esfarrapada, puxando-a para cima. Sem reação, se deixou ser levantada, encarando os olhos castanhos vazios de seu agressor. O rosto permanecia intacto, mas logo a boca se contorceu em um sorriso psicótico. Inconscientemente, desviou o olhar, medo daqueles olhos penetrantes que tanto analisavam. Poderia até não entender coisas simples, mas sabia muito bem os sinais de quando iria apanhar muito. E dessa vez, dizer "apanhar muito" seria pouco.

— Sabe garota, é até bom que você exista, assim eu posso não explodir no meio de todo mundo. — Sorriu mais largo, puxou a menina para mais perto e sacou uma de suas adagas. — Não estou muito agressivo hoje, quero que dure um tempo. Aproveitar o momento, sabe?

Feito um animal amedrontado, o olhar da menina abaixou ao ver a adaga próxima ao rosto. Não importava sua baixa inteligência, sabia muito bem associar a situação para saber o que viria a seguir. Não lutou contra de início, assustada demais para ter qualquer reação. Só despertara quando, em um movimento lento, a ponta metálica perfurou calmamente seu rosto, na região da bochecha direita. Um filete de sangue escorreu para fora, sua intensidade sincronizada à lentidão da lâmina que a perfurava. Lian sorria largo, esbanjando-se de felicidade com o sofrimento alheio da criança. Não iria parar tão cedo, se divertiria por muito tempo.

O espírito sentiu uma dorzinha chata na face, irritando-o profundamente. Tinha uma vontade enorme de assumir o controle e esfaquear aquele homem até seus últimos suspiros. Todavia, se fizesse isso, mais cedo ou mais tarde dariam falta por ele. Não que os habitantes fossem perigosos para si, pelo contrário; mas a alimentação e condições de vida precárias enfraqueceram o urso. Não conseguiria lidar contra uma tribo inteira no estado que se encontrava, ainda mais em um corpo humano. Decidiu então se acalmar, respirar fundo e reorganizar as ideias. Ignorava os cortes e dores facilmente, mas sentia um ódio profundo a cada ganido de dor que saia da boca de sua possuída.

A chuva começou a cair fracamente, mas logo apertaria até ficar tão forte quanto um touro. Um raio atravessou o céu azulado, e então, a adaga foi enfiada com tudo no estômago alheio. Segurou-se para não verter sangue, não dar o gostinho de seu sofrimento. Limitou-se apenas a resmungar, se encolher e, numa tentativa desesperada de fuga, se debater feito um peixe na rede. Seus resmungos atropelados e animalescos lembravam um cachorro maltratado, chorando e ganindo em sofrimento sem igual. O urso não sabia ao certo o porque, mas sentia um aperto no peito ao vê-la daquela forma. Mais uma estocada no estômago, dessa vez mais forte e bem posicionada, uma dor perturbadora. A garota berrou em agonia, irrompendo o silêncio florestal.

Desesperada, debatendo-se e pulando como podia, agarrou a mão do agressor e mordeu com tudo. Seus dentes finos e pontudos encravaram na carne semelhantes a navalhas. Carne, músculo e tendões destruídos em questão de milésimos. Imitando a menina, Lian esgoelou a voz da garganta, largando a garota no exato instante que teve a mão dilacerada. Caída ao chão, mão na barriga e respiração entrecortada; imóvel pela dor e sofrimento que não passavam momento algum. O homem, lentamente, se recuperava do choque, sua face contorcendo-se em fúria explosiva. Rugiu, um brado leonino raivoso, e a pequena caiu na lama sangrando. Se arrastava com os braços e pernas, engatinhando no chão, chorando baixinho e sentindo os passos calmos e psicopatas atrás de si.

Se fosse tão racional quanto uma pessoa qualquer, saberia que não tinha chance de escapar. Em seu estado, fugir seria o cenário mais fantasioso possível; desnutrida, exaurida, dolorida, ferida, estropiada e jogada de lado. Ninguém viria para resgatá-la agora, para livrá-la de sua tortura lenta e angustiante, privá-la de uma colossal e desnecessária dor. Arrepiou-se por inteira, arqueando as costas ao sentir uma mão calejada e violenta agarrando seu couro cabeludo, rasgando os fios brutalmente e apertando a cabeleira ruiva cheio de ódio. Erguida pelos cabelos avermelhados, de costas para Lian, debateu-se em pânico uma vez mais. As pernas balançando no ar, chutando o nada para frente e para trás, tentando, debilmente, acertar o homem que a agredia. Um barulho de algo caindo sobre a terra soou, as adagas do homem foram caídas no solo.

— Nojenta! Aberração! Monstro imundo! Volta pro inferno de onde nunca deveria ter saído! — Esbravejou em cólera, erguendo o punho.

A dor gritante veio com mais um trovejar daquela noite chuvosa; golpe potente em forma de soco que acertou-lhe a face, esmigalhando a cartilhagem do nariz facilmente. Não batia para doer, machucar, ferir. Lian soltara a fera de dentro de si, socava para matar, descontar cada gota de sua fúria sobre o corpo menor em um ato selvagem e desumano. Babava e salivava igual um animal raivoso, enquanto a criança resmungava e gania como um desesperado. Ambos feras humanas, cada qual agindo de maneiras diferentes. O braço do homem voltava para mais um golpe, dessa vez acertando em cheio um dos olhos, deixaria um roxo de hematoma feio de se ver. Seu corpo inclinava-se para frente a cada soco, desequilibrado pela força do próprio punho que puxara seu peso pra baixo.

A face se deformava lentamente, logo chegaria em algum ponto em que nem ao menos lembraria um rosto humano. Um calafrio percorreu por todos os pelos e pela espinha do ser cósmico, um medo súbito que açoitou-lhe a alma e agarrou-lhe o coração fortemente. Sentia garras apertando-o, segurando sua vida e divertindo-se por estar brincando consigo. As garras não eram de um monstro, mas sim de um outro animal: um leão. Era aquele humano desgraçado que, a cada ataque, retirava a essência do espírito daquele mundo, juntamente a vida da pequena. Sabia que ela não duraria muito tempo mais, seu corpo não suportaria aquelas condições, de forma alguma.

E então, ao perceber a respiração quase inexistente, a pulsação lenta e relutante do coração, o sangue gotejado aos montes e escorrido para baixo da terra, os braços e pernas inertes e estendidos, cansados de lutar e convictos de seu destino, sentiu algo diferente. O calafrio, dessa vez maior, seguido de um frio na boca do estômago que acometeu tão potente quanto mil invernos. Um nó seco na garganta, suor frio escorrido da testa e de outros cantos do corpo. Sentiu algo que não sentia há milênios: medo. Pavor da morte, receio do fim, terror sobre o cruel destino certo que lhe aguardara. Não queria acabar assim. Não poderia. Em hipótese alguma se deixaria vencer por um humano imundo, em caso nenhum permitira que continuasse machucando a criança, a sua criança. A pequena era propriedade dele. Sua possuída. Seu receptáculo. Apenas ele tinha a permissão de feri-lo, mexer com ele. Todos os outros que ousassem tocar no que era seu, deveriam pagar com a vida. Ou ao menos era esta a desculpa que inventara para si mesma pra justificar sua cólera infernal.

Desculpa ou não, o golpe de misericórdia que terminaria com a destruição da face de vez foi impedido por uma pequena mão. Um movimento abruto do braço antes esticado, mas agora comprimido e retorcido. O simples esforço de  ter o levantado doía muito, parecia que ia cair a qualquer instante, mas não o fez. Incrédulo, Lian observou imóvel quando, lentamente, os pequenos dedos forçaram-se contra sua mão, tão fortes quanto um touro. Mesmo com esforço, não foi capaz de manter a mão fechada, a menina caindo logo em seguida. Tocava o chão brutalmente, caiara de quatro tal qual um animal. Todavia, dessa vez, não um pobre bichinho indefeso, mas sim uma fera indomável em posição de espreita.

Os dentes trincados rangiam ao fazer esforço um contra o outro, acompanhados aos rosnados de raiva guturais provenientes do fundo da garganta. O cabelo ruivo molhado escorria pelo rosto, cobrindo suas expressões parcialmente. Os olhos esbranquiçados da menina metamorfosearam em outra cor, um festival de luzes rubras piscantes e cegadoras. Feito dois faróis vermelhos, seus rastros de luz mais pareciam lasers prontos para destruir tudo que encontrassem pela frente. Levantara a cabeça, fitando o rosto do covarde, cheia de ódio, fúria cosmológica. Um repugno inigualável que nunca sentira na vida, a necessidade de destroçar cada centímetro daquele corpo para se sentir melhor de algum jeito. A ideia lhe parecia formidável.

Lian nem ao menos teve a chance de enxergar o bote letal. Em velocidade inumana, a criança saltou para um ataque. Suas unhas tão afiadas que, estranhamente, tomavam a forma de longas garras carmesim. Não só elas, mas também seus dentes, aumentados e manchados por um vermelho fantasmagórico e espectral. Além das armas mortais, orelhas de urso de pelo avermelhado brotavam da cabeça, materializando-se nesse formato translúcido e rubro. Num só acerto, sem rodeios, acertou-lhe o pescoço, cravando as garras profundamente na carne. O sangue espirrou pelo rosto, manchando-o, mas a menina não cedeu. Em meio aos engasgos e gritos desesperados de Lian, sorriu de maneira larga e psicótica. Os papéis haviam se invertido; agora o caçador era a garota, enquanto o homem, a pobre presa acuada e derrotada.

Tentou resistir, mas foi inútil. O pouco peso da menina subitamente havia se tornado toneladas e mais toneladas. Seu peito fora comprimido, esmagado por joelhos, sem chance de respirar. Os braços, imóveis, presos rentes ao solo pelas mãos de unhas pontudas. Antes mesmo que pudesse pensar em mais algo, a mandíbula se abriu muito mais que um humano deveria, escancarada em um ângulo irreal. Os dentes aprofundaram com tudo na região do olho, furando o direito e mastigando-no. Lian soltou o maior urro de dor de sua vida, os pulmões esvaziando qualquer resquício de ar ainda presente em si. Satisfeito, o espírito sorriu, mas não terminaria ali, não enquanto ainda estivesse vivo. 

Soltou um dos braços alheios e, do jeito que esperava, a mão foi instintivamente sobre o olho ferido. Aproveitando a oportunidade, fincou suas lâminas espectrais na barriga de Lian e, num delicado e arrogante movimento, mutilou-a até que ficasse aberta, as tripas e órgãos expostos por toda a terra. O líquido ferroso espirrava, jorrava, respingava e tornava a pequena imunda, sórdida, coberta por impurezas. Entretanto, a constante água caída do céu tomava partido na limpeza, varrendo todo o sangue e mixando-o à lama e sujeira.

Lian não tardou em perder sua vida, a partida sendo lenta e excruciante, as dores dominando-lhe por completo e o terror subjugando sua mente. Olhava aquela figura de baixo, inversão total comparado a situação de poucos minutos atrás. Derrotado, humilhado, vencido por uma reles criança. Impotente, fraco, inútil, covarde e repugnante. Morreria desse jeito, esquecido e sozinho naquela floresta, eventualmente sendo achado quando sua carne e ossos já estivessem podres. Ou, quem sabe, nem mesmo isso. Ingerido por animais carnívoros de passagem, deixando nada além de resquícios apagados de sua existência.

Após morto, inerte e flácido, sorriso esbanjador surgiu na face contorcida e repleta de sangue. Os dentes carmesim, mesclados ao líquido de mesma cor, mais pareciam arcada dentária de tubarões em meio à cardumes de peixes. Não dada por satisfeita, abaixou sua cabeça, encostando os dentes na pele do pescoço e deslizando para lá e para cá. Procurava o melhor ângulo para morder, arrancar a carne facilmente. Encontrou, e em um simples abocanhar, metade do pescoço se foi com força bruta e pura. Mastigara o pedaço de músculo, pele, carne e tendões, saboreando-o tal qual uma coxa de frango. Engoliu com rapidez, e logo mais mordidas foram dadas. Em pouco tempo, a cabeça rolou, entrando para dentro do buraco de onde a menina saiu.

A chuva gélida recaia repetidamente sobre seu corpo, escorrendo pela face de forma inevitável. Flexionou um pouco os joelhos, abriu as palmas das mãos em conchas, viradas para cima, mostrando suas garras. Arqueou a coluna, jogando a cabeça para trás e abrindo a boca num brado aterrorizante. O maior e mais imponente rugido, um berro tão sombrio que arrepiaria até o último pelo do mais corajoso animal que passasse. Baixou a cabeça lentamente e, mais devagar ainda, caminhou na lama a passos lentos para dentro da floresta. Os pés descalços imundos pela lama e sangue, todo o corpo e roupa machados, pedaços de tripas ainda presos ao dentes, palitados pela própria língua. Embora a "refeição" tenha lhe fortalecido, seu andar era falho e bruxuleante, quase que hesitante. Um raio caiu, no exato momento em que os fachos de luz dos olhos rubros brilharam mais uma vez. Em passos débeis e demorados, foi floresta adentro em busca de mais alimento.

[...]

Correu pela mata em frenesi nunca antes sentido. Tropeçava nos próprios pés e em galhos pelo chão, mas se recompunha em menos de um segundo, voltando à investida reta e acelerada. Não tinha rumo, não possuía direção, apenas corria o mais rápido que seu corpo permitia em linha reta. Os pulmões falhavam, suplicando por uma parada para tomar ar profundamente, mas não houve; Bo não se daria o luxo de parar tão cedo. Seu chapéu de águia se perdera na tempestade, os longos cabelos morenos recaindo-lhe molhados sobre a face e o peito, atrapalhando a visão. Em meio a corrida, agarrava a cabeleira e amarrava do jeito que podia, utilizando galhos para servirem de presilhas provisórias.

As pernas começaram a doer muito, ao ponto de impedir que prosseguisse. O homem, negligenciando seus próprios limites, não se deu por vencido e continuou. Eventualmente, sem nem perceber, caiu ao chão, de encontro a um monte de lama e grama barrentas, além de mato, capim e folhas que flutuavam sobre as poças d'água. Cuspiu montes de massa barrenta asquerosamente, apoiou as palmas das mãos no chão para tentar se levantar. Contudo, antes que fizesse força, percebeu: aquele barro tinha um gosto estranho, muito mais nojento que o normal. Também tinha um cheiro pior, mais forte, semelhante a odor de animais selvagens. E era exatamente isto; ao olhar para o chão, perplexo, percebeu algo que não tinha visto pelo êxtase da corrida: tiras de couro, pelo, tripas e órgãos mutilados estendiam-se por todo o solo. A lama, mais viscosa que o comum, carregava litros e litros de sangue animal grosso e farto. Não era específico, mas sim um misto de diferentes tipos: coelhos, esquilos, raposas, ursos, pássaros... Havia de tudo.

— Só pode ser ela. — Disse para si mesmo, reganhando energia de supetão num esforço heroico. — Preciso encontrá-la, antes que seja tarde demais!

Talvez numa espécie de milagre, seu olhar fora guiado por entre couros arrancados, peles mastigadas, interiores destroçados e órgãos consumidos até marcas de pegada na lama, preenchidas por poças de água barrosa. Pés pequenos de uma criança, só podia ser quem procurava. Determinado, puxou o arco de suas costas, arrancou uma flecha da aljava e tratou de voltar com a perseguição, mas ordenada desta vez. Seguiu os rastros deixados para trás pela fera desatenta, inerte demais em seus desejos sanguinários. Por onde quer que seguisse, o rastro de morte só se tornava mais e mais aparente, mais e mais marcante, sua veracidade elevando-se acima das nuvens e passando da estratosfera. Flores pisadas, animais estraçalhados, pegadas grosseiras pelo chão, árvores arranhadas por enormes garras de urso. Tinha certeza absoluta que, se aquela coisa já fora uma pessoa algum dia, a essa altura perdera qualquer resquício de humanidade remanescente.

E estava certo, absolutamente correto. Enquanto Bo se aproximava da tribo o mais rápido possível, o espírito fazia a festa a cada passo que realizava. As pessoas fora de casa foram as primeiras a serem dilaceradas; membros como braços e pernas jazendo em fogueiras — algumas queimando, inclusive —, estacas de madeira de cercas, pela grama mesmo ou até em portas de casas. Se fosse um ambiente fechado, tamanha quantidade de sangue derramado já estaria tomando a sala como uma inundação. Berros de horror, medo, tristeza, fúria e todo tipo ressoavam. Crianças fugiam, em vão, para serem agarradas pelas cabeças logo em seguida. Crânios explodindo com o simples apertar das mãos poderosas da menina. Adultos que tentavam proteger seus filhos morriam de formas ainda mais patéticas: palmadas em seus peitos, perfurações profundas ao ponto de retalharem o coração e matar em frações de segundo.

De certo que o receptáculo não escapava ileso: pontas de lanças, flechas, hematomas, cortes e todo tipo de ferimentos novos eram bem demarcados no corpo. Porém, por mais que fosse ferido, nunca parava de caminhar. Uma máquina de matança que só fazia caminhar reto e terminar vidas com requintes de crueldade, nada mais, nada menos. Famílias eram destruídas, membro por membro, causando mortes agonizantes a perturbadoras para cada um. Ninguém conseguiu escapar, nem os que fugiram para a floresta; eventualmente foram pegos, tendo seus estômagos devorados enquanto ainda vivos e plenamente conscientes. As armas grudadas na carne do receptáculo nada faziam além de incitar o ódio em ambos, tanto no espírito quanto na garota. Aumentar sua vontade de lutar, matar, obliterar toda e qualquer existência em seu caminho, até mesmo fora dele.

[...]

Bo chegara a tribo após alguns poucos minutos, a flecha preparada no arco e seus passos rápidos se tornando lentos. De longe, percebeu o silêncio. A quietude mortal que pairava pelo ar. Nada além do som da chuva e do crepitar das chamas de grandes piras imponentes que não se deixavam apagar pela água incessante. O cheiro de carne queimada espalhando-se, mas a visão de braços e pernas carbonizados embrulhava o estômago. Seus pés, ensopados de lama e sangue, lidavam com outra enxurrada do líquido ferroso diluído pela água da chuva. Nenhum som, que não os lentos passos do arqueiro, foram projetados no calar daquela noite infernal. Parecia que todos os habitantes concordaram em dormir mais cedo, ao mesmo tempo, cada um já no mais profundo sono em suas camas. Quem dera fosse isso e não um massacre abominável.

Pulou por cima de corpos e cabeças de amigos, vizinhos, conhecidos e demais mantendo a neutralidade do rosto. A única expressão presente era de cansaço, exaustão, mas a determinação não lhe permitiria parar. Seus olhos focavam em um único ponto específico: sua casa. Precisava chegar nela depressa, arrombar a porta e agarrar-se a suas razões de vida. Protegê-los, nem que tenha que se sacrificar por esse objetivo. Bo não mais ligava para a própria existência, sua preocupação era toda e exclusivamente em sua mulher e filho, a esperança de sucesso queimando feito um incêndio florestal de grande escala no peito. Estavam bem, é claro que estavam. Precisavam estar.

Chegou na residência, saltando contra a porta de ombro para levá-la abaixo. Dito e feito, Bo facilmente derrubou a estrutura de carvalho resistente. Sem perder tempo, acelerou, passando por cada cômodo a procura da mulher e filho. Gritava seus nomes, desesperado, a ansiedade corroendo-o por completo em rápida velocidade. Tudo estava em seu devido lugar, nada desarrumado ou revirado. De primeira, fora um alívio para o homem, que quase se jogou no sofá despreocupado e exausto. Entretanto, a ideia de que algo horrível poderia estar à espreita no próximo cômodo não era nada agradável, não lhe permitia um descanso mental. Então, um a um, checou cada local da casa: sala de estar, banheiro, quarto de Isaac, seu próprio quarto... respectivamente nessa ordem. Não encontrou nada de diferente, nada fora do lugar, cada coisa se encontrava nos perfeitos conformes. Então por último, e mais importante, foi até a cozinha.

Passar pela porta foi como passar pelos portões do inferno. A mesa estava despedaçada no chão, pratos e panelas espatifados por todo canto, gavetas caídas ao contrário entulhando a passagem inteira. E, pior de tudo, um corpo molenga e cadavérico escorado sobre a pia. O balcão da pia, outrora brilhante de tão límpido, agora se encontrava manchado eternamente pela gosma pegajosa e rubra que escorreu por toda sua extensão. O rosto, antes belo e de perfeitas feições, agora achatado e esmigalhado contra a quina pontuda de ferro. Crânio aberto e cabeça rachada, miolos e partes cerebrais escapando para fora. Braços e mãos repletos de mordidas e arranhões, rosto paralisado numa expressão de puro terror. Cabelos loiros ensopados de sangue, perdendo seu brilho natural tão magnífico e especial. Marlene resistira até seu último suspiro, mas não era forte o suficiente para lidar com um monstro. Nos últimos momentos, percebendo seu destino, nada pôde fazer além de aterrorizar-se.

Enfurecimento. Danação. Braveza. Cólera. Ódio sem escalas, desprovido de medida, incomparável. Tanto foi o enraivecimento que Bo, em um urro colossal de dor e repulsão, explodiu em sua fúria incontrolável de um homem que teve o que mais zelava arrancado de si em milésimos. Não mais era um humano, nem arqueiro, muito menos pai, se tornara, assim como a criança, uma mera máquina. Um caçador imbatível que iria até o fim de tudo em busca de sua presa. E foi exatamente que começou a fazer; saindo da casa da mesma forma que entrou, rondou toda a extensão da tribo em questão de meio minuto. Suas pernas pareciam que poderiam partir a cada passo, ou melhor, salto que realizavam. Dos olhos, lágrimas contidas de tristeza jorraram feito cachoeiras implacáveis, mas não se deixara abalar por um simples choro, uma mera lamentação. Seu objetivo era muito mais importante do que seus sentimentos.

Um lampejo em meio ao seu surto o despertou de volta para a realidade, a lembrança de que ainda não perdera tudo que tinha. Havia uma chance de Isaac, seu amado filho, ainda estar vivo. Podia salvá-lo, zelar por ele. Poderia impedir seu trágico destino nas garras daquele ser repugnante que desejava obliterar da face da Terra. Necessitava encontrar o menino, agarrá-lo com as mãos e apertar fortemente para ter certeza que estava vivo, segurá-lo como uma âncora para a realidade, impedindo sua loucura iminente. A perseverança queimando, acendendo a chama da esperança por mais uma última vez, Bo teve outro surto de adrenalina heroico. Um último esforço do corpo moído e destroçado, que lutava bravamente pelo banal sustento de seu peso.

Não teve pensamento diferente que não a escola de Tara. Sabia o quanto seu filho confiava na mulher, tanto que buscaria abrigo com ela. Só podia ser isso, ele deveria estar lá. Não tardou nem sequer um único minuto para chegar a casa móvel, que parecia intacta e intocada. A grama desprovida de sangue ao redor por uns bons trinta metros. Fora um sinal positivo que fez o homem incitar-se ainda mais. Arrombando outra porta, caiu pra dentro da escura e esfumaçada casa. Fumaça branca cobria sua visão como uma cortina de neblina densa, mas exalando um odor extremamente forte e desagradável. Caminhou atrapalhadamente devido à falta de visão, trombando em paredes e tropeçando, por diversas vezes indo ao encontro do chão em um forte impacto.

— Isaac!!! Filho!!! — Berrou aos ventos, chamando pelo pequeno onde quer que estivesse. A voz saiu embargada e chorosa, puro desespero, lágrimas brotando novamente com todo fervor.

— PAI!!! AQUI NA SALA!!! RÁPIDO!!!
— Irrompendo da fumaça fantasmagórica, a voz infantil rasgou a garganta em um grito estridente.

Ouvir a voz do filho foi o suficiente para o homem continuar. Suas forças inexistentes sendo recarregadas, limite ultrapassado há tempos sendo desafiado e testado novamente. Venceu a densa neblina com brutalidade, pulando no meio da sala de estar que servia de sala de aula. Havia sangue pelo chão e, além de Bo, mais três presentes. Um garotinho de rosto redondo, cabelos marrons e olhinhos azuis, seu filho. Rosto totalmente paralisado de pânico e horror, lágrimas descendo sem parar tal qual uma queda d'água. Tara, mas coberta de sangue, caída ao chão sendo dilacerada por aquela... coisa. Por fim, a tal coisa; a menina possuída que, maleficamente, mordiscava e arranhava o rosto alheio vigorosamente, deformando a face de Tara com fervor e êxtase, deliciando-se com o sangue e dor da mulher, que se debatia. Garras enfiando-se por entre a carne, passeando para cima e para baixo, criando trilhas de cortes profundos e desfiguradores. Parava de se debater assim que Bo aparecia, estirada estática. Sua parada brusca fez com que a atenção do receptáculo se voltasse ao novo presente no local.

Os olhares se cruzaram, encarando um ao outro em um embate visual letal. Cada um — mesmo que não convivessem — conhecia o outro muito bem. Mais do que a si mesmos, até. O espírito enxergava pelo olhar destruído na face do homem: tinha tirado tudo dele, ou quase. De todos os pedaços arrancados de si, amigos, conhecidos e família, faltava apenas um. Um pedaço cujo qualquer pessoa que preste daria valor, significado, prioridade extrema. Algo impossível de recuperar, uma perda irreparável, a maior dor que o ser humano poderia sentir e tentar lidar, mas que nunca conseguiria de fato. Uma ferida muito mais profunda que dentes pontiagudos sobre o peito, ou garras destruidoras rasgando o intestino. A maio injúria existente que poderia causar, uma dor emocional incomparável e inigualável: a perda de um filho.

Percebendo a intenção assassina, imediatamente preparou a flecha e soltou o a linha, deixando que viajasse pelo ar até o monstro. Alvejou com precisão exímia o peito da criatura, que recebeu a ponta e encolheu, por poucos segundos, mas então gargalhou em regozijo. Ficou de quatro, as mãos impulsionando o corpo para frente e as pernas, com um pulo, usando o solo de impulso. Começou sua investida desenfreada em direção à criança, boca aberta e língua escapando por entre os dentes pontudos, risada maléfica ecoando pelas paredes e reverberando por toda a sala. Bo, por sua vez, atirava mais e mais flechas, acertando os ombros, cabeça, braços e costas daquele demônio. Não errou sequer um tiro, mas aquela besta não parava por nada, mesmo que sentisse dor. Após mais de dez flechas, percebeu que estava sem munição. Lançou então o arco ao chão, puxou um facão do bolso da calça e, num grito abismal, partiu para cima da criatura.

Ambos, berrando estendidamente de suas própria maneiras, avançavam um contra o outro para um ataque final, um último e letal embate que deveria ter ocorrido oito anos atrás, quando Bo fugiu com medo da presença esmagadora da pequena. E agora, sem mais humanidade alguma, os dois corriam para uma morte certa, um destino predeterminado porém impossível de adivinhar. Já estavam a poucos metros de Isaac, a besta erguendo as garras enquanto o homem a lâmina, ambos levantando o máximo que podiam para o último ataque. Enfim, ele chegou, anunciado pelo som de carne sendo cortada, partida, vencida facilmente por alguma ponta inquebrável. Um ganido doloroso de voz infantil denunciou o vitorioso: Bo.

De olhos fechados para o golpe, respirava fundo exausto, tentando se  recompor. Sentiu o sangue escorrendo do facão para sua mão, aliviando-se com a parada brusca. Permaneceria ali, pensativo, sem coragem de olhar para o ato que cometera durante um longuíssimo tempo, não fosse uma voz tão conhecida, fraquinha, que apertou seu coração.

— Pa... pai ... — Num sussurro, contraindo-se de dor, Isaac disse.

Olhou para baixo e viu, aterrorizado, o que fizera: acertou Isaac, o próprio filho, no meio do pescoço. A lâmina afundada com tudo, quase decepando a cabeça do pequeno. O receptáculo, atrás dele, sorria como quem teve o plano realizado com sucesso. Bo pôde ver as garras encravadas nas costas de Isaac, e a menina, que antes tinha uma postura de ataque, agora possuía um quê de defesa. Percebeu, pela forma que se escondia atrás do menino, usando-o de cobertura. Não planejava matá-lo, nunca fizera; apenas queria que o homem pensasse isso, para então, usar o garoto de escudo e fazer o próprio pai matá-lo de forma brutal.

Um estalido soou pela mente de Bo, foi o som de sua estabilidade mental, seu último fio de sanidade, rompendo-se. Nem ao menos foi capaz de segurar Isaac nos braços, ampará-lo em seus últimos momentos de vida. Ao invés disso, limitou-se a observar, com olhos vazios e distantes, o garoto sufocar no próprio sangue a seus pés. A visão escureceu, a audição se tornou longínqua, os risos e rugidos malignos do espírito sumindo na vastidão da falta de percepção. As consequências da quebra de seus limites vieram todas de uma vez em um turbilhão, os músculos cedendo ao peso do corpo e adormecendo, fazendo-o cair de joelhos. As lágrimas, antes retidas, agora desciam sem parar, mas o rosto permanecia igual: morto e vazio, neutro e inexpressivo feito um cadáver.

Ainda que estivesse em sua linha de visão, não enxergou quando o monstro se aproximou, em passos lentos e psicopatas. Muito menos quando, subitamente, caiu de cara no chão em um tombo estrondoso e inexplicável. Por trás do receptáculo, revelava-se Tara, seu rosto totalmente desfigurado e mutilado, nunca mais teria as mesmas feições. Um olho fora furado, cegado de maneira dolorosa. Por toda a face, enfim, arranhões profundos que deixariam cicatrizes enormes se espelhavam, além de partes onde a carne e os ossos foram levemente devorados, mudando o formato do rosto para todo sempre. Nas mãos da mulher, cartas embaralhadas entre os dedos. Algumas cravadas sobre as costas da criança, responsáveis por derrubá-la.

[...]

Caminhou por entre as áreas mais abertas daquela mata, finalmente sentindo que estava começando a chegar perto de alguma saída da gigantesca floresta pela qual viveu a vida inteira cercado. Em seus braços, o corpo mutilado e destruído da ruiva possuída, que dormia tranquilamente desde que Tara havia a apagado. Tentou, mais de uma vez, matá-la. Mas não teve coragem, não conseguiu de forma alguma. Sentia que, qualquer coisa que tentasse, acordaria aquele monstro e tudo se repetiria de novo. A única coisa que lhe vinha à cabeça era as visões de sua esposa e filho mortos, massacrados. O simples pensamento o fazia fraquejar, desistir, cair de joelhos de cabeça baixa, derrotado.

Encontrou, enfim, uma grande caverna. Imensa, gigantesca, estendendo-se infinitamente para dentro numa escuridão colossal. Adentrou-a, cortando a escuridão que o envolvia como o aperto de uma píton negra. Largou a criança no meio das pedras, virando as costas e marchando sem olhar para trás. Largou seu passado ali para morrer na escuridão e umidade.


Notas Finais


Comenta o que achou, mesmo papo da outra vez e bla bla bla. Enfim, você que chegou até aqui, muito obrigado mesmo. Eu sei que vai ter gente que só desistirá pelo tamanho do capitulo, mas tudo bem. Espero que tenha curtido. Nos vemos novamente em 2 dias.


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