- Ah! - Gritei em desespero, abrindo os olhos abrupta e fortemente, arfando sem controlo e sentindo um calafrio percorrer-me cada vértebra do corpo.
Ergui as costas com força de modo a manter-me sentada e cravei as unhas nos lençóis da cama, enquanto fixava o olhar assustado na escuridão do meu quarto. Eu não era capaz de controlar a minha respiração descompassada e veloz, sentia a minha boca seca e o rosto molhado. Dei conta de que acordara a chorar, uma vez que detinha os olhos marejados e as lágrimas cediam sem permissão. Acabara de ter um pesadelo horrível e temeroso, pelo que os meus batimentos estavam demasiado acelerados e fortes. Senti-me fraca, sensível, como se um muro de pedra houvesse desabado sobre mim. Relaxei um pouco os dedos e levei as mãos até ao meu rosto, cobrindo-se parcialmente e começando a soluçar.
Reparei de que me encontrava na cama, com um pano frio sobre a minha testa, que, assim que erguera as minhas costas, ele caíra no meu colo. Arqueei uma sobrancelha e semicerrei um pouco os olhos, enquanto descaía com as mãos em direção ao pano molhado. Recordei-me de que havia perdido a consciência quando adentrei no meu quarto com Yumi e o trancara para que Jude não nos pudesse atacar. No entanto, Yumi não se encontrava presente no local, pelo que concluí que, possivelmente tivessem passado algumas horas após eu ter desmaiado. Rodei um pouco a cabeça para o lado, visualizando o meu relógio digital, que se encontrava sobre a minha mesinha de cabeceira. Marcava 3:46 no pequeno aparelho, com a cor vermelha para que se pudesse observar durante a noite.
Tudo ao meu redor parecia um abismo infinito, sombrio e doloroso, do qual eu somente me afundava a cada passo que avançava. Sentia-me incapaz de combater todo aquele sofrimento e angústia que me assolavam. Sentia-me morta interiormente por não ser capaz de solucionar os meus problemas. A culpa era minha. Inteiramente minha. O facto de Yumi sofrer devido a Jude era responsabilidade minha, uma vez que eu não possuía coragem nem meios suficientes para fugir daquela mansão com a minha empregada. Tinha medo que, se eu me atrevesse a enfrentar Jude, Yumi sofresse também. Eu não era forte, era sensível demais. Não suportava todos aqueles pesadelos que se seguiam noite após noite, todas as violações físicas e verbais, todo o sangue derramado por não ser suficiente para que Jude me amasse como sua filha. Isso destruía-me por dentro, não entender a razão pelo qual sempre lhe fora odiada, por sempre lhe ter sido o alvo da sua raiva. Eu não possuía forças suficientes para suportar cada dia mais difícil que o anterior, incluindo cada insinuação, acusação e insulto por parte de Natsu e dos restantes, por cada agressão cometida da sua parte. Poder-se-ia afirmar que o meu limite ansiava perto, vagaroso mas próximo. Necessitava de descarregar toda a minha tristeza e dor em mim, pois era eu a verdadeira culpada de tudo.
Limpei as lágrimas cautelosamente, passando o dedo indicador de cada mão por debaixo do meu olho. Inspirei profundamente e expirei durante longos segundos. Lancei uma das minhas mãos dentro de um bolso das minhas calças do uniforme, retirando o meu telemóvel, protegido por uma capa preta, agarrando-o firme e forçosamente, pensando nos meus futuros atos. Assenti com a cabeça em confirmação quanto ao que eu iria fazer, deixando ceder uma lágrima, que deslizou por toda a superfície da minha face até cair sobre os lençóis da minha cama. Cravei duas unhas no local de encaixe da capa, retirando-a cuidadosamente. Os meus dedos estavam trémulos, eu estava nervosa e com algum receio. De dentro da capa deslizou um pequeno objeto de metal cortante, que reluziu com a luz que a lua emanava naquela noite escura. Era a minha lâmina. O meu ponto de refúgio quando a dor era insuportável e a solidão um precipício sem retorno. Ela descaiu sobre a palma da minha mão e eu fechei a mesma com força. Coloquei o meu telemóvel e a respetiva capa novamente dentro do meu bolso. Com alguns dedos, puxei a manga esquerda do meu pijama para cima, visualizando as minhas ligaduras, que cobriam parte do meu pulso, no local das queimaduras. Acima delas encontravam-se outras ligaduras. Essas cobriam nada mais nada menos que os meus cortes. Levei alguns dedos até à ponta das ligaduras e comecei a desenrolá-las, dando voltas ao meu braço. Assim que as retirei, observei as cicatrizes que se presenciavam na minha pele. Cortes feitos há mais de uma semana, contudo, demasiado profundos para cicatrizarem rapidamente. Soltei um suspiro pesaroso e mordi o lábio inferior, relembrando-me dos motivos pelos quais me havia cortado. Todos aqueles sentimentos me corroíam por dentro, como espadas que corrompiam o que restava da minha sanidade. Não era capaz de suportar por muito mais tempo, por isso agarrei na lâmina com firmeza, encaminhando a mesma em direção à minha pele cortada. Os meus dedos vacilavam e a lâmina escapava-se-me por entre eles. Ainda permanecia escuro, o que significava que ainda era de madrugada, pelo que detinha tempo para manusear a lâmina as vezes que pretendesse. Deixei que uma lágrima escorregasse e respirei profundamente, pousando a lâmina sobre o meu pulso, no espaço que havia por entre alguns cortes. Fiz deslizá-la sobre toda a superfície da pele, mordendo o lábio inferior para tentar controlar os gemidos de dor. Desenhei uma linha funda de sangue, que escorria pelo meu braço e descaía em gotas sobre o meu pijama. Após o corte soltei um suspiro de alívio, deixando cair os braços e inclinei a cabeça para trás, sentindo a endorfina atuar por todo o meu corpo. Era o meu meio de aliviar a dor psicológica, provocando uma física. Sentia o meu pulso arder brutalmente, no entanto, eu necessitava de mais. Posicionei o meu pulso novamente, colocando-se diante dos meus olhos. Ergui a outra mão e suportei a lâmina com firmeza, encaminhando-a na direção do meu braço e pousando-a sobre ele, pronta para desferir outro golpe. Sentia-me culpada por recorrer àquele meio, por desabar quando a dor não era suportável. Sentia-me fraca por não conseguir lutar por muito tempo, por ser a causa de todas as desgraças. Eu somente pretendia desaparecer do mundo, pois nada mais parecia deter sentido na minha vida e minha mente torturava-me incessantemente. Eu já praticava a automutilação há algum tempo, alguns meses, contudo, eu tentava, dia após dia, suportar a dor que detinha dentro de mim. Erza desconhecia tal facto e eu pretendia que ela continuasse a desconhecer. Os problemas pertenciam-me, pelo que cortar-me era um modo de me castigar por não ser capaz de os solucionar. E isso resultava em raiva de mim própria. Eu odiava-me inteiramente.
- Perdoe-me, mãe, por ser tão fraca... - Murmurei num tom embargado, enquanto deslizavam lágrimas pelo meu rosto.
Mordi o lábio inferior com força e prensei a lâmina contra a pele do meu pulso, fazendo-a deslizar velozmente e abrindo um corte um tanto profundo. Soltei um gemido contido de dor e sofrimento, enquanto visualizava a lâmina manchado de sangue e o meu pulso rasgado. Fechei os olhos vagarosamente e a endorfina invadiu toda a minha sobriedade, enquanto eu, mais uma vez, suspirava de alívio e fazia descair os meus braços sobre a cama num modo abrupto e forte. O ardor permanecia presente, acompanhado do sangue que deslizava pelo meu pulso. Aquela dor aliviava a mágoa que eu sentia, porém, era ser cobarde, fraca. Eu odiava ter de o fazer, contudo, fora o meio que eu encontrara para dissipar um pouco a dor.
Decidi levantar-me. Com a mão esquerda empurrei os lençóis para trás, de modo a que eu detivesse passagem para sair da cama. Desloquei lateralmente as pernas e pousei os pés sobre o chão e, com ambas as mãos, impulsionei com força o meu corpo verticalmente, para que me mantivesse levantada. Senti os meus dedos molhados de sangue, enquanto caminhava em direção à minha casa de banho.
As lágrimas não pretendiam tréguas de modo algum, tal como o ardor que eu sentia no meu pulso esquerdo. Eu merecia ser castigada daquela maneira, merecia sofrer por ser tão fraca, tão impotente ao ponto de me refugiar com lâminas. Que diria Erza se o soubesse? Que uma pessoa tão fria e reservada como eu fingia ser forte e corajosa para quando se encontrasse sozinha desabar em lágrimas e cortar-se? Provavelmente di-lo-ia, pois era essa pessoa que eu era. Fraca, idiota, cobarde, substituível, imprestável. Todos os bons nomes que os outros me definiam eram somente mentiras de bom crédito, nada mais do que boas mentiras.
A porta da casa de banho encontrava-se aberta, pelo que rapidamente adentrei, liguei a luz e me dirigi ao lavatório. Desci um pouco o rosto, observando o estado em que se encontrava o meu uniforme. Estava todo ensanguentado e rasgado no local do ferimento no ombro esquerdo. Suspirei pesadamente, enquanto o meu choro cessava vagarosamente. Estendi o meu braço direito e abri a torneira, deixando a água fria correr a meia abertura. Coloquei o pulso debaixo de água, sentido o repuxo mergulhar por entre os cortes e repuxar a pele, limpando o sangue num ato feroz e provocando um certo ardor. Rangi os dentes com robustez e gemi baixo, enquanto apertava o meu braço com a mão direita, tentando amenizar a dor que sentia naquele momento. Analisava o sangue que insistia em escorrer e deslizar pela minha pele, misturando-se com as gotículas de água, que lhe dava aquele tom mais suave e leve. Decidi esfregar os cortes, uma vez que me encontrava enraivecida comigo mesma, fazendo com que resultasse em maior mágoa e maior quantidade de sangue, pois acabara por os abrir mais.
- Ugh… - Sussurrei em protesto, enquanto mordia o meu lábio inferior e comprimia um dos meus olhos, sentindo a ardência por todo o meu corpo.
Acabei por fechar a torneira, deixando o lavatório um pouco sujo de sangue ainda. Encolhi os ombros e não me importei com tal, no entanto, os ferimentos ainda não haviam estancado, pelo que rapidamente os cobri com a minha mão. Caminhei calmamente em direção à banheira, abrindo a torneira num movimento vagaroso e cobri o ralo com uma pequena tampa de borracha preta presa por uma corrente metálica. Observei a água deslizar límpida e suave, como se de um manto de neve se tratasse. Enquanto a banheira se enchia de água, dirigi-me novamente para perto do lavatório, pousando ambas as mãos sobre ele e inclinando-me um tanto para diante, analisando o adesivo que eu detinha na bochecha, resultado de uma das chicoteadas de Jude. Remexi os lábios aleatoriamente e observei o meu estado. Detinha ligaduras no corpo, cortes profundos em diversas áreas e encontrava-me coberta de sangue. A minha roupa apresentava-se horrivelmente deplorável; rasgada numa das mangas e ensanguentado. Soltei um suspiro pesado e comecei a retirar as ligaduras do meu pescoço. Desenrolei-as cuidadosamente, circundando o meu pescoço e baixando ou levantando a cabeça conforme o movimento. O ardor que sentia era suportável, embora o que eu observava se considerasse horrendo. A pele encontrava-se ainda bastante vermelha e com algumas superfícies negras, queimadas. Algumas partes da epiderme estava a descair, eliminando as células mortas para que novas pudessem crescer. Assim que retirara toda a ligadura, estiquei-a solenemente no alto, visualizando algumas marcas de sangue que preenchiam algumas porções do tecido. Apressadamente a lancei para o lavatório, abrindo a torneira ao máximo e observando as gotas de águas fortes e bruscas embaterem contra a faixa suja, que se contorcia com cada baque que a pressão de água exercia sobre ela. Em alguns segundos as marcas foram lavadas, deslizando cautelosamente até ao ralo do lavatório, deixando a ligadura limpa e molhada. Retornei a agarrar nela e, com ambas as mãos, torcia com brusquidão e robustez, fazendo escorrer parte da água em excesso, que a faixa havia absorvido. Coloquei-a, em seguida, em redor da torneira, fazendo com que alguns pingos escorregassem com rumo ao lavatório. Sacudi as minhas mãos violenta e ferozmente, fazendo pingar o sangue que nelas se encontrava. Baixei, seguidamente, os braços e agarrei na dobra da camisola branca do uniforme, cruzando as mãos e puxando-as para cima. Gemi baixo de dor, uma vez que o ferimento do meu ombro esquerdo se retraiu. Retirei a camisola cautelosamente, atravessando-a pelo meu pescoço e atirei-a contra o chão, deixando-a desorganizada e vincada. Encontrava-me somente com a t-shirt oficial da Academia, era azul forte, um pouco comprida e larga e com o símbolo de uma fada com uma cauda no lado esquerdo, junto ao peito. Também manchada de sangue estava, pelo que a retirei rapidamente e a lancei ao chão, sobre a camisola do uniforme. Observei-me no espelho diante de mim e analisei o meu corpo. Estava pálido e magro, pois eram notórias algumas costelas e os meus collar bones eram bem nítidos e cavados. Rasguei aquele silêncio com um profundo suspiro, enquanto fechava os olhos vagarosamente e me escapava mais uma lágrima, que deslizava fraca pela minha face.
Pensava em quando era pequena, criativa e um tanto feliz. Eu costumava imaginar facilmente diversos futuros e sonhos para mim, acreditando que um dia mais tarde se pudesse concretizar. Um deles era ser amada verdadeiramente por alguém que não se importasse de ser como eu era, que não me mudasse, porém que me completasse. Esbocei um sorriso debochado e irónico, concordando de que tais desejos não passavam disso mesmo: desejos.
Levei as minhas mãos pálidas em direção à cintura das minhas calças largas, empurrando-as para baixo num movimento vagaroso, enquanto observava as minhas pernas esguias e magras. Eu não comia adequadamente, normalmente só comia uma vez por dia; ao almoço, para que ninguém desconfiasse de que eu não comia nada. Na realidade, eu não detinha muita fome, como se o meu estômago se encontrasse sempre cheio, mesmo eu não me tendo alimentado. No entanto, eu tinha uma obsessão por um corpo perfeito, esbelto, esguio, admirável, pelo que eu lutava por alcançar os meus 40kg. Poder-se-ia que sofria de distúrbios alimentares, uma vez que também me recusava a comer muitas vezes. Eu detinha tal ambição há dois anos, quando algumas raparigas da minha turma eram mais magras e bonitas que eu, possuindo um belo e definido corpo. Eu acabei por desejar aquele corpo, pensando que me faria mais bonita e pudesse ser amada. No início daquela luta, eu tentava provocar o vómito, no intuito de expulsar tudo o que comia, todavia, eu não era capaz de vomitar. Não entendia o motivo. Eu colocava dois dedos dentro da minha boca e pressionava-os forçosamente ao longo da minha língua, dando-me aqueles impulsos de retração, porém, nada do que comia era expulso. Tentei diversas vezes, passando vários minutos dentro do compartimento apertado da casa de banho e esperando conseguir vomitar após a refeição. Acabei por desistir da hipótese, pelo que optei por deixar de comer. Referia que não detinha fome alguma ou que já havia comido antes, no âmbito de perder peso e alcançar o meu corpo ideal. Naquele ano eu pesava mais de 50kg, as minhas coxas eram bastante gordas e tocavam-se quando eu caminhava, incomodando-me um pouco. Ao longo de dois anos fui perdendo alguns quilos e ganhando outros, pesando naquele momento 44kg. Como eu media um metro e sessenta e três centímetros, convencia-me decididamente de que o meu peso ideal seria, definitivamente, os 40kg. Desci totalmente as calças e retirei, cuidadosamente um pé, erguendo o joelho calmamente, enquanto a bota se desprendia da costura do tecido branco. Retirei, seguidamente, o outro pé e pousei-o, solenemente paralelo ao direito, enquanto eu erguia as calças diante dos meus olhos e colocava uma das mãos dentro de um dos bolsos. Alcancei os meus fones de cor preta e o meu telemóvel, agarrando-os firmemente e encaminhando-os para o lavatório, pousando-os sobre o mesmo. Retornei a minha mão para as minhas calças, pousando-o sobre a fivela do cinto não muito apertado e que deslizava facilmente pelas minhas ancas, e levei alguns dos dedos para a argola que prendia as minhas chaves. Desprendi-a rapidamente do cinto das calças e estendi a mão devagar, na direção do meu telemóvel, colocando-as ao seu lado. Atirei as calças para juntos dos outros pertences e, em seguida, fui desapertando as botas, colocando ambas as mãos em cada fecho dos sapatos. Puxei-o para baixo, abrindo as botas pretas e retirei ambos os pés de cada vez, permanecendo somente de roupa íntima.
Analisei-me no vidro refletor, visualizando a minha magreza. As minhas ancas encontravam-se bem definidas, notando-se os ossos que suportavam a bacia. Por muito magra que me encontrasse, para mim, não se considerava o suficiente. Eu necessitava de perder mais peso, não encontrava conformada com somente 44kg. Pelo menos, teria de perder mais 4kg. Decidi rodopiar o meu corpo, rodando sobre os calcanhares e virando-me de costas para o espelho. Rodei o rosto calmamente para o espelho, observando um caos horrendo. Os meus olhos rapidamente se conformaram com lágrimas; mais uma das razões pelo qual eu detestava expor o meu corpo. Comprimi os olhos com força, recusando-me a observar novamente aquela imagem.
Ergui a mão esquerda na direção do rosto, secando as lágrimas com dois dedos e deixando a minha pele molhada com água salgada. Inspirei fortemente, inalando uma enorme quantidade de ar, e expeli bruscamente, tentando acalmar-me. Retirei as restantes peças de roupa, recusando-me observar no espelho, pois eu sentia-me horrível e feia se me visualizasse. Encontrava-me completamente nua, embora ainda permanecesse com algumas ligaduras. Ergui ambas as mãos na direção da ligadura que circundava o meu ombro esquerdo, desenrolando-a cuidadosa e cautelosamente, enquanto me contorcia de alguma dor. Algum sangue molhava parte da ligadura, pois o corte fora desferido abaixo dos tecidos. Abanei um pouco suavemente e atirei-as, apressadamente na direção do lavatório. Avancei para as restantes faixas, começando pelo pulso esquerdo, uma vez que elas estavam machadas de sangue devidos aos cortes que fizera há pouco. Fui retirando cuidadosamente, observando cada circulo que eu fazia em redor do pulso. Novamente, lancei a ligadura para o lavatório, visualizando-a embater contra a outra, provocando um impulso vertical. Restava apenas uma faixa branca, que rapidamente a retirei, fazendo movimentos bruscos e fortes, não me importando com a dor que sentia. Atirei-a na direção das duas ligaduras ensanguentadas, formando uma pequena aglomeração de tecidos. Levei a minha mão direita na direção da torneira, puxando uma pequena corrente de metal brilhante, que reluzia com a luz que a casa de banho emanava de uma lampa incandescente. Na ponta da corrente, encontrava-se uma pequena tampa preta arredondada, equivalente à que se localizava na banheira. Coloquei-a no ralo, de modo a cobri-lo para que a água não trespassasse para fora do lavatório. Prensei com força e assegurei-me antecipadamente de que estava bem presa. Abri a torneira no máximo, observando os esguichos incontroláveis que a água criava ao cair daquele objeto. Rapidamente, o lavatório tornou-se cheio de água, deixando as ligaduras de molho, enquanto o sangue se dissipava e se esvaía dos tecidos, tal como qualquer sujidade que habitasse também. Agarrei no adesivo que possuía no rosto, que cobria o meu corte, e retirei-o rapidamente, colocando-o num pequeno cesto do lixo. Fechei a torneira com cuidado e virei o corpo, abruptamente na direção da banheira, enxergando-a com água quase até ao topo. Antes que transbordasse, levei uma das mãos à torneira e também a fechei, olhando para toda aquela imensidão de água que ainda se movimentava solenemente. Debrucei-me sobre a banheira e observei o meu reflexo na água límpida, que distorcia um pouco o meu rosto, o que o tornava ainda mais real e verdadeiro, pois eu era distorcida. A minha própria vida era distorcida.
Suspirei pesarosa e forçosamente, enquanto reparava nas minhas olheiras bem marcadas por debaixo dos meus olhos ainda marejados, que retratavam o meu rosto como algo sem vida, sem felicidade; algo morto. Aparentava estar doente, uma vez que os meus olhos encontravam-se um tanto cavados na minha face pálida, circundados por olheiras profundas de cansaço e lágrimas de uma incompreensão suicida. Talvez fosse somente fruto da minha imaginação, uma vez que ninguém comentara acerca do meu estado físico, a não ser o habitual; o uniforme deveras comprido e largo. Fechei os olhos vagarosamente, sentindo uma ânsia enorme apoderar-se de mim, como se me sentisse enjoada. E sentia-me. Aquele cheiro a álcool e a tabaco ainda se mantinha presente, mesmo que o álcool não me incomodasse muito, o tabaco transformara-se numa agonia. Como não possuía nada no estômago, não tinha como vomitar, mesmo estando enjoada não havia nada que pudesse ser vomitado.
Levantei-me com esforço, apoiando ambas as mãos na borda da banheira e erguendo as pernas fracas que eu possuía. Caminhei em direção ao lavatório e agarrei nos fones e no telemóvel. Rapidamente os meus orbes achocolatados se focaram no objeto cortante que se encontrava desarrumado. Lancei-lhe a minha mão esquerda e encaminhei-o para junto de mim. Com alguma dificuldade, cravei as unhas no local de encaixe da capa do telemóvel e retirei-a brutalmente, fazendo-a quase escorregar das minhas mãos. Coloquei a minha lâmina na parte de dentro da capa negra e retornei-a a encaixar no aparelho, escutando-se um leve e surdo baque. Em seguida, procurei pela ponta de conexão dos meus fones e coloquei-os na abertura respetiva. Pressionei o botão de ligar do meu telemóvel e descodifiquei-o, acedendo, depois, às músicas. Cliquei na audição aleatória, deligando o ecrã do aparelho e levando ambos os fones aos ouvidos, deixando que somente a música me escutasse naquele momento de angústia. Pousei o telemóvel sobre uma bancada pequena que se encontrava na banheira, junto à torneira e decidi adentrar. Ergui uma perna de cada vez, apreciando a água quente que inundava e percorria cada nervo do meu corpo, oferecendo-me um momento de relaxamento. Sentei-me na banheira suavemente e agarrei numa pequena garrafa de sais de banho. Girei rapidamente a tampa arrozada, retirando-a e apreciando o cheiro a baunilha que o recipiente emanava deliciosamente. Inclinei-o um pouco, deixando diversos flocos descair sobre a água e provocar aquele efeito consequente. Fechei o pequeno frasco e coloquei-o no devido local, deslizando o corpo para baixo e quase me enterrando na espuma que se alastrava fortemente. Havia começado a tocar música, enquanto eu me perdia nos meus devaneios mais obscuros e horrendos. Para meu azar, começou a tocar a música My Heart Is Broken de Evanescence. Aquela música descrevia-me por completo, cada palavra representava uma lágrima, uma mágoa, uma recordação. Elevei as minhas mãos vagarosamente, enquanto todos os meus ferimentos ardiam compulsivamente e a água já não detinha aquela transparência límpida; encontrava-se um pouco avermelhada, dissipada pelo sangue que ainda escorria do meu pulso, quase estancado. Cobri o rosto com as palmas das mãos e derrubei as lágrimas que embaçavam a minha visão.
I will wander till the end of time
Torn away from you
I pulled away to face the pain
I close my eyes and drift away
Over the fear
That I will never find a way
To heal my soul
And I will wander till the end of time
Torn away from you
Sentia-me pesada, como se de chumbo se tratasse. As lágrimas corrompiam qualquer silêncio que insistisse em manter-se presente. Chorar sozinha tornara-se um pequeno hábito quotidiano, pensar em formas de suicídio representava o meu desespero em pretender matar a minha dor, nada mais marcava sentido na minha vida. Eu somente queria sair dali…
My heart is broken
Sweet sleep, my dark angel
Deliver us from sorrow’s hold
Over my heart, heart
I can’t go on living this way
But I can’t go back the way I came
Chained of this fear
That I will never find the way
To heal my soul
And I will wander till the end of time
Half alive without you
O meu corpo ardia ferozmente, como se pretendesse torturar-me cruelmente por ser uma pessoa tão negativa e azarenta como era. Eu soluçava de ansiedade, de medo, de pavor, de raiva e de melancolia. Tentava descarregar um pouco do que sentia nas lágrimas incessantes, porém, não parecia resultar. Não queria voltar a cortar-me, pois acabara de o fazer. Decidi retirar os fones do telemóvel, atirando-os para fora da banheira com alguma agressividade. A música continuava a tocar, pelo que rapidamente me apressei a mergulhar a cabeça dentro de água. Não pretendia regressar tão cedo, talvez se conseguisse alcançar a inconsciência e morresse naquele local, sob a água manchada com o meu sangue. Fui soltando algumas bolhas de ar, observando-as erguer-se para fora de água. Eu estava a perder oxigénio.
My heart is broken
Sweet sleep, my dark angel
Deliver us
Change
Open your eyes to the light
I denied it all so long, oh so long
Say goodbye, goodbye!
Não conseguia suportar mais tempo debaixo de água, porém, eu merecia sofrer daquela maneira. Fechei os olhos com força e tentei relaxar, mesmo com o pouco ar que me restava. Conseguia escutar a música abafada e amargada pela água, enquanto eu me mantinha sob esta, tentando alcançar a inconsciência. Eu não suportava mais aquele sofrimento. O meu pulso ardia vorazmente, como que afirmando que o passado é bastante real e o presente uma mágoa acorrentada por ele. Eu pretendia morrer ali, naquele momento, naquele segundo.
My heart is broken
Release me, I can’t hold on
Deliver us
My heart is broken
Sweet sleep, my dark angel
Deliver us
My heart is broken
Sweet sleep, my dark angel
Deliver us from sorrow’s hold.
Senti uma leve tontura, começando a perder a noção do que me estava a acontecer. Encontrava-me perto da inconsciência. Mais um pouco para acabar com tudo, somente mais um pouco. Não estava a conseguir suportar a falta de ar, mesmo começando a sentir-me atordoada. Abanei a cabeça negativamente dentro de água, negando a possibilidade de me erguer e respirar, no entanto, eu necessitava de oxigénio, por mais que eu não o pretendesse. Expus as minhas mãos em ambas as bordas da banheira, agarrando-as forçada e firmemente, enquanto impulsionava o corpo para cima. Rapidamente alcancei a superfície e abri a boca em desespero, engolindo um pouco de água e inalando a maior quantidade de ar que pude. Tossi bruscamente por alguns minutos, sentindo-me fraca e debilitada. O meu coração ardia compulsiva e descoordenadamente, batendo com robustez e urgência. Eu arfava longamente, agarrada à banheira. Água deslizava pelo meu rosto, misturando-se com as minhas lágrimas e disfarçando a minha mágoa. Eu sabia que não conseguiria alcançar a inconsciência, pois o instinto humano obrigá-lo-ia a regressar à superfície, porém, preferi tentar para responder às minhas dúvidas. Não fora capaz de me manter sob a água e sentia-me fraca por isso.
A água da banheira encontrava-se um tanto ensanguentada, pelo que apressadamente retirei a tampa de borracha, deixando escapar a sujidade, enquanto observava a minha pele arrepiada pelo frio de outubro. A água fora desaparecendo pelo ralo, descendo pelo meu corpo e provocando um certo incómodo. Assim que a banheira ficou vazia, retornei a colocar a pequena tampa preta, cobrindo o ralo circundado de leves porções de espuma. Ergui a minha mão direita na direção da torneira, abrindo-a no máximo e fazendo com que a água quente embatesse contra as minhas pernas magras.
- És uma louca, Lucy. Uma louca. – Murmurei profundamente, fechando os olhos devagar e soltando um leve e impetuoso suspiro.
Rapidamente me recostei para trás, sentindo as minhas costas embaterem contra a parede da banheira. Deslizei para baixo o meu corpo, permanecendo somente com parte do rosto fora de água, enquanto sentia toda a fervura entrar em contacto com a minha pele. Os meus músculos permitiram-se relaxar, acompanhados de alguns minutos de dor que ecoaram bruscamente do meu pulso.
Permaneci alguns minutos naquele leito quente, perdida nos meus devaneios mais íntimos e profundos. Decidi abrir o ralo novamente, deixando escapar toda a água por entre ele. Pequenos arrepios de frios se fizeram sentir na minha pele enregelada, enquanto me levantava vagarosamente. Coloquei a pequena tampa de borracha junto à torneira, enquanto saltava da banheira e pousava os pés sobre um tapete macio. Bati contra ele algumas vezes, enquanto lançava a minha mão direita na direção da tolha, abrindo-a ao comprido e me enrolando abruptamente nela devido ao frio que sentia. Tremia entre lágrimas, enquanto me secava depressa e me deslocava na direção do meu lavatório. Mais uma vez me observei no espelho, que refletia a imagem de uma garota magra, pálida, repleta de olheiras e cicatrizes, lágrimas que inundavam o seu rosto cavado pelas mágoas de um passado tão presente que se manifestava como que querendo também pertencer ao futuro. Levei uma das minhas mãos ao rosto, deslizando solenemente pela minha pele e sentindo a frieza que este portava. Direcionei o olhar sobre as minhas queimaduras ainda bastante recentes. Senti uma enorme repulsa por tal ter ficado marcado na minha pele como uma impotência por não ter impedido tal feito.
Decidi cobri-los com novas ligaduras. Lancei a minha mão na direção do armário branco que se encontrava por cima do lavatório e abri uma das suas portas. Remexi em alguns medicamentos e produtos de higiene e, por fim encontrei algumas ligaduras limpas. Agarrei-as rapidamente e coloquei-as em cima do balcão, junto à torneira. Desenrolei uma faixa e abanei-a bruscamente, para que ficasse totalmente na posição vertical. Levei-a até ao meu pulso e comecei a enrolá-la em torno do mesmo, apertando com firmeza sobre o cortes e manchando um pouco a ligadura. Prendi a ponta da faixa branca numa das voltas e algumas manchas vermelhas transpareceram por entre os tecidos, no entanto, não eram suficientemente visíveis ao longe. Agarrei noutra faixa limpa para cobrir a zona do pescoço, uma vez que detinha as ligaduras antigas rasgadas devido ao corte da faca. Por pouco não havia cortado a pele queimada, no entanto, ainda ardia por somente ter sentido a lâmina tocar. Levei dois dedos da minha mão direito em direção ao pescoço e pousei-os suavemente sobre as ligaduras. Contraí-me de dor e inspirei bruscamente, quase me engasgando com a minha própria saliva. Deixei permanecer as restantes ligaduras junto à troneira, pois quando amanhecesse teria de trocar as que cobriam as outras queimaduras.
Observei a lâmina sangrenta do lado oposto do balcão e lancei-lhe uma das mãos, agarrando-a com força, sentindo a superfície cortante contra a minha pele. Abri um pouco a torneira e esfreguei bruscamente a lâmina contra a água, pois o sangue já havia secado e era difícil de retirar. Assim que acabara de a limpar, fechei a torneira e abanei as mãos, tentando retirar o excesso de água que detinham. Sequei-as na toalha de algodão que se posicionava sobre um ferro, do meu lado direito. Deixei que as minhas mãos ficassem um pouco húmidas e abri a esquerda, enxergando o objeto cortante diante dos meus olhos. Surgiu novamente uma vontade inexplicável de desabar em lágrimas e os meus orbes tronaram-se turvos e repletos de água salgada, que ansiava por deslizar pela minha face alva e pálida.
Inúmeros pensamentos invadiram a minha mente como meteoros numa noite de agosto, onde uma chuva de meteoritos inundava o céu escuro de uma noite tenebrosa e fria em Fiore. Sentia-me um completo monstro por ter desabado, por não ter sido capaz de suportar a realidade, por mais dura que ela parecesse ser. Embora eu tivesse aliviado um pouco a dor que me assolava, a culpa ainda se mantinha presente. No que eu me tornara? O que eu havia cometido para ter de lutar contra mim própria todos os dias? Sem dúvida de que se resumia a uma batalha contra mim própria, à qual eu sempre perdia, por mais armas que adquirisse, por maior estratégia que arranjasse, por mais inteligente ou esperta que me tornasse. Eu sempre perdia… Tornara-se num jogo ao qual eu conhecia o vencedor e o perdedor, e o vencedor era a minha lâmina. Esbocei um sorriso irónico e debochado com o meu pensamento. Irónico como um pequeno objeto conseguia derrotar um humano, não é verdade? O quão irónico essa situação me parecia. Todavia, era a realidade, e os cortes encontravam-se presentes para o provar. Meses de luta, de cicatrizes, de cortes, de lágrimas, de mágoas, de tristezas e melancolias, de depressão, de comportamentos falsos, de mentiras e segredos. Como a minha vida era uma perfeita mentira que ainda ninguém fora capaz de descobrir… Contudo, quem entenderia? Quem entenderia uma rapariga depressiva e que se corta? Que finge ser quem não é e que esconde quem não quer ser? Que vive uma mentira para tentar omitir a verdade? Que suporta lágrimas viciosas por detrás de uma expressão fria e de uma frase reconfortante de que está tudo bem? Quem entenderia uma rapariga que nem mesmo ela se entende? Quem entenderia uma rapariga como eu? A reposta é deveras óbvia: ninguém. Nem mesmo eu me entendo, nem mesmo eu consigo perceber o facto de ser tão fraca ao ponto de me refugiar em algo para me aliviar a dor psicológica. Nem mesmo eu consigo perceber o facto de não me entender.
Teria a minha mãe orgulho numa filha que enfrenta a vida com uma lâmina como refúgio em vez de a usar como uma arma? Teria a minha mãe orgulho numa filha que já tentara suicidar-se? Teria orgulho a minha mãe numa filha que não tem capacidade para proteger quem mais ama? Teria orgulho a minha mãe numa filha que nem sequer tem carácter para ser sua filha? Teria a minha mãe orgulho em mim? Não teria, com toda a certeza. É verdade que já me tentara suicidar, no entanto, prometi a mim mesma que não tornaria a cometê-lo, uma vez que não poderia deixar Yumi sozinha com Jude e era, sem sombra de dúvida, essa a minha única razão de viver.
- És horrível, Lucy. – Murmurei entre dentes num tom frio e repugnante, enquanto me observava no espelho sobre o lavatório e sentia nojo do que visualizava. – Jude tinha razão. Jamais deveria ter nascido… - Os meus lábios vacilavam bruscamente, tornando a minha voz embargada e chorosa, enquanto uma lágrima não suportou o peso da água e deixou-se descair pelo meu rosto, delineando um perfeito percurso até à minha boca.
A partir daquele momento da madrugada, a contagem recomeçaria do zero. No dia seguinte, se não me cortasse, seria um dia sem recorrer à lâmina. Tentaria o que pudesse para não desabar novamente, porém, dependeria da quantidade de desgraças que ocorressem nesse dia. Confesso, frequentemente eu pensava em desaparecer para sempre ou simplesmente adormecer sem nunca mais acordar. Sentia-me um fardo até para mim própria, como se eu fosse imprestável e horrivelmente indiferente na vida de quem me rodeava. E a verdade era que eu o era e as pessoas faziam questão de mo afirmar, mesmo que tal o fosse indagado indiretamente. Todos os insultos, as acusações, as agressões, os risos de gozo, o desprezo e o nojo que sentiam para comigo era somente uma prova de que me dispensavam se assim lhes fosse permitido. Mesmo tendo duas amigas unicamente, sentia que não marcava diferença na vida de ambas, como se fosse somente por educação ou simpatia elas conversarem comigo, ajudarem-me e preocuparem-se comigo. Mesmo conhecendo Erza há quatro anos e confiando nela mais do que em qualquer outra pessoa, pensava que era apenas um empecilho da sua vida, um incómodo de que ela não se livrava para não parecer mal-educada. Contudo, eu tinha que fingir que estava tudo bem e que nada me preocupava, que nada me amedrontava, que nada me rebaixava, que nada me incomodava ou que nada me afetava. Realmente, afetava imenso, porém, eu aprendera a esconder os meus sentimentos, por mais fortes que eles fossem. Tornara-se rotina todo aquele teatro que eu organizava e que participava como atriz, representado uma personagem que eu própria não o era verdadeiramente. E eu encontrava-me cansada de o representar. Sentia-me cansada de viver, de me manter presente, de respirar. Sentia-me cansada de mim própria, de ter esperança de que o pior pudesse melhorar, de observar cada cicatriz do meu corpo e relembrar o motivo pelo qual a fiz. Aquelas palavras da minha mãe não faziam qualquer sentido para mim, como se não se aplicassem a mim, mas a uma filha idealizada por ela; a uma filha que não fosse eu.
Soltei um suspiro pesaroso, enquanto caminhava para fora do banheiro. Agarrei no meu telemóvel rapidamente e apressei-me a sair daquele local. Não me importei com o facto de o meu uniforme se encontrar amarfanhado no chão da casa de banho. Apaguei a luz vagarosamente e fechei a porta com cautela, escutando-se apenas o trinco a fechar. Agarrada à toalha, desloquei-me na direção da minha cómoda, do lado direito da cama e junto à parede. Puxei a terceira gaveta, recolhendo de dentro uma camisa de noite comprida e larga de cor cinzenta, com uma frase a negro que afirmava “Peolpe scares me”. Retornei a fechar a gaveta, abrindo outra em seguida. Retirei de lá um par de meias branco e roupa íntima de cor negra. Fechei a gaveta rapidamente, não me importando com o barulho que esta fizesse.
Caminhei em direção à cama, atirando as peças de roupa na sua direção, observando-as amolgarem-se junto dos cobertores. Prendi um pouco a toalha ao meu peito, enquanto agarrava no meu telemóvel. Sentei-me na minha cama e observei a lâmina que detinha em mãos. Os cortes ainda ardiam profundamente por debaixo das ligaduras, como se ainda deslizasse por lá a lâmina. Cravei as minhas unhas na capa preta que protegia o meu telemóvel e, com um único e rápido movimento, retirei-a sem dificuldade. Pousei a lâmina sobre a mesma e retornei a colocá-la no meu telemóvel, escutando os baques que aquela proteção fazia ecoar. Posicionei o aparelho sobre a mesinha de cabeceira, fechando os olhos e deixando que algumas lágrimas deslizassem por ele. Soltei a minha toalha, que caiu solenemente pelo meu corpo. Agarrei nas roupas íntimas e rapidamente as vesti, seguindo-se as meias, que encaixavam perfeitamente nos meus pés gélidos. Coloquei, em seguida, a camisa de dormir sobre mim, esticando os braços ao comprido, enquanto a mesma deslizava por entre a minha pele, caindo graciosamente sobre as minhas coxas. Detinha o meu cabelo ainda molhado, pingando água sem tréguas. Preferi não o enxugar, pelo que o prendi com um elástico, criando um coque no topo da cabeça, onde alguns fios de cabelos espigavam livremente, dando o seu ar de rebeldia.
Atirei a minha toalha da direção de um grande cadeirão que se encontrava ao lado da mesinha de cabeceira e retornei a centrar-me no meu pulso. Deslizei alguns dedos sobre a ligadura que cobria os cortes e comecei a chorar compulsivamente. Aquilo doía dentro de mim, como se facas fossem cravadas no meu coração vezes e vezes sem conta. Eu só pedia para desaparecer de vez, onde nada mais me pudesse magoar, onde nada mais me pudesse afetar. Abracei os meus joelhos e escondi o meu rosto por detrás destes, observando a escuridão do meu quarto, somente iluminado pela lua, que abraçava o céu escuro daquela noite.
Eu queria gritar.
Porém, não podia gritar, embora o pretendesse. A mágoa e a melancolia abraçavam-se com força naquele momento, enquanto a loucura se juntava ao círculo de depressão. Comecei a balançar para frente e para trás, enquanto lágrimas deslizavam por entre o meu rosto e eu não suportava toda a dor que sentia naquele instante. Considerava-me louca por todas as coisas que eu era capaz de fazer quando estava sozinha. Eu era louca. Comecei a arfar compulsivamente, dando indicações de que uma crise de ansiedade se aproximaria rapidamente. Os meus dedos tremiam sem tréguas, como se tivesse sofrido um choque elétrico. Detestava as crises de ansiedade que eu tinha. Não sabia como afastar aqueles pensamentos suicidas nem todas aquelas lágrimas que insistiam em cair, mesmo sem permissão. A tristeza afogava a minha sanidade e eu, impotente, não tinha capacidade sequer para me proteger de tudo o que me consumia naquela noite de desespero. A respiração encontrava-se descompassada, apressada e nada relutante, pelo que me custava a manter-me sã.
Deixei-me deslizar sobre a almofada, escondendo os meus pés por entre os cobertores e descaindo a cabeça para o lado esquerdo, enquanto ainda soluçava brutalmente. Não conseguia suportar aquela mágoa que me corroía dia após dia, sem aviso, em completo silêncio. Calada naquela cama permanecia a rapariga louca que chorava sozinha e se cortava sem pudor. Amargurada pelas palavras de cada dia e com o limite alcançado, mais um momento de angústia e pânico a assolava sem autorização... Apenas desejava morrer naquela noite, que parasse de respirar durante o sono e não acordasse. Seria tão difícil de me conceder esse desejo?
“Por detrás de cada sorriso esconde-se a mais pura das lágrimas”
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.