A Noitada é uma noite que criamos para não ter fim.
Para nos desligarmos, nos tirarmos do subúrbio de Seul, da capital. Esquecer o sangue, esquecer a corrupção, esquecer de tudo que há fora de nossa zona de conforto, do nosso soju, e de nós mesmos. Criamos essa noite com nome idiota para nos desenterrar de toda essa sujeira, essa poeira, que a cidade despeja em cima de nós. E cavar cada vez mais fundo, com cada vez mais força, até conseguirmos ver pelo menos um vislumbre do brilhinho dourado que é o nosso interior.
Mas tudo isso então acaba, como todas as coisas boas sempre acabam, em mais uma segunda-feira de trabalho. Assim estaremos prontos para aguentar mais terra em cima de nossas cabeças.
Desço do carro com as duas sacolas de salgadinho nos braços, fecho a porta com a costa e travo. Sigo caminhando pelo estacionamento levemente escuro do meu prédio até o hall iluminado dos elevadores. Espero profundamente não encontrar ninguém no caminho, porque eu pareço mesmo muito idiota com essas duas sacolas na mão e a roupinha social de jornalista.
Aperto o botão para chamar o elevador e parece que, imediatamente após eu fazer isso, meu celular começa a tocar.
“Run, Run, Run” toca por um tempo ligeiramente longo enquanto eu arranjo uma forma de deixar as sacolas no chão e tirar o celular do meu bolso, as sacolas fazem um barulho plástico irritante.
– Oi, Chanyeol.
– Baekhyun, já chegou em casa?
– Acabei de chegar, já estou com tudo comprado. Agora é só esperar eles chegarem.
– E aí você não vai mais atender nenhuma ligação minha?
– Não pretendo, pelo menos não enquanto sóbrio – rio, e então finalmente o elevador chega, e eu passo com as sacolas cheias pela porta que de repente parece pequena demais. – Talvez eu fale algumas besteiras depois.
– Que tipo de besteiras?
Encosto em uma das paredes do elevador, pensando nas histórias que já me contaram sobre um Baekhyun bêbado que eu nunca me lembro de ser: ligava para meus antigos parceiros e tinha crises de autoestima, de confiança, de segurança. Falava besteiras do tipo “minha cama está te esperando” ou “seu pai é padeiro?” e eu continuava com mais cantadas bestas que eu, em meu estado de torpor, achava muito galantes.
Também me lembro de minha mãe dizer que eu já liguei para ela e pedi para ela me “tirar do alto” algumas vezes. Não gosto desse aspecto.
– Bom, você não iria querer saber.
– Entendi. – Uma pausa se segue, o que sugere que ele também esteja pensando nas bostas que eu falo quando bêbado. Mas vou ter que deixar sua imaginação correr solta. – Então, o que eu posso dizer agora é o básico. Divirta-se, converse com seus amigos, não faça besteiras, não brinque com fogo. E, principalmente, não beba demais, Bernstein.
Ele fala as ultimas palavras pontuando cada sílaba, como se realmente quisesse que eu memorizasse a ordem. Não é nisso que eu realmente foco, no entanto, mas sim no nome que me chamou no final da frase. Eu solto o riso, e a linha continua muda. É até fácil imaginar ele mordendo o lábio inferior, segurando a risada, esperando uma reação minha.
– Pode deixar, Woodward – acabo por dizer.
Uma leve risada então soa na linha, e eu acabo por rir junto. Imagino que, por ser um homem tão intelectual, com tantos livros nas estantes das livrarias, ele tenha visto o filme por puro interesse, ou até mesmo pesquisado sobre o caso de Watergate. Já eu, pesquisei e li sobre porque realmente precisava caso quisesse merecer o titulo de jornalista.
Agora eu sou o Bernstein. Inacreditável.
– Ok – ele fala depois de um tempo, soa como se estivesse sorrindo. – Então acho que é isso. Precisa de alguma coisa? Quer que eu fale com alguém do seu trabalho?
– Já falei com todo mundo – esclareço.
– Tá bom. Fique bem, ok?
– Tá bom – concordo, me sentindo como uma criancinha protegida pela mãe. – Tchau, Woodward.
– Tchau, Bernstein.
Então desligo a ligação, e meu elevador abre em meu andar. Demorou mais do que o normal. Chega a parecer que ele ficou parado por um tempo enquanto terminávamos nossa conversa, como se não se movesse, e tivesse aberto somente quando eu me despedi do Sr. Woodward.
Abro a porta de casa. Talvez seja só impressão minha.
– Ok, crianças, isso é o que eu trouxe, o máximo para ninguém entrar em coma ou morrer depois de hoje. – Anuncia Yooa, colocando garrafa por garrafa de soju na minha bancada. São várias garrafas e, mesmo que ela já tenha feito isso mais de uma vez, eu sempre acabo imaginando os nossos nomes no jornal da semana seguinte como os próximos “mortos por álcool”. – E essa aqui eu trouxe especialmente para você, Baekhyun. – ela diz, tirando da ultima sacola uma garrafa de vinho e me entregando-a.
Olho para a garrafa de vinho na minha mão.
– Parece caro – observo.
– E foi – Kyungsoo observa encostado na bancada.
Ele veio junto com Yooa, e provavelmente também vai voltar junto com ela. Compraram as bebidas no caminho, como sempre, e eu aposto, pela sua expressão olhando para as garrafas de soju, que está perturbando Yooa para abrir uma delas faz muito tempo.
Sorrio. Um sentimento de imortalidade passa pela minha pele e, mesmo que seja típico de todas as nossas Noitadas, eu nunca me canso dele.
– Kyungsoo, pode me passar o saca-rolha? – peço, e ele, já a par de toda a casa, abre a primeira gaveta e me passa o objeto.
– Faça as honras – ele me diz.
E então eu abro a garrafa de vinho, ali mesmo na minha mão, e levo o gargalo até os lábios. Sinto o gosto amargo do vinho preencher a minha boca. Engulo, e então estendo a mesma garrafa a Yooa.
– Vamos começar, hum?
É como se apertássemos um botão. Um daqueles grandes e vermelhos que fazem algo importante. Porque isso é importante, isso é um dos momentos mais maravilhosos que temos. A gloriosa aura da juventude cai como uma coroa dourada sobre a cabeça de cada um de nós. Sentíamos-nos crianças em forma de rei.
Era apenas eu e eles dois. Mais ninguém. Não precisávamos de mais ninguém.
Passávamos horas a fio jogando com os jogos que Kyungsoo trazia, xingando uns aos outros de vários e vários palavrões, todos misturados pelos gritos exagerados. Passávamos trotes para pessoas próximas, dançávamos loucamente todos juntos, derramando soju pelo tapete, gritávamos letras de músicas uns para os outros, consolávamos e secávamos as lágrimas de quem começasse a chorar.
E, para ser honesto, era eu quem começava a chorar, e sempre pelo mesmo motivo. “Ah, mas como eu ainda sinto falta dele! Ah, quão coitado eu sou!”.
Já Kyungsoo, ele não chorava, ele era o tipo de porre que ficava completamente calado e emburrado. Guardava os pensamentos para si mesmo, mas algumas vezes eu mesmo conseguia adivinhar.
– Trabalho?
Ele assentia com a cabeça.
– Se eu pudesse, eu juro que eu mataria todo mundo naquela merda. Salvo Yooa. Aqueles desgraçados, egoístas, que não pensam em nada alem do seu próprio nariz...
Já Yooa, ela chorava por tudo. Por ter manchado meu tapete, por seus ex-namorados, por ter se esquecido de pagar uma conta, até por gratidão em nos ter como amigos.
É tudo que nós não diríamos em voz alta.
É como se fosse outro mundo. Outro mundo que criássemos para nós mesmos.
Um mundo que voltássemos vários anos atrás, porque queremos, e não nos importássemos com as assustadoras consequências que viriam depois. Viramos adolescentes, e não há problema nisso.
Talvez nunca tenhamos crescido.
Talvez, deitado no chão da minha própria sala, aos pés de Kyungsoo enquanto ele canta uma música segurando a minha mão, eu apenas esteja sendo eu mesmo. Finalmente. Depois de tantos dias e horas sentado a frente de um computador. Depois de tanto tempo importunado por questões que nunca tiveram a ver comigo, eu finalmente conseguisse ser eu mesmo.
Alguém acabava caindo no sono hora ou outra, então nós riamos porque essa pessoa caiu no sono e tentávamos acordar ela das maneiras mais irritantes possíveis. Acho que acordamos Yooa tampando o nariz e a boca dela dessa vez. Ela arregalou os olhos e gritou.
Ou foi vez passada?
Também havia o momento em que eu mesmo caia no sono. O sono me puxava para o seu abismo sem fim de trevas e esquecimento.
E então era isso. Acabava.
...
“Baekhyun”
Uma multidão. Estou no meio e uma multidão de pessoas. Todas vindo por todos os lados, me empurrando em tantas direções que fico confuso. Fico tonto.
“Baekhyun”
As faces ficam misturadas de tão rápidas que passam, não consigo formar uma inteira. Vejo um nariz, uma boca, os olhos. Mas não vejo mais nada. São todas comuns demais, são as mesmas que se vê quando se passa por uma rua movimentada. E continuam me empurrando.
“Bernstein”
E então o vermelho aparecia. Como o primeiro raio de sol de uma manhã, como um grito no silencio. Surgia notório em minha visão, não podendo ser ignorado pelo mais cego dos cegos. Era ele, o Vermelho.
Sem hesitar, corro atrás dele, corro atrás dele como correria pela minha própria vida. Como se todos os meus valores estivessem naquela cor, e eu tivesse que lutar por cada um deles. Não posso deixar fugir. Não posso deixar ele fugir.
E a multidão me amassa e modela. Eu viro uma massa imóvel.
“Eu estou aqui, idiota”
Abro os olhos com o baque forte de uma dor de cabeça insuportável, sinto como se ela estivesse em um compressor, pronta para explodir em vermelho cor-de-sangue, e meus miolos.
Meus olhos perdem foco na claridade do dia e lentamente focalizam um ponto vermelho em cima de mim, que depois se torna cachos, e depois um rosto sorridente e brilhante banhado à luz do sol.
– Chanyeol, sai de cima de mim.
– Bom dia para você também.
– É serio, eu vou vomitar. – murmuro, tentando fazer ele realmente entender.
Quando percebo, ele já está me colocando em seu colo, e eu, sem ter condições de resistir muito, apenas envolvo meus braços em seu pescoço, e deixo ele me guiar pela minha própria casa. Ele me pousa no chão do banheiro, em frente à privada, e lá eu derramo todos os meus pecados.
Deixo ele afastar minha franja e acariciar minha costa. Eu não tenho muito que fazer. Apenas sentir tudo saindo do meu corpo, me sentindo imundo.
Aos poucos, eu deito no azulejo do banheiro e tento me concentrar em realmente acordar. O que aconteceu ontem mesmo?
Ah, sim, a Noitada. E eu estou assim por causa dela também.
Olho para Chanyeol ao meu lado. Está todo arrumadinho como sempre, sem um fio sequer de cabelo fora do lugar, e seu sobretudo de algodão, sem sequer uma mancha, caindo perfeitamente em seu corpo. Porque ele sempre está tão bonito, mesmo quando eu estou em um dos estados mais deploráveis do ser humano?
– Ok, Woodward – sorrio para ele, sinicamente. – Esse é o momento em que você me explica porque está aqui. Eu falei que era para vir somente se desse merda.
– Bom... – ele pensa um pouco. – Quando você parou de me ligar e mandar todas aquelas mensagens, eu achava que tinha que me preocupar. Esperei amanhecer para ver se realmente você não iria dar mais sinal de vida, então vim para cá.
– Então você vai ajudar a limpar tudo, já sabe, né? – digo, suspirando e deixando meu corpo deslizar para seu colo. Minha cabeça dói demais, e a luz do sol nos azulejos brancos do banheiro está me deixando ainda pior. – E que tipo de mensagens eu mandei? Só por curiosidade.
Eu, mais que qualquer um na terra, sei que eu não tenho limites quando eu fico bêbado.
Ele faz carinho em meus cabelos a fim de me fazer relaxar. E ri.
Mas, ah, eu nunca vou mudar a idéia de que a risada dele é a melhor coisa do mundo. Nunca.
– Você começou com umas coisas bem sexuais que, eu juro, eu fiquei muito assustado. Aí começaram as ligações também. A primeira eu atendi, você falava como se fosse uma garotinha manhosa, Baekhyun. Dizia que precisava de mim naquele instante e que estava cheio de tesão. – Ele ri mais ainda.
– Ok – balanço a cabeça, morto de vergonha, levantando. – Acho que era o que eu precisava ouvir. Acabou a curiosidade.
Ele me puxa de volta.
– Espera que fica melhor – ele afirma com um sorriso. – Aí você começou com umas mensagens que eu achei mais estranhas ainda. Ficou falando que me odiava, que se odiava, que era tudo mentira. “Chanyeol, me desculpa”, você mandou varias vezes. E quando eu fui lhe ligar, preocupado, você já estava ligando.
– Ah, não. – arregalo os olhos, começando a lembrar. Meu coração quase sai pela boca. – Que merda eu disse?!
Desculpa por eu te enganar. Por eu ter meu coração perdido em um evento de mais de dez anos atrás. Desculpa.
É isso que eu lembro. É isso que minha cabeça, dolorida do jeito que está, automaticamente pensa. Mas isso não pode ser, não pode acontecer. Eu não posso ter falado isso. Pelo amor de tudo que é sagrado, não.
– Você falou umas coisas bonitinhas.
Suspiro. Coisas bonitinhas. Ok.
– Tipo? – não consigo esconder meu nervosismo.
– Tipo, que me amava muito, e que não me merecia, e que eu fui uma das melhores coisas que já aconteceu com você...
– Eu acho que vou vomitar de novo – ameaço.
Ele ri e me puxa ainda mais para seu colo.
– Você não tem noção do quanto aquilo me alegrou às cinco horas da manhã.
Permaneço com a cara amarrada.
– Por nada, Woodward.
Quando penso que estamos só nós dois naquele banheiro branco em uma manhã ensolarada, que não coincide em nada com o meu humor e com o constante clima de Seul, alguém bate na porta devagar. Viro para trás apenas para dar de cara com Yooa, com os cabelos bagunçados e a roupa torta no corpo.
– Deu merda? – Ela pergunta em um quase inaudível murmuro.
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